O fim das fantasias imperiais é sempre um espetáculo que é muito penoso de se ver.
Um exemplo: quando os mercenários do grupo Wagner marchavam sobre Moscou, eu estava longe, algures em 1954, com o mais recente livro de Éric Vuillard, "Une Sortie Honorable", ou uma saída honrosa em português.
Aviso: se você costuma ter entusiasmos com políticos, acreditando que eles existem para redimir o mundo, não leia Vuillard. Nas suas narrativas breves, o escritor francês viaja no tempo para testemunhar, com ironia e imaginação moral, o comportamento das figuras mais ilustres durante os momentos mais decisivos.
O resultado é uma reconstrução histórica onde a estupidez e a mendacidade dos homens —sim, homens, no masculino— é exposta sem piedade.
Quem leu "A Ordem do Dia", já editado no Brasil, sabe do que falo: a forma como os grandes industriais alemães se venderam a Hitler, na esperança de que teriam uma terra de leite e mel, é hilariante e arrepiante.
No seu livro mais recente, Vuillard mostra os bastidores da "saída honrosa" tomada pela França após oito anos de guerra na Indochina.
Não falta nada: a ganância das grandes empresas, que prolongaram o conflito para que as matérias-primas continuassem a chegar à metrópole; a covardia dos políticos, que vendiam slogans nacionalistas para justificar uma guerra que matou 75 mil franceses —e 200 mil vietnamitas, no mínimo—; e a criminosa incompetência dos generais, com Henri Navarre à cabeça.
Existe uma passagem, memorável, em que Éric Vuillard contrasta os centímetros no mapa militar de Navarre com o terreno acidentado e imenso de Dien Bien Phu, onde a França foi derrotada. No papel, tudo era fácil. Fora do papel, tudo era 25 mil vezes maior.
Vladimir Putin é outro caso de delírio imperialista. No papel, a Ucrânia seria submetida à pata de Moscou em poucos dias. Fora do papel, já passou um ano e meio —e, agora, até os mercenários que ele criou já se voltaram contra o seu Frankenstein.
Vem nos livros, Vladimir: usar mercenários para o trabalho sujo nem sempre dá bons resultados. Chega uma altura em que o pessoal já não se contenta com o valor oferecido no cheque; quer mais reconhecimento, mais poder e um maior acesso ao tesouro.
Se Putin gostasse de história antiga, teria aprendido que o uso crescente de mercenários pelo império romano foi uma das causas da sua ruína.
Mas Putin prefere a história russa e, mesmo aqui, há falhas graves de entendimento. No dia do motim, Putin apareceu aos russos para lembrar 1917, quando a Rússia foi "apunhalada pelas costas".
Eis a tese: se não fosse a revolução que pôs fim aos Romanov, a Rússia teria saído grande vencedora da Primeira Guerra Mundial.
Não, não teria: em 1917, e com 2 milhões de mortos, já não existia Exército russo propriamente dito. O que existia era um estado de rebelião permanente, com os soldados, mal equipados e malnutridos, a desertarem ou a renderem-se.
Se a comparação com a Primeira Guerra faz algum sentido, é apenas para iluminar os erros de Putin à luz dos erros do czar Nicolau 2º.
Em 1914, tal como no ano de 2022, havia um otimismo delirante nas capacidades militares da Rússia —apesar da derrota recente frente ao Japão.
Em 1914, tal como no ano de 2022, o czar acreditava que a guerra seria breve, razão pela qual os seus generais não contemplavam a possibilidade de uma longa guerra de atrito.
Em 1914, tal como no ano de 2022, os russos foram mobilizados para uma guerra cuja racionalidade lhes escapava.
Isso significa que há uma revolução a caminho, então?
Só o tempo dirá: humilhado pela audácia de Ievguêni Prigojin e exposto na sua fraqueza para neutralizá-lo, não é de excluir que Putin opte por uma exibição de força interna —para suprimir qualquer rebelião ou crítica— e de força externa —cometendo o impensável na Ucrânia, como um ataque à usina nuclear de Zaporíjia.
Em qualquer dos casos, é o adeus ao velho pacto que Putin estabeleceu com os russos: se eles esquecessem a política e não tivessem pretensões democráticas, a vida como conheciam seguiria segura, confortável e aparentemente normal.
Porém, também não é de excluir que a Rússia de hoje, tal como a Rússia de 1917, se veja dilacerada a partir de agora por lutas entre facções leais ao regime ou hostis a ele.
Vem aí o tempo dos monstros. Como lembrava o filósofo, os monstros nascem quando o velho mundo agoniza e o novo tarda em nascer.
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