sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Às vezes é preciso radicalizar para o outro lado, diz ex-ministro da Agricultura, FSP

SÃO PAULO
Ministro da Agricultura no governo Lula entre os anos de 2003 e 2006, o engenheiro agrônomo Roberto Rodrigues, 76, afirmou que oacordo entre o Mercosul e a União Europeia colocou o Brasil de volta no jogo global do comércio. “O acordo nos dá um protagonismo diferente, porque o Brasil assume uma nova posição e passa a ser mais cobiçado”, disse o ex-ministro em entrevista à Folha.
Ele disse acreditar que, com o livre comércio entre as regiões, haverá ganhos e perdas em todos os setores, mas que quem for eficiente se beneficiará.
Para o engenheiro agrônomo, no cenário das inovações tecnológicas, o Brasil precisa cuidar do pequeno produtor para que ele não desapareça. Outra atenção, segundo Rodrigues, deve ser dada a órgãos de pesquisa, que um dia estiveram na fronteira do conhecimento e hoje estão sucateados.
Ele defende ainda o trabalho de Tereza Cristina no Ministério da Agricultura e de Ricardo Salles, no do Meio Ambiente. “Ele faz um trabalho duríssimo, mal compreendido e mal aceito.” 
Qual o balanço do senhor sobre o acordo União Europeia e Mercosul? Em primeiro lugar, a guerra comercial entre Estados Unidos e China produz um efeito colateral ruim para o Brasil e para os países emergentes, porque ela gera um recrudescimento do protecionismo. 
Esse acordo, dada a sua expressão, envolvendo um quarto da população do planeta com renda per capita importante, dá um breque nessa tendência que vinha crescendo no mundo todo em termos de neoprotecionismo. 
A segunda coisa importante é que o Brasil estava fora do grande jogo global de comércio. Com a negação à Alca (Área de Livre Comércio das Américas), no começo dos anos 2003 e 2004, nós ficamos sem acordos bilaterais. Nós estávamos a margem de acordos comerciais importantes. Esse acordo nos traz de volta ao jogo.
Quais setores ganharão com esse acordo? Os que forem eficientes. Quem tiver uma produção competitiva e sustentável vai se beneficiar. 
Roberto Rodrigues, 76, engenheiro agrônomo e ex-ministro da Agricultura
Roberto Rodrigues, 76, engenheiro agrônomo e ex-ministro da Agricultura - Gabriel Cabral/Folhapress
Mas há setores em que somos naturalmente mais eficientes e outros em que estamos menos preparados. 
Se você me perguntar se a agricultura brasileira vai ganhar, eu te questiono: qual agricultura brasileira? O Brasil é um país muito heterogêneo. Em todos os setores teremos gente ganhando e gente perdendo.
Mas dizem: ‘Ah, mas a turma do leite vai perder, porque haverá importação’. Tem gente do leite que vai ganhar, quem é eficiente vai ganhar. Agora, quem tira 5 litros de leite por vaca por dia não vai ganhar em lugar nenhum mais. 
O que acontece com acordos bilaterais dessa envergadura é uma separação, uma peneira, em que ganham os mais eficientes, os mais tecnicamente colocados, que tiverem escala e agregarem valor a seus produtos.
Suco de laranja, café, açúcar e carne são produtos tropicais, que têm uma natural disposição para avançar, mas outros também têm. Por exemplo, nós exportamos menos frutas do que o Chile, então temos um espaço gigantesco para crescer na fruticultura.
Podemos avançar muito também na área de borracha natural, na área de cacau. Somos muito precários na aquicultura, mesmo com 8.000 km de litoral e águas internas abundantes. Tem que ter programa para isso. 
Então, trata-se, primeiro, de organizar a produção interna. Isso implica tecnologia e mecanismos adequados de renda, com seguro rural funcionando adequadamente.
Segundo, tem de investir em logística e infraestrutura. E aí não tem dinheiro do governo, então precisa de parcerias público-privadas. Isso só funciona se houver estabilidade macroeconômica e financeira, com reforma previdenciária, tributária, reforma do Estado e segurança jurídica. E tudo isso está caminhando. 

