ALIÁS
Ele coletou espermatozoides do cadáver de um homem, 10 horas após a morte. Agora a Justiça argentina aceitou a geração do bebê
Rodrigo Cavalheiro CORRESPONDENTE / BUENOS AIRES,
O Estado de S.Paulo
O Estado de S.Paulo
23 Julho 2016 | 16h00
Há cinco anos, um trem bateu no ônibus que Pablo pegava para o trabalho e o matou. Dez horas depois, o médico Santiago Brugo foi ao necrotério e tirou espermatozoides do cadáver do homem de 38 anos. Fez isso com a ordem judicial conseguida por Cecilia, com quem Pablo tentava um filho havia 7 anos e tinha começado um tratamento de inseminação em Buenos Aires. A Justiça autorizou agora Cecilia a engravidar do sêmen coletado do marido sem vida.
Se casos de inseminação post mortem são ainda pouco comuns, a história do argentino que começou a ser pai depois da morte é ainda mais rara. No dia 13 de setembro de 2011, o ônibus de Pablo passou sob uma cancela semiaberta para cruzar uma das linhas ferroviárias que ligam Buenos Aires à região metropolitana. A locomotiva destroçou a frente do veículo, descarrilou e bateu numa composição em sentido contrário. A colisão matou 11 e feriu 212. Ficou conhecida como Tragédia de Flores, referência ao bairro em que nasceu e cresceu o papa Francisco.
Pablo morreu 15 dias antes da planejada inseminação. Quando o atestado de óbito pareceu encerrar a busca de Cecilia pela maternidade, sua melhor amiga sugeriu que salvasse o sêmen do marido. Viúva havia duas horas, ela ligou para o médico com quem tinham feitos os exames, que apontavam obstrução nas trompas dela e a má qualidade do sêmen dele.
“Quando Cecilia me ligou, eu disse que precisaríamos de uma autorização judicial. O procedimento foi simples, pois dispensa anestesia. É feita um incisão e retirada parte da polpa testicular”, disse Brugo ao Aliás. Quando terminou a coleta no cadáver, que nem foi retirado da bolsa mortuária, o médico correu para o laboratório. Surpreendeu-se com a quantidade de células em movimento, 11 horas depois da morte. Havia 5 espermatozoides móveis por campo, cerca de 1.000 no total.
Cecilia ponderou durante dois anos se usaria o material congelado. Há três anos, com o apoio das duas famílias, procurou o médico para dizer que tinha certeza. A disputa passou então à Justiça, que precisava permitir a inseminação. Em sua decisão, a juíza Celia Giaodanino considerou que Pablo “tinha a vontade firme de ser pai, desejo frustrado imprevistamente pelo terrível acidente em que perdeu a vida”.
A magistrada até pesou o principal argumento de quem critica o plano de Cecilia. Concordou que o documento assinado pelo casal “não menciona expressamente a possibilidade de continuar com as técnicas de fecundação depois da morte de um dos envolvidos”. Mas levou em conta os depoimentos de uma irmã, da mãe e de uma colega de trabalho de Pablo, que relataram seu sonho de ser pai. O principal fundamento para dar o ok foi um princípio jurídico básico: o que não está proibido é permitido.
“Isso resolve a discussão. Estava dentro do projeto de vida dele ter um filho. Ele manifestou seu consentimento, como em um testamento. Queria isso e não pôde fazer porque perdeu a vida na tragédia. É como alguém que pede para não ser mantido por anos com medicação se entrar em coma”, argumenta o constitucionalista Andrés Gil Domínguez, especialista em direitos fundamentais, cuja obra ajudou a embasar a decisão judicial.
No projeto do Código Civil argentino em vigor desde agosto de 2015, um artigo exigia que o consentimento para o prosseguimento da inseminação mencionasse expressamente a hipótese de morte. A Igreja pressionou pela supressão da lei de todo o tópico sobre o tema, para não estimular a concepção não convencional. Paradoxalmente, isso contribuiu para deixar o regramento mais permissivo e permitir a interpretação que favoreceu Cecilia.
A jurista Marisa Herrera ajudou a redigir o código e reprova a atuação dos juízes neste caso. “O que se fez neste caso deveria estar proibido. Se eu morro a caminho de me casar no registro civil, alguém pode dizer que o casamento se consumou porque se pode provar que eu pretendia me casar? A verdade é que nunca foi prestado o consentimento e o casamento não se realizou”, compara. Marisa ressalta que a vontade de ter um filho não significa querer deixar um descendente em caso de morte. “Ele disse que queria participar de um tratamento. Não autorizou sua mulher a extrair seu sêmen e a ter um filho que terá vínculo de filiação”, acrescenta a advogada. Para ela, trata-se de um desejo da família de Pablo ter um filho do morto. Uma dificuldade de processar o luto.
A advogada relativiza o valor da opinião dos médicos nesses casos. Acredita que eles estão interessados financeiramente em concluir a inseminação. Um tratamento privado na Argentina custa 70 mil pesos (R$ 17,4 mil), mas raramente recorre a ele quem não tem plano de saúde. Algumas províncias cobrem gratuitamente o tratamento.
O médico de Cecilia conta que a projeção do caso o colocou em dilemas em que a ciência permitiria seguir adiante – e cobrar por isso. “Uma senhora me ligou oferecendo um jato particular porque o filho tinha morrido e ela queria que eu congelasse o sêmen para ela ter um neto. Um homem fez proposta semelhante, mas não é correto. Sem consentimento expresso, não é permitido dar esse passo”, afirma.
Em 40 anos no ramo, Brugo havia feito este procedimento uma vez. As células reprodutivas masculinas então não foram usadas porque o morto, um espanhol que sofreu um ataque cardíaco na Argentina, não tinha documentado que queria ser pai. A partir da história de Pablo e Cecilia, ele crê que a anuência expressa em caso de morte se tornará mais comum. E prevê outras variáveis. “No futuro, será possível fazer o mesmo em caso de morte da mulher”, projeta.
Este mês, Cecilia passará pela inseminação interrompida em 2011 e tentará ser mãe aos 41 anos. A quantidade de espermatozoides de Pablo, que hoje teria 43 anos, é suficiente para várias tentativas.
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