Por Giullia Chechia e Luciana Lima Antes mesmo do café da manhã, todos os dias, chega o cardápio no grupo do WhatsApp. Diferente do tradicional, este não oferta quitutes, pães ou bolos. Mas abre outros tipos de apetite e atrai uma vasta clientela. No menu desta quarta-feira, o menu era: prensado, Manga Rosa, Lemon Haze, Banana Kush, Critical, AK 47, Colombian Gold, Ice e Dry. São tipos de maconha. Junto da lista, o fornecedor envia vídeos detalhando cor, textura e densidade para comprovar que os produtos estão frescos. Então, desembolsando entre R$ 4 e R$ 110 por grama, via pix, cartão de crédito ou débito, os clientes retiram a mercadoria em alguma estação de metrô ou pagam frete para recebê-la em casa, num envelope lacrado. Assim funciona um grupo, lotado, de venda de drogas em São Paulo. Embora ilegal, está longe de ser o único. Em outro, circula um convite. “Mulher, se o objetivo é relaxar, vem para o nosso encontrinho. No dia 26/6, vamos bater papo, ouvir música boa e curtir uma massagem deliciosa. Tudo isso, numa tarde free cannabis, com comidinhas cannábicas, becks de presente e piteira de vidro para brilhar muito na redução de danos”, diz a mensagem. As comunidades virtuais representam apenas mais uma via, moderninha e profissionalizada, de acesso às substâncias ilícitas. Quem quer consumi-las no Brasil consegue. A demanda é suprida das mais diversas formas: os fornecedores atuam online, é possível comprar nas clássicas biqueiras ou com o usual fulano que conhece beltrano que é amigo de sicrano2. Há uma enorme freguesia que neste sábado, 17, fará sua cabeça a céu aberto nas ruas de São Paulo reivindicando o direito à erva — da Avenida Paulista à Praça da República, na 15ª edição da Marcha da Maconha. A caminhada ocorre dias antes de o Supremo Tribunal Federal (STF) retomar o julgamento que pode resultar na descriminalização do porte de drogas para consumo próprio. Está prevista para quarta-feira, dia 21, a sessão na qual os ministros devem analisar a validade do artigo 28 da chamada Lei de Drogas, que enquadra como crime as ações de adquirir, guardar ou transportar substâncias ilícitas. Até o momento, três votos foram registrados na Corte. Em sua tese, o relator Gilmar Mendes defende a descriminalização de todas as substâncias para uso pessoal. Os outros dois, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso, concordam com a inconstitucionalidade do artigo 28, mas se posicionam pela descriminalização apenas da maconha — teoria que deve receber maior apoio entre os magistrados. Mas também ninguém ficará muito surpreso se a votação for novamente adiada. Fora da lei Sancionada em agosto de 2006 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a Lei 11.343, responsável por regular a questão dos entorpecentes no país, surgiu em resposta a uma grande onda de violência em São Paulo atribuída à facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC). Em maio daquele ano, no intervalo de dez dias, os ataques mataram 59 policiais e 505 civis. O governo se viu obrigado a reagir. Colocou em vigor a nova norma com a pretensão de diferenciar o usuário do traficante para reduzir o encarceramento, endurecendo a punição para quem vende e acabando com a pena de prisão aos que consomem. Na prática, no entanto, a legislação alcançou justamente o oposto: facilitou a condenação por tráfico. “A problemática central é que a lei não traz distinção sobre a quantidade de drogas a ser considerada uso pessoal ou tráfico. Quem a polícia classifica como usuário só assina um termo circunstanciado e cumpre penas alternativas, como prestação de serviços à comunidade. Mas na maioria dos casos não é o que acontece. Sobretudo em regiões mais carentes, os jovens, na maioria pretos, são condenados como traficantes com quantidades mínimas de substâncias”, explica o advogado Igor Henrique Moreira Martins. Para distinguir o consumo pessoal da traficância, a Justiça desconsidera a porção de entorpecentes e se debruça sobre as circunstâncias da