No fim de dezembro do ano passado, Jair Bolsonaro ainda presidente, o IBGE publicou números prévios do censo demográfico. Os técnicos calculavam que o Brasil teria algo próximo de 208 milhões de habitantes. Apenas um ano antes, sem quaisquer pistas do que o censo diria, o instituto projetava mais de 213 milhões. Há pouco, quando os números do censo foram enfim tornados públicos, a primeira revelação diz muito sobre os últimos dez anos do Brasil. Somos 203.062.512 brasileiros em princípios de 2023, quase dez milhões menos do que apontava o ritmo de crescimento projetado.
O Brasil pagou a conta dos dez anos de crise econômica, política e pandemia em nascimentos que não aconteceram.
Não houve erro técnico nas estimativas produzidas pelos técnicos do IBGE. Após o censo de 2010, eles fizeram o que estatísticos fazem. Aplicaram a taxa de crescimento da população que o Brasil vinha colhendo aos números que existiam. Em 2015, o governo Dilma deveria ter ordenado a contagem da população, uma pesquisa bastante mais simples do que o censo completo, e que é sempre realizada no ano entre os censos. A ausência desta pesquisa tirou o IBGE ainda mais da rota.
Soma-se às razões que explicam o desvio o fato de que os números vieram com dois anos e meio de atraso. A pandemia atrapalhou, claro, mas as dificuldades impostas pelo governo Bolsonaro não foram pequenas.
No início deste ano, ainda faltava a contagem de 15,9 milhões de pessoas — é quase um estado do Rio de Janeiro, o terceiro mais populoso do país. Em condomínios de classe média alta, a resistência a abrir as portas para os recenseadores ocorria por uma intensa campanha de desinformação pela direita. Quando a taxa de não resposta tende a ser de 5%, ao final de 2022 estava em 20%, principalmente nos condomínios de luxo de São Paulo, do Rio e de Cuiabá.
Enquanto isso, em regiões mais remotas, não foi dada estrutura para que os pesquisadores pudessem chegar às pessoas, atravessando rios, matas, estradas difíceis. Estes desafios representariam contar para baixo a população indígena brasileira, o que afetaria diretamente, e por dez anos, políticas públicas voltadas especificamente para ela. E, nas comunidades mais pobres das grandes cidades, a insegurança e, claro, mais desinformação, dificultaram muito o trabalho. Pessoas demais temiam que, ao responder às perguntas, perdessem benefícios. O IBGE passou os primeiros meses deste ano correndo atrás do que não foi possível fazer no governo anterior.
Mas o fato que resta, para todos encararmos, é este. Caiu muito o ritmo de crescimento da população brasileira. Populações param de crescer por muitos motivos; o mundo todo está envelhecendo, e já se esperava isso por aqui. O que não entrou na conta, em nenhuma projeção, foi a desesperança. Casais têm filhos quando acreditam que poderão sustentá-los, quando veem um futuro próspero à frente. A crise econômica que nasceu com o governo Dilma, a pandemia e o ambiente sufocante, de conflito aberto, que se impôs após 2013 e apenas se ampliou no governo Bolsonaro, provocaram este clima.
O Brasil deprimiu e, num ritmo acentuado como nunca havia ocorrido antes em sua história, passou a dar menos à luz.
A desesperança é mais nítida quando vemos onde o Brasil cresceu menos: nos estados do Rio de Janeiro e de Alagoas. Ambos com sistemas políticos locais destroçados na última década não apenas por constantes denúncias de corrupção, mas, também, pela ausência de sinal de renovação. O terceiro no ranking negativo é o estado mais violento do país de acordo com o Monitor da Violência: a Bahia.
Violência, desmonte político e crise econômica. Os três estados têm hoje, praticamente, a mesma população que tinham em 2010. O fato de que Rio e Bahia foram, ambos, capitais do Brasil, que ambos representam o Brasil no exterior, por suas paisagens ou pela cultura que produzem, deveria ligar um alarme imediato. Estamos, coletivamente, permitindo deprimir e decair os lugares em que o Brasil nasceu. Os lugares que ainda representam a ideia do que o Brasil é. Quando Rio e Bahia vão mal, o Brasil é percebido como decadente.
