quinta-feira, 1 de junho de 2023

Desafios de escrever sobre livros de que não gostamos, Juliana de Albuquerque, FSP

 Semanas atrás publiquei na Folha uma resenha de "Por Lugares Devastados", o mais novo livro de John Boyne, o mesmo autor de "O Menino do Pijama Listrado", obra que, apesar do sucesso, é reconhecidamente precária em seu tratamento a questões relacionadas ao Holocausto.

Uma das principais queixas dirigidas ao "Menino do Pijama Listrado" é a de que o romance voltado para o público infantojuvenil apresentaria uma visão distorcida da história e, principalmente, do que acontecia nos campos de concentração, sendo, portanto, inadequado para fins educativos.

Cena do filme "O Menino do Pijama Listrado" (2008), dirigido por Mark Herman - Divulgação

Outra crítica recorrente é a de que a trama do livro geraria entre os leitores certa dificuldade em operar uma distinção entre vítimas e algozes, colaborando, deste modo, para a possibilidade da perpetuação de estereótipos antissemitas.

"Por Lugares Devastados" é uma continuação de "O Menino do Pijama Listrado" e, como eu tento mostrar na minha resenha, acaba reproduzindo alguns dos mesmos problemas do seu antecessor, mostrando-se, inclusive, incapaz de propor qualquer reflexão mais cuidadosa a respeito de temas como a culpa e a responsabilidade.

No entanto, o meu texto desta semana não é exatamente sobre os livros de John Boyne, nem sobre como o autor costuma lidar com o Holocausto, e, sim, sobre a dificuldade que senti ao escrever a respeito de uma obra sobre a qual não tenho uma opinião positiva.

Há quem diga que não existe nada mais fácil e prazeroso do que falar mal do que não gostamos, como se estivéssemos em um grupo de amigos ridicularizando um estranho com o simples propósito de fazer troça, mas a verdade é que a atividade crítica deve ser exercida com redobrada seriedade, tomando cuidado para que não seja confundida com o escárnio, pois quem julga uma obra literária ou qualquer outra expressão cultural pode até não gostar do que leu ou do que teve acesso, mas tem a obrigação de apresentar as suas ressalvas de modo claro e razoavelmente consciente.

Em "Crepúsculo dos Ídolos", o filósofo alemão Friedrich Nietzsche traz uma imagem da qual gosto bastante e que talvez nos ajude a entender o quão delicado é o trabalho do crítico, mesmo nas ocasiões em que ele precisa escrever sobre aquilo que não lhe agrada:

"Fazer perguntas com o martelo e talvez ouvir, como resposta, aquele célebre som oco que vem de vísceras infladas —que deleite para alguém que tem outros ouvidos por trás dos ouvido— para mim, velho psicólogo e aliciador, ante o qual o que queria guardar silêncio tem de manifestar-se...".

Esse martelo ao qual Nietzsche se refere não é aquele que normalmente utilizamos para arrebentar paredes, mas, sim, a ferramenta empregada pelos músicos para afinar os seus respectivos instrumentos. Quem pretende escrever algo sobre o que não gosta deve fazer uso de uma metáfora semelhante a fim de se tornar capaz de apreender as nuances de um texto e de perceber quando algo não soa bem.

É justamente por isso que não é fácil escrever sobre algo de que não gostamos, pois o primeiro impulso é achar que, por não conseguirmos apreciar uma obra, não precisaríamos prestar atenção aos seus detalhes. No entanto, se teimamos em manter essa postura, corremos o risco de julgarmos a obra mal e apressadamente.

Talvez seja por isso que algumas pessoas evitam escrever sobre os livros de que não gostam, mas se todos nós fizermos isso, acabaremos prejudicando o desenvolvimento da crítica e, consequentemente, a formação do leitor.

Isto é assim porque a principal tarefa do crítico não é simplesmente a de emitir uma opinião, mas a de nos ensinar a ler melhor e mais diligentemente, prestando atenção aos detalhes que causam desconforto em um texto, nos habilitando a emitir uma opinião própria sobre os livros que chegam até nós.

Apesar de ser uma tarefa difícil, ao escrever sobre os livros de que não gostamos aprendemos a identificar alguma qualidade, por mais distorcida que seja, em algo que normalmente não chamaria a nossa atenção —e isso, consequentemente, nos ajuda a ter uma visão mais abrangente da nossa cultura, nos permitindo refletir sobre alguns de seus aspectos mais problemáticos, como vem a ser o caso do tratamento recreativo que Boyne aparenta dar ao Holocausto em seus textos.

Assim, não fosse o convite para escrever a resenha de "Por Lugares Devastados", eu jamais teria lido o livro. E sem essa experiência, eu também não teria sido capaz de vislumbrar e comentar a respeito das deficiências que autores célebres, como o próprio John Boyne, apresentam ao tentar escrever sobre um dos eventos mais terríveis do século 20.


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