prisão. Em seu artigo 38, a Lei de Drogas caracteriza o tráfico em 18 verbos: “importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”. A falta de parâmetros precisos encarcerou um dos clientes de Martins. Considerado culpado por tráfico, ele foi preso às vésperas do Dia das Mães por três gramas de maconha. “Era mês de maio. Eu tava sentado na calçada fumando um baseado com meus amigos aqui em Itapetininga. A Rua Yolanda é uma descida e, como a gente tava no ponto mais alto, vimos a sirene da viatura se aproximando. Então, saímos andando. Meu amigo jogou a droga que estava com ele e os policiais viram, mas foram embora. Passei reto, entrei no mercado, comprei o que minha mãe pediu e fui para casa. No caminho, eles me abordaram: ‘perdeu, perdeu, a droga era sua, nós vimos que foi você quem jogou a droga’. Eles encontraram outro beck no meu bolso e alegaram que os dois baseados eram meus. Passei por uma audiência de custódia e, como eu já tinha passagem, fiquei. Fui para a cadeia”, lembra o rapaz de 23 anos. “Me trancaram por quatro meses, mas sinto que foi muito mais. Lá o tempo não passa, né… cada minuto parecia uma hora e cada hora parecia um dia. Não tinha muito o que fazer a não ser conversar com os outros presos pra distrair e cantar música. Era isso o que nois fazia lá. E assim foi prosseguindo, um dia depois do outro”, continuou. Mesmo que a Lei de Drogas não seja a única responsável pelo grave problema de Segurança Pública, casos como o dele esclarecem o boom da população carcerária na última década. Em 2005, eram 300 mil detentos. Atualmente, segundo os dados mais recentes do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), são cerca de 800 mil — o dobro da quantidade de vagas em todo sistema prisional, que tem a cor bem definida. Dois em cada três presos são pretos, enquanto só metade concluiu o Ensino Fundamental. “A prisão destes jovens é uma morte social. O usuário é colocado num presídio com homicidas, traficantes, pessoas que de fato têm suas vidas voltadas às atividades criminosas. E é penalizado apenas por escolher consumir a substância que deseja, o que viola inclusive o direito à liberdade, já que a lei não pode punir a autolesão”, pondera o advogado. A área cinzenta Ao mesmo tempo, neste mesmo país, quem tem condições financeiras e acesso à informação pode usar a mesma substância — com o aval da lei. Com autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), pós-consulta, os pacientes deixam as unidades da clínica canábica Gravital com receitas que prescrevem flores de maconha. Além das plantas para serem fumadas, óleos, balm, gummies e outros medicamentos à base de cannabis são indicados para os mais diversos tratamentos. “O médico prescreve a Cannabis se achar que o paciente terá qualquer benefício com o uso da erva. Também faz todo o acompanhamento do tratamento. Assim que sai com a receita, o paciente pode ir à farmácia e comprar as poucas opções vendidas no Brasil, com preços que giram em torno de R$ 600 a R$3.000, ou procurar uma empresa para importar seu pedido. Não é tão simples, precisa cadastrar a receita e seus dados no site da Anvisa, é um trâmite que exige conhecimento”, explica Márcio Negri, diretor da rede de clínicas. Mas o mercado é dinâmico e já existem empresas que trabalham para facilitar o processo de importação. “É só entrar em contato que elas realizam todo o trâmite logístico e entregam na sua casa em 30 dias.” Atualmente, existem 25 produtos nacionais à base de canabidiol com autorização sanitária para serem comercializados no país, quantidade pequeníssima perto dos 450 estrangeiros com licença para importação. Resguardada pelas normas que garantem o uso da maconha medicinal no país, a Gravital oferece atendimento para as mais variadas condições clínicas. Em seu quadro de profissionais, há clínicos gerais, psiquiatras, neurologistas, endocrinologistas, reumatologistas, otorrinolaringologistas, geriatras, entre outros. Pioneira ao explorar a medicina canábica no país, a clínica não compactua com a distinção entre uso social e terapêutico da maconha. “Não tem como separar. Todo uso da cannabis é terapêutico. Todo usuário é paciente. Mesmo quem usa socialmente se beneficia da erva: se sente melhor, dorme melhor, fica mais criativo, menos ansioso. Você permite que uma pessoa use para fins medicinais, mas bane outra. Por quê? É uma coisa só, só uma planta." Negri acredita que esse discurso separatista só mantém a elitização do acesso à erva. A democracia canábica passa pela descriminalização. Os itens vindos de fora são submetidos a uma série de testes, precisam seguir parâmetros e apresentar níveis padronizados de canabinóides como CBD e THC. Há um controle de qualidade rigoroso. O diretor relata que o uso de maconha de qualidade impacta a saúde dos usuários. “Um paciente chega no consultório dizendo: ‘doutor, eu fumo maconha ruim, mesmo as mais caras não me fazem bem’. Respondemos mais ou menos assim: ‘vou te dar uma flor de CBD, um skunk bonito e mais barato do que o que você compra. Você vai largar suas porcarias. Em vez de fumar cinco vezes por dia sua maconha ruim, vai se acalmar fumando só uma dessa flor’. Com isso, reduzimos o dano daquele paciente”. O mercado opera em um tempo próprio. Enquanto a legislação patina, as vendas de cannabis medicinal nas farmácias brasileiras saltaram mais de 300% no ano passado. E hoje são mais de 1 mil profissionais atuando diretamente na indústria de cannabis no Brasil, segundo levantamento da consultoria Kaya Mind. Um crescimento de 37% nas vagas entre setembro de 2021 e setembro de 2022. Mas esse é só um pedacinho desse setor, dos funcionários que trabalham nas farmacêuticas. Há ainda mais de 15 mil médicos que prescrevem cannabis, por exemplo, além dos professores de mais de 80 cursos de especialização em cannabis. Com essa pujança, a consultoria estima que, com a regulamentação de todos os usos da cannabis, possam ser criadas cerca de 328 mil vagas no Brasil. Um ambiente regulatório mais claro seria, sem dúvida, um impulso. E evitaria situações esdrúxulas como a que viveu um paciente de Negri. Ele aponta como essa regulamentação fragmentada e paulatina, com normas avulsas da Anvisa, do Conselho Federal de Medicina, das juntas locais, Câmaras Municipais, pode levar a confusões. Pois esse paciente fez uma importação de produto, dentro dos trâmites legais, que chegou ao Brasil, mas a Polícia Federal travou nos Correios. Os policiais tiraram uma foto dos produtos e divulgaram: “apreensão de drogas vindas dos Estados Unidos, flores potentes”. “Um cara que representa a ONG Reconstruir Cannabis, foi à delegacia explicar, mostrar os documentos da consulta, o laudo, a prescrição, a autorização da Anvisa, nota fiscal. Aí, eles pediram desculpas.” Os entraves da lei Geralmente, na quarta-feira, é difícil encontrar uma mesa no cafezinho do plenário da Câmara. É o dia de maior movimentação na casa. Nesta semana, estava lá Manuela Borges, em sua cotidiana tarefa de tentar convencer parlamentares sobre a importância de se votar leis que legalizem a cannabis no Brasil. Utilizando-se de seu carisma, que rendeu abertura com os parlamentares da esquerda, da direita e de centro, a jornalista abordou o conservador Bibo Nunes (PL-RS), sentado na mesa ao fundo. “Não me esqueci de seu terno de cânhamo, não”, disse Manuela, engajada na luta pela legalização da cannabis e criadora do site InformaCANN, no qual reúne conteúdo sobre o assunto. Receptivo, o deputado indagou: “Cânhamo? O que é? É uma planta que vem junto com a cannabis? Ou é outra planta?”