O senhor vê algum setor desaparecendo com o acordo? Acho pouco provável. O que acho que vai acontecer é alguns setores emagrecerem em termos de volume.
Quanto mais eficiente for o setor, tanto mais espaço haverá para ele. Quanto menos tecnologia e gestão, tanto menor será o espaço. Vai desaparecer gente, mas vai crescer também. 
O acordo pode impactar a relação do Brasil com outros fornecedores, como os EUA? O Brasil é um país tão relevante do ponto de vista da agricultura que ele não vai, não deve e não pode se restringir a um ou dois mercados apenas.
Nós estamos falando da Europa, mas o mercado mais promissor hoje é a Ásia. Por outro lado, a América do Norte também é um mercado relevante. 
Temos, então, de estar atentos a todos os mercados. Por isso que eu disse que o acordo entre União Europeia e Mercosul nos traz de volta ao jogo e nos dá um protagonismo diferente, porque o Brasil assume uma nova posição e passa a ser mais cobiçado.
 
A afinidade do governo Bolsonaro com os EUA e uma distância dos chineses podem prejudicar nosso comércio? Isso [com os chineses] foi uma questão inicial, em uma postura de diálogos sem preocupação e sem responsabilidade. Mas já desapareceu. Veja que na eleição do diretor-geral da FAO [agência das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura] o Brasil votou em um chinês.

E, como eu disse, o Brasil é muito grande. Não pode se restringir a parceria com os EUA. Até porque nós somos concorrentes deles no comércio mundial de alimentos.
E sobre acordo com a China e outros países? É possível? Acho que acordos com a China, com o Japão, que está em andamento, são fundamentais. Tem uma  série de acordos bilaterais que podem evoluir e melhorar as nossas condições comerciais.

