Pode ser que você ainda não tenha reparado, mas o fato é que a natureza tem uma mania desgraçada de desmontar as expectativas humanas. Suspeito que isso aconteça porque ela é, ao mesmo tempo, muito mais criativa e muito mais prosaica do que sonha a nossa vã cabecinha de primata.
Pense no que vemos por aí quando as pessoas tentam imaginar o futuro da evolução humana, por exemplo. Quando esse tema volta à baila (e ele sempre volta), os futurólogos quase invariavelmente imaginam que nossos descendentes serão ETs cabeçudos, com o corpo atrofiado ou torto de tanto suportar dias de sedentarismo e celular na mão. E isso, claro, dentro de relativamente muito pouco tempo em termos geológicos — já vi gente prevendo que esse tipo de metamorfose bizarra teria se completado lá pelo ano 3.000.
Se a pessoa responsável por imaginar esse futuro tiver um pouco mais de noção das coisas, é comum que ela descambe para o extremo exposto. Nesse caso, ela dirá que, para todos os efeitos, a evolução deixou de influenciar a humanidade, graças aos avanços da medicina, da produção agrícola e da tecnologia como um todo.
Como a maioria de nós não precisa mais "lutar pela sobrevivência" e quase sempre vence doenças que teriam dizimado nossos ancestrais, a seleção natural teria deixado de atuar, segundo essa escola de pensamento. Assim, continuaremos a ser basicamente o que somos agora pelos séculos dos séculos — ou até nos extinguirmos.
Esses dois extremos imaginativos cometem mais ou menos o mesmo pecado: o da ignorância em relação a como a evolução de fato funciona. Resumindo, não faz sentido esperar que ela simplesmente pare de acontecer, assim como também é despropositado achar que ela atua como uma reação imediatista ao "ambiente" — seja ele qual for.
Para entender o que acabo de afirmar, vale a pena recalibrar o que significa a seleção natural, principal (mas nem de longe o único) motor da evolução. Seleção natural não é "luta pela sobrevivência", mas simplesmente o fato de que:
1) Alguns indivíduos deixam mais descendentes que outros. O centro aqui, portanto, é o sucesso reprodutivo, não a sobrevivência.
2) Esse sucesso reprodutivo variável de indivíduo para indivíduo com frequência tem um componente genético por trás dele. Certa mulher carrega variantes de DNA que fazem com que ela tenha gestações menos sujeitas a abortos naturais, por exemplo — e, portanto, seus fetos "vingam" mais.
3) Com o passar do tempo, essas variantes genéticas tendem a ficar mais comuns na população.
Seja lá o que aconteça no nosso futuro, as três coisas continuarão ocorrendo. O que significa que continuaremos evoluindo.
No entanto, nada indica que um corpo adaptado a passar 20 horas na frente do computador ou uma mão em forma de garra para segurar o celular desde o berço teriam algum impacto no sucesso reprodutivo (a não ser que o impacto seja negativo, cá entre nós). E, principalmente, nenhuma mudança dessa monta aconteceria ao longo de meros séculos, considerando os ciclos reprodutivos extremamente longos da nossa espécie e a complexidade de seu desenvolvimento embrionário.
Em suma, é muito mais razoável imaginar que, durante muito tempo, as mudanças evolutivas que moldarão o Homo sapiens serão sutis, sem grandes alterações no "chassi" da espécie. Isso talvez mude um pouco com o avanço da manipulação genética. Mas mudanças de grande monta por meio da edição de DNA provavelmente serão inviáveis, porque criariam um risco grande demais de bagunçar toda a dinâmica do organismo. Não, não seremos ETs. Ufa.
PS – É com prazer que reconheço, como inspiração desta coluna, a mais recente temporada (ainda não concluída) do podcast 37 Graus, produzido pela bióloga Sarah Azoubel e pela jornalista Bia Guimarães. Se você está precisando de boa companhia sonora para encarar aquela pilha de louça, passear com o cachorro ou enfrentar o trânsito, vale a pena ouvi-las.
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