. Pela enésima vez, a jornalista e ativista se pôs a discorrer sobre a subespécie da cannabis, que contém somente traços de THC (Tetrahidrocanabinol), princípio psicoativo da maconha. O cânhamo é uma fibra já usada para fins industriais, mas por ser um “primo” da cannabis, tem seu plantio proibido no Brasil. Para Manuela, a conversa sobre o cânhamo serve para abrir caminho. Ela pretende ousar na articulação para tentar formar no Congresso uma frente parlamentar em torno dessa causa. Sua tarefa ali, com o gaúcho, era convencê-lo a assinar o pedido de criação do grupo. Bibo Nunes se rendeu à abordagem e até fez questão de contar que havia comprado um protetor labial, produto essencial na seca de Brasília, à base de canabidiol. “Comprei em uma confeitaria”, disse o deputado. “Não pode, deputado. Tem que ser só na farmácia e tem que ter receita médica”, repreendeu Manuela. Embora tenha se mostrado simpático, Nunes não deu garantias de que endossará a criação da frente, mas pediu que ela enviasse todo material informativo para seu gabinete. No lobby pró-cannabis, essa é uma cena que se repete no Congresso. Na Câmara e no Senado, há pelo menos 12 projetos de lei para regular a cannabis. Essas propostas tratam da liberação para fins medicinais, industriais ou recreativos. Mesmo assim, Manuela é descrente em relação a resultados no Legislativo. “O avanço virá pelo Judiciário”, disse, apostando suas fichas no julgamento que ocorrerá no Supremo Tribunal Federal (STF) e nas várias provocações que chegam ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) a cada semana. No Legislativo, até o momento, a proposta que mais andou em sua tramitação foi o PL 399, apresentado em 2015 pelo então deputado Fábio Mitidieri (PSD-SE), hoje governador de Sergipe. O projeto alterava a Lei de Drogas (11.343/2006) para autorizar no Brasil a venda de medicamentos originários da cannabis. Na comissão especial, o relatório do deputado Luciano Ducci (PSB-PR) ampliou a autorização, prevendo o cultivo para fins medicinais, produção científica e industrial, incluindo a produção de cânhamo. Em junho do ano passado, em votação apertada, a proposta foi aprovada em uma comissão especial da Câmara, prevendo a legalização do cultivo no Brasil, exclusivamente para fins medicinais, veterinários, científicos e industriais, da Cannabis sativa. Foram 17 votos favoráveis e 17 contrários. O desempate se deu pelo voto do relator. Na época, o projeto tinha caráter terminativo, ou seja, uma vez aprovado na comissão, não precisaria passar por votação no plenário da Câmara. No entanto, o deputado Diego Garcia (Republicanos-PR) se utilizou de uma manobra regimental para frear o trâmite. Inconformado, apresentou um recurso, pedindo que a matéria fosse votada pelos 513 deputados. Um ano após a aprovação, o presidente da Câmara Arthur Lira ainda não levou a votação do recurso para o plenário. Pior. No contexto da recondução para a presidência da Câmara, a proposta virou moeda de troca. Lira assumiu com evangélicos o compromisso de não pautar a matéria e, por essa e outras, levou os votos de todos os deputados. A proposta também conta com a rejeição da “bancada da bala”, inflada nas últimas eleições por delegados e policiais. A questão do cultivo sempre foi o nó para a proposta, que vem levando porrada de todo lado. Conservadores já aceitam a regulamentação do uso do canabidiol, mas rechaçam a possibilidade de se plantar cannabis no Brasil. Há exceções singulares. A deputada Carla Zambelli (PL-SP) é uma delas. Numa parceria peculiar, ela divide com o atual presidente da Embratur, Marcelo Freixo (PSB-RJ), então deputado, a proposta que tramita apensada ao PL 399, autorizando o plantio como forma de baratear as medicações à base de canabidiol. Também há críticas de quem é pró-cannabis. Isso porque a proposta não autoriza o autocultivo para evitar o uso recreativo. Nesse caso, pela lei, plantar cannabis em casa continua sendo crime. “Não vejo chance alguma de o recurso ser pautado aqui na Câmara. A bancada evangélica se juntou com os delegados (bancada da bala) nesse assunto. Se Lira pautar, não temos votos para aprovar”, disse ao Meio o deputado Bacelar (Podemos-BA), autor de um projeto que autoriza a prescrição de produtos à base de cannabis por veterinários. E o descompasso do Legislativo com o mercado e parte da sociedade deve seguir. |
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