Porque o acordo bilateral é um jogo. E, claro, quem não é eficiente vai perder. É a aposta na eficiência.
Hoje nós estamos preparados em termos de eficiência para fechar acordos bilaterais? Sem dúvida. Mas tem que investir permanentemente em tecnologia. E aí está um tema que me parece fundamental, se olhar os órgãos de pesquisa de São Paulo, eles estão tudo sucateados.
O Instituto Agronômico de Campinas é atualmente o pária da tecnologia brasileira tropical. E foi lá que começou tudo. Esses negócios [de tecnologias] de café, milho, laranja, algodão, cana… tudo foi feito no [instituto] Agronômico, e hoje está sem recursos humanos, financeiros. Está à deriva.
Se esses órgãos têm dificuldades em desenvolver e aplicar a tecnologia, como falar em aumentar competitividade e eficiência? É prioridade? Então tem de dar recurso. Não pode fingir que isso não existe.
O que está acontecendo com a Embrapa hoje? Ela vive um momento complicado também, até por questões políticas, mudança de diretoria. Tem um problema interno complicado, e está perdendo a eficiência. 
Em São Paulo, a minha tristeza é ver o que fizeram com o Instituto Biológico, Instituto Florestal, Instituto de Pesca, Instituto de Zootecnia. São grandes organismos que estiveram na fronteira do conhecimento e geraram tecnologia que deu competitividade para o setor rural brasileiro. E hoje estão tudo sem recursos financeiros. Então tem que olhar diferente e prestigiar o pesquisador.
O Brasil é um país de terra ruim, e só é bom por causa da tecnologia, que foi gerada por esses órgãos de pesquisa lá trás. Hoje eles estão aí, perdendo gente, sem reposição de técnico. É uma tragédia.
O Estado brasileiro —quando digo isso não me refiro só ao governo, mas também ao parlamento, à sociedade— tem de estar muito atento a esse processo de competição, de busca de mercados sustentáveis e de investimento em tecnologia.
Hoje somos o país que tem a melhor tecnologia tropical do mundo. Mas tem gente vindo atrás e crescendo. Não podemos parar de investir.
Como o senhor avalia nosso cuidado com meio ambiente e sustentabilidade? Vamos analisar a vertente ambiental da sustentabilidade. Na produção de grãos no Brasil, do Plano Collor até hoje, a área plantada avançou 63%, e a produção cresceu 295%. Como foi aumentada a produtividade, 90 milhões de hectares foram poupados. 
A matriz energética brasileira tem 40% [de energia] renovável, enquanto no mundo todo é 14%. 
cana-de-açúcar representa 17% da matriz energética brasileira, enquanto a hidráulica responde por 12%.
Ou seja, a cana gera mais energia que todas as hidrelétricas brasileiras. Isso é sustentabilidade.
Então, em termos de sustentabilidade, nós estamos bem de maneira geral.
E a questão da liberação do uso de agrotóxicos? Há 20 anos, havia uma reação grande do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) em relação a isso. Alguns críticos acham que essa reação era de caráter ideológico. O resultado é que um defensivo agrícola demorava nove anos para ser registrado no Brasil. Nos EUA e na Europa, um ano, um ano e meio.
Todo novo produto agrícola de origem química melhora e evolui em relação a anteriores. Vai ficando mais sustentável e menos agressivo ao meio ambiente. Então, quanto mais demorar para registrar, tanto menos proteção ao meio ambiente nós vamos ter.
O que a Tereza Cristina fez foi montar uma força tarefa para registrar defensivos agrícolas novos, porque os velhos que estávamos usando não eram mais aceitos nos países de origem.
Então não há nenhum erro nisso, ao contrário, é uma forma de modernizar o conjunto de defensivos agrícolas que estavam com processos atrasados.
O problema é que o defensivo tem que ser usado para a planta adequada, para a doença adequada, na dose adequada. 
Então o senhor enxerga positivamente o trabalho da Tereza Cristina? Estou muito contente com ela. Veja o acordo Mercosul e União Europeia, eu fiquei três anos e meio trabalhando com isso, viajando, indo de lá para cá, e não consegui sair do lugar. Agora, ela conseguiu em seis meses. Maravilha.
Tentei registrar defensivos agrícolas, [mas] não havia meios. Não consegui registrar nada. Ela registrou muitos defensivos rapidamente. Então ela está soltando processos que estavam encalhados.
E como avalia o trabalho do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles? Ele está fazendo um trabalho dificílimo, porque há uma versão sobre a questão ambiental que foi colocada erradamente ao longo dos anos. 
Aquilo que eu falei sobre produtividade agrícola e área preservada ninguém sabe. Nós reduzimos a demanda por terra nova com produtividade, isso é sustentabilidade.
‘Ah, mas está desmatando a Amazônia’. Quanto está desmatando? É ilegal? Mete polícia, toca na cadeia quem for bandido. A ilegalidade no campo, na cidade, na Amazônia, no mar tem que ser combatida. É ilegal, cadeia nele! Tem lei para isso. 
Acho que o Ricardo Salles pegou uma herança dificílima, radicalizada, e acho que ele faz um esforço enorme para desradicalizar. E muitas vezes a forma de encontrar o caminho do meio é radicalizar do outro lado, para depois caminhar para o acordo e entendimento. 
Como o senhor vê a agricultura brasileira no futuro? Meu temor é que esse universo tecnológico gigante se transforme em um fator de concentração da renda no campo. 
Isso é péssimo porque a agricultura, para que seja saudável no seu tecido socioeconômico, tem que ter o pequeno [produtor], o médio, o grande, a agricultura familiar, a empresarial, o transgênico, o orgânico. Tem que ter de tudo.
Então é fundamental no Brasil que o pequeno seja preservado. E se a tecnologia não chegar a ele, ele não será preservado.
Por outro lado, políticas agrícolas têm que ter essas inovações como fator determinante. Não pode dar crédito e seguro para um produtor que não use tecnologia. 
Além disso, a minha tese é que o seguro seja a baliza norteadora da política pública da agricultura brasileira. Com seguro, não precisa ter crédito do Banco do Brasil. Se der uma geada, uma seca ou o preço cair, o produtor vai receber a diferença e vai ficar estável a atividade dele.
Sem estabilidade produtiva, o pequeno produtor quebra, e o grande vai lá e compra. Isso não pode acontecer. Tem que ter uma política de renda no campo, lastreada no seguro, no princípio que a Europa desenvolveu nos anos 50.

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