Este é o retrato de uma crise grave. Não apenas política e econômica, mas, fundamentalmente, social.
Os estados que mais ganharam população, por outro lado, também não surpreendem. Roraima em primeiro, mas aí é traço estatístico. O estado não tem nem um milhão de habitantes, quaisquer dez mil a mais fazem dar um salto percentual. A partir daí, Santa Catarina, Mato Grosso e Goiás. É o Brasil do agronegócio que tem crescido não apenas economicamente. É um Brasil que tem se tornado mais cosmopolita, conforme seus negócios precisam lidar com as políticas de EUA, China e Europa constantemente. Mas é um cosmopolitismo distinto daquele que as grandes capitais cultuam desde o Segundo Império. Um cosmopolitismo mais pragmático, por um lado. Precisa estar mais atento às decisões tomadas em Genebra do que aos passeios em Paris. Por outro, é cosmopolitismo muito diferente esteticamente. Encontra seu espelho nos EUA do Texas mais do que em Nova York. Este é, também, um Brasil que ocupa espaço cada vez maior na cultura nacional, com sua música sertaneja.
O Brasil está se tornando mais diverso, e as mudanças de seu pulso político podem ser observadas ainda de outra forma.
Quase 59 milhões de brasileiros, pouco mais de um quarto da população, vive em cidades com mais de 500 mil habitantes. Outro quarto, 57 milhões, está em cidades com mais de 100 mil e menos de 500 mil. E 45% de nós vivemos em cidades com menos de 100 mil.
Este não é um corte trivial pois aponta para experiências de vida marcadamente diversas. Uma cidade muito grande exige, de todos seus cidadãos, o convívio com a diferença. Não somos íntimos em cidades grandes, às vezes mal sabemos o nome de todos na família do apartamento ao lado, mesmo que levemos nossos dias separados por uma única parede. As diferenças de renda são mais patentes nas cidades grandes. Os cortes de cabelo, os modos de vestir, as maneiras de sermos, aquilo que faz de nós todos distintos uns dos outros é jogado na cara em toda caminhada que fazemos, em toda praça que cruzamos. O Brasil que o morador de uma cidade grande conhece é heterogêneo, indisfarçavelmente heterogêneo, e não é à toa que movimentos políticos defendendo os espaços de grupos assim tão diversos nasçam nestas cidades.
A experiência da cidade pequena é outra. As pessoas se conhecem, as histórias do que acontece circulam no boca-a-boca, a experiência é uma de intimidade. De proximidade. De homogeneidade. A família é fincada no centro do convívio social, pois as pessoas são reconhecidas por serem irmãos, primos, tios do fulano, da beltrana. Os sobrenomes se repetem como a marca que leva à identificação de quem se trata. As hierarquias sociais são mais nítidas e a resistência a qualquer mudança, maior. Não à toa: o tempo passa mais devagar. A nossa noção de tempo se dá pelo fluxo das mudanças, pelo ritmo pelo qual coisas novas, coisas diferentes, acontecem. Onde há menos gente, haverá menos mudança, menos acontecimentos. Gera uma percepção de permanência em oposição à de constante movimento.
Permanência do seu status social versus constante movimento de quem se pode ser. Esta é a essência da percepção que separa uma metade dos brasileiros da outra.
Afinal, metade dos brasileiros vive cotidianos opostos aos da outra metade. As reivindicações políticas de uma metade batem como absurdas nos ouvidos da outra. Esta é uma incompreensão com duas vias. E, nestes dez anos, mudamos também a forma de nos comunicarmos. Substituímos a televisão, que transmitia diariamente uma ideia de Brasil que compartilhávamos todos, pelas redes sociais. Que reforçam o isolamento. Cada grupo recebendo, diariamente, notícias, imagens, ideias, que confirmam sua percepção de que estão certos. E de que os outros, os diferentes, se descolaram da realidade.
O censo do IBGE apresenta para o Brasil o quanto ele se transformou entre 2010 a agora, 2023. O desafio é restaurar a esperança de que o futuro poderá ser melhor. E isso só acontecerá se formos, os brasileiros, capazes de nos reconhecermos como um só povo apesar de diferentes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário