Time de futebol, linha de metrô e autopeças fazem parte do império dos donos de ônibus
Ex-padeiros e perueiros dominam transporte coletivo em SP e hoje comercializam do pneu à carroceria
SÃO PAULO
Da carroceria do ônibus ao banco que financia novos veículos, os negócios dos barões do transporte de São Paulo vão bem além das linhas que levam 7 milhões de passageiros por dia.
Além de dominar quase toda a cadeia relacionada aos ônibus, os donos das viações expandiram os negócios para outras áreas, que incluem concessão do metrô paulistano e até time de futebol.
O silêncio é uma marca de um setor que, durante muito tempo, foi descrito pejorativamente como a "máfia" do transporte paulistano. Ao longo das últimas semanas, a reportagem conversou com empresários, políticos e especialistas para entender como se organizam os clãs que detêm as concessões de ônibus na capital.
Hoje, o sistema de ônibus de São Paulo vive uma diminuição no número de passageiros. Na comparação entre 2013 e 2018, houve redução de 4%, o que significa mais de 125 mil passageiros transportados a menos no ano.
Nesse cenário, o empresário português José Ruas —que começou com uma padaria e cresceu até se tornar quase onipresente no setor— passou a diminuir sua participação. Se, no ano passado, o sobrenome Ruas aparecia na composição acionária de ao menos seis empresas, em 2019, está apenas em uma.
O discurso corrente nas garagens do setor é que Ruas se cansou de operar as linhas e mira outros negócios ligados ao setor.
A Ruas Invest detém participação na Caio Induscar, fabricante da maioria das carrocerias usadas na cidade de São Paulo. O empresário também é sócio (ao lado de um banco português) do banco Luso Brasileiro, que financia a compra de ônibus para outras empresas de São Paulo, com condições de garantia de crédito mais próximas da realidade das viações. Em 2018, o banco fechou o ano com R$ 1,5 bilhão em ativos.
De olho na tendência de migração dos passageiros dos ônibus para o metrô, o grupo da família Ruas está ao lado da CCR nas concessões das linhas do metrô paulistano 4-amarela, 5-lilás, 15-prata e 6-laranja (ainda em construção). Também tem o controle da empresa responsável pelos anúncios nos pontos de ônibus de SP e do Rio.
A maior frota da cidade é a da empresa Metrópole, da família Abreu. Um em cada dez ônibus da cidade pertence à viação, pelos dados do novo contrato. Além de várias empresas de ônibus espalhadas por São Paulo, os Abreu também têm participação na Caio Induscar e em empresas de pneus e vidros para veículos.
Não são só os empresários da velha guarda que resolveram apostar suas fichas em outras áreas. Os antigos motoristas de van, que faziam o serviço de lotação pela cidade, também estão nessa toada. Hoje, são empresários em busca de diversificação.
Paulo Korek Farias, 50, é um dos donos da A2 Transportes, responsável por 483 veículos que operam na zona sul. Ele começou dirigindo uma perua naquela mesma região. Hoje, além da participação em outras empresas de ônibus, virou cartola de futebol. Ele é o presidente do Esporte Clube Água Santa, de Diadema, que poderá disputar a primeira divisão do Campeonato Paulista de Futebol no ano que vem.
Em 2014, a mulher de Korek apareceu em reportagem de um site de celebridades com o título: “Lar ostentação: Funkeira Angel K mostra mansão de quatro andares”. Hoje ela é cantora gospel.
A Folha encontrou vários casos de empresas do chamado sistema local, que operam com ônibus menores dentro dos bairros, ligadas a indústrias e revendedores de peças.
Para o ex-secretário de Transportes da gestão de Fernando Haddad (PT), o petista Jilmar Tatto, as empresas ligadas aos caciques do transporte não enfrentam concorrência devido ao que ele descreve como "acordão".
Tatto exemplifica com o mercado de carrocerias de ônibus na capital, dominado pela Caio, com participações das famílias Ruas e Abreu. “Você já perceberam que aqui não entra ônibus da Marcopolo? Vocês acham que eu não fui conversar com a Marcopolo [empresa gaúcha] para vir para cá [atuar em São Paulo]?”, disse.
ORIGEM
Entre os donos das viações dos ônibus grandes, responsáveis pelo transporte de distâncias maiores, uma origem bastante comum é a de famílias de comerciantes que nos anos 60 moravam nos bairros mais afastados e perceberam a necessidade que a população tinha para se locomover até o centro da cidade.
O português José Ruas, que já foi dono da maior frota do sistema, tinha uma padaria chamada Salazar (nome do ditador português morto em 1970), na Pompeia, zona oeste da capital. Quando a prefeitura retirou uma linha de ônibus bastante movimentada da porta de seu comércio, ele viu seu faturamento cair. Comprou dois ônibus e assumiu a linha. Rapidamente percebeu que as catracas eram mais lucrativas que os fornos.
As famílias portuguesas Marques e Saraiva, fundadores da Santa Brígida, têm origem semelhante. A padaria dos patriarcas e sócios ficava próxima ao largo Nossa Senhora do Ó, na zona norte. Em 1973, eles começam a entrar no setor de viagens. Hoje, o grupo econômico que reúne empresas como Santa Brígida, Urubupungá carrega o nome do bairro onde a parceria começou.
Segundo o pesquisador Marcos Vinicius Lopes Campos, uma característica das empresas de ônibus é a constituição familiar das diretorias, o que fica evidente pela repetição de sobrenomes na composição acionária das empresas.
Muitas das linhas criadas ou assumidas por essas famílias há décadas ainda existem até hoje. Os clãs têm um vínculo de propriedade, e também de afeto, com as linhas.
Tatto afirma que, quando tentou negociar a implantação de um novo desenho de linhas, um empresário implorou para ficar com uma linha porque havia sido primeira que assumiu em São Paulo após vir de Portugal.
A outra casta de proprietários de ônibus é a dos antigos perueiros, donos de veículos menores dedicados aos bairros e que hoje possuem 43% da frota de coletivos.
Segundo o pesquisador Daniel Hirata, da Universidade Federal Fluminense, a formatação dessas empresas vem de um tenso processo de competição e de apadrinhamento que se deu durante muito tempo à margem de uma regulação formal.
Para Hirata, o fim da CMTC (empresa pública que atuava no setor de transportes) e a subsequente criação da SPTrans (que passaria apenas a gerir os ônibus contratados) é o período em que as peruas ganharam popularidade nas ruas de São Paulo.
Segundo o pesquisador, parte dos perueiros eram antigos funcionários da CMTC, motoristas e cobradores, que foram demitidos. “Eles tinham o conhecimento das rotas, sabiam dos gargalos do sistema e como operar”, diz. Esse contingente de profissionais informais se juntou a um batalhão de pessoas que enxergou a oportunidade de transportar a população a preços competitivos.
A primeira fase da organização dos perueiros se deu de maneira quase amadora. Para que as vans pudessem circular em segurança, muitas vezes era preciso fazer acordos com policiais ou criminosos que detinham algum controle local.
A relação íntima de dependência desses trabalhadores com o submundo que lhes oferecia segurança foi se acirrando. Até que culminou, na gestão Marta Suplicy (PT, 2001-2005), em uma guerra ao transporte clandestino, com o uso intenso de fiscais e até de policiais.
O clima era tenso na cidade, com ocorrência de tiroteios entre perueiros. Técnicos da SPTrans dizem que algumas negociações dessa época eram feitas com perueiros armados. Passaram a ser comuns as disputas territoriais.
Para Hirata, a nova fase do sistema se deu com a criação do Bilhete Único, em 2004. “Quando há a criação do Bilhete Único, o passageiro passa a ter a oportunidade de fazer mais de uma viagem pagando a mesma tarifa. Isso quebra o perueiro que não está no sistema, que não tem a catraca eletrônica”, analisa.
Com o tempo, as cooperativas foram se organizando e consolidando como empresas formais.
As demandas e interesses dessas empresas, que antes eram locais, também mudaram de escala, passando a ser municipais. Prova disso é o vínculo criado por elas com a Câmara de Vereadores, a exemplo do que já ocorria com os antigos barões dos ônibus.
Garagens são parada obrigatória para alguns vereadores nas eleições. Os políticos também defendem interesses das empresas junto à gestão municipal, inclusive indicando cargos na SPTrans.
Os donos das antigas lotações também são citados como próximos do crime organizado, principalmente do PCC. Empresários do ramo sempre negaram.
Em 2006, presidente da Cooperpam (hoje Transwolff), Luiz Carlos Pacheco, o Pandora, chegou a ser detido temporariamente sob suspeita de atuar em um plano para resgatar um preso. Ele alegou ser inocente, o inquérito foi arquivado e a Justiça concluiu não haver provas.
Hoje, a Transwolff tem a terceira maior frota da cidade, com 1.249 veículos, na previsão do novo contrato, e Pandora é um principais barões do transporte de São Paulo.
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