Alguns leitores não se conformam com o fato de que, quando esta coluna trata de assuntos culturais, fala de filmes, discos e livros de décadas perdidas do século 20. "Do tempo do guaraná de rolha", disse um deles.
Adorei a imagem, mas, como diria o Antonio Houaiss, peço vênia para discrepar. Quando entrei no ar, em 1948, não se usava mais a rolha. Os refrigerantes da época, Coca-Cola, Crush, Grapette e os vários guaranás já vinham com tampinha de metal. Eu próprio, ainda de dedo no nariz, era exímio na arte de chutar tampinhas. O máximo de rolha permitida era a cortiça dentro da tampinha, que, às vezes, escondia um símbolo que dava direito a uma garrafa grátis.
A partir daí, acompanhei a evolução das embalagens. Começando lá atrás, por aquela Coca pequenininha, curvilínea e sensual, aderi à Coca média, família, de casco a devolver, de máquina, de plástico, de lata, diet, light, zero etc. Do guaraná, com ou sem rolha, nunca fui fã. Meu favorito era o Crush, casco escuro e serrilhado, já extinto. Quanto aos canudinhos, conheci os de palha, papel e plástico. E como há muito deixei de me envenenar com essas beberagens, estou meio desatualizado. Pelo que ouvi, a tampinha de metal foi substituída pela de rosca, será verdade?
No fundo, lamento não ter conhecido o guaraná de rolha. Como seu tempo deve ter sido há mais de 100 anos, ele foi contemporâneo das "Demoiselles d’Avignon" (1907), de Picasso, do "À Procura do Tempo Perdido" (1908-22), de Proust, da "Sagração da Primavera" (1913), de Stravinsky, e de "O Gabinete do Dr. Caligari" (1920), de Robert Wiene. Todas, obras radicais, de vanguarda, que, cada qual em seu gênero —pintura, literatura, música de concerto, cinema—, fizeram o século 20 ingressar na modernidade.
E se, assim como o aço tubular, o concreto armado e o plástico, o guaraná de rolha também não tiver feito parte dessa modernidade?
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