segunda-feira, 25 de julho de 2016

Platão revive na Terra do Gelo: o que o Brasil pode aprender com a Islândia, OESP

Quando a Islândia quase foi à bancarrota na crise econômica de 2008, muitos disseram: “Acabou”. Mas a ilha nórdica, primeiro país a sofrer as consequências da derrocada do banco de investimentos Lehman Brothers, não só não acabou como ensinou o mundo inteiro a retomar o caminho da prosperidade sem seguir as receitas de rígida austeridade aviadas para Grécia, Itália e Península Ibérica.
Foto: BARA KRISTINSDOTTIR | NYT
 


Quando a Islândia foi à França disputar a Eurocopa com uma seleção formada por jogadores amadores e treinada por um dentista, muitos disseram: “Não passa da primeira fase”. Mas o time islandês, que jamais se qualificou para uma Copa do Mundo, não só passou da primeira fase do torneio da Uefa, desclassificando Hungria, Áustria e Inglaterra, como já ultrapassou a Holanda e Rússia no ranking da Fifa.
A Islândia é um fenômeno. Sua capital, Reykjavik, é a mais descolada do norte da Europa, “uma Brooklyn com fiordes”, na definição de um fã nova-iorquino. A última (ou penúltima) façanha islandesa foi alçar um intelectual à presidência da República. Muitos diziam: “Não se elege”. Mas, em 25 de junho, o historiador Gudni Jóhannesson se elegeu, e daqui a 15 dias toma posse. Com 48 anos, será o presidente mais jovem da história dessa república parlamentarista, que é – outra façanha notável – a mais antiga democracia europeia. Em funcionamento há 1017 anos, seu parlamento (Althing) também é o mais antigo do planeta.
Com 103 mil km², a Islândia cabe inteira no estado de Pernambuco. Sem analfabetos, nem forças armadas (uma guarda costeira dá para o gasto), com um padrão de bem-estar social escandinavo, impostos baixos e uma inabalável fé no uso de energia renovável, seria um paraíso cercado de água por todos os lados. Pena que ela seja tão gelada.
Sua população é comparável à de Blumenau – o que explica porque bateu aquele vazio na ilha, notadamente na capital Reykjavik, durante a disputa da Eurocopa, pois, ao que consta, 10% dos seus 332.529 habitantes foram acompanhar in loco os últimos jogos da seleção nacional. O Brasil supera a Islândia em território, índice demográfico e (por enquanto) futebol, mas como tamanho não é documento nem corrupção algo que conte a favor, perdemos para ela em todos os quesitos que definem uma nação civilizada, igualitária e progressista.
“Ilha laboratório”, assim João Moreira Salles a definiu depois de visitá-la para duas esplêndidas reportagens para a revista piauí. Queria verificar in loco os estragos da primeira vítima do crash do milênio, e teve várias surpresas. Em pânico com a crise (não há viquingue que aguente dez semestres sucessivos de queda do PIB), 5 mil islandeses emigraram para outros países da Europa em 2009. Mas, sem que fosse necessário montar uma “Operação Iceberg”, banqueiros irresponsáveis foram presos ou se autoexilaram, e os de maior notoriedade tiveram suas fotos afixadas num mictório público de Reykjavik, para as irrigações cabíveis.
Graças a uma série de astuciosas medidas econômicas – destaque para o uso de reservas do país para socorrer os islandeses, não os bancos falidos – , o tsunami financeiro acabou virando uma marolinha. A pesca industrializada reaprumou, assim como a agricultura e o ecoturismo, os três pilares da economia local, o PIB voltou a crescer, o desemprego despencou, o estado de bem-estar social pôde ser mantido. A ilha recebe por ano 1,1 milhão de visitantes, o triplo de sua população. Imagine o Brasil recebendo 600 milhões de turistas por ano. Só imagine.
Até a crise de 2008, a Islândia era um vago ponto no planisfério mental dos brasileiros, muitos dos quais, na sua santa ignorância, a confundiam com Irlanda e Finlândia. Hoje, graças à projeção de Björk, da banda pós-rock Sigur Rós, do vulcão Eyjafjallajökull, da recém-finda Eurocopa e do noticiário em torno de Game of Thrones (em parte filmado nos arredores do lago Mývatn), já a conhecem ao menos precariamente por aqui.
Mas ainda falta em nossas livrarias uma boa tradução de Hálldor Laxness, o Nobel de Literatura de 1955, um escritor dos mais originais e engraçados do século passado. Seu maior êxito internacional, Sob a Geleira (traduzo literalmente a versão em inglês, Under the Glacier), é uma retomada às avessas das aventuras do geólogo alemão Lidenbrock de Viagem ao Centro da Terra, de Jules Verne, o primeiro estrangeiro a descer pela cratera de um vulcão islandês, numa obra de ficção.
A ilha laboratório desponta agora como uma ilha platônica. Foi Platão quem inventou o conceito de filósofo-rei, ao entronizar em sua República os mais sábios da pólis grega. Nela, o mando político era (ou seria) exercido pelos mais capazes intelectualmente, não pelos mais fortes e poderosos. O exemplo máximo dessa utópica e elitista concepção de “inteligência no poder” continua sendo o imperador-filósofo Marco Aurélio (121-180 d.C.), que se recolheu a uma aldeia na fronteira com a Gália para de lá, vivendo modestamente, mandar em todas as terras subjugadas pelo império romano e escrever suas Meditações, belo e melancólico receituário sobre as virtudes da austeridade, da honestidade e da primazia do bem comum.
Outros líderes políticos intelectuais o mundo conheceu. De Thomas Jefferson e Abraham Lincoln a Gandhi e alguns rajás da Índia, nenhum com poder comparável ao de Marco Aurélio, nem a mesma influência no plano das ideias. Lenin, Mao e o aiatolá Khomeini também eram intelectuais. E o mesmo se diga do escritor e filósofo checo Vaclav Havel, que talvez tenha sido o mais bem-sucedido Ersatz moderno de Marco Aurélio.
Até nós tivemos um indiscutível intelectual no comando de nossa nada platônica República, Fernando Henrique Cardoso, o presidente-sociólogo. Chegou a vez da Islândia.

Na última edição da revista The New Yorker, Adam Gopnik faz um perfil de Gudni Jóhannesson, o futuro presidente-historiador, que conheceu em abril do ano passado num seminário para escritores em Reykjavik, organizado pela romancista canadense Eliza Reid, a futura primeira-dama. Melhor guia do país, de seu passado e de seu presente, Gopnik não podia ter tido – sem precisar sair do ônibus em que todos os dias percorria a ilha, com o historiador ao lado do motorista, a empunhar um microfone e desfiar histórias e mais histórias do país, com simpatia, erudição e bom humor. Vez por outra, uma pausa para o futebol, seu esporte favorito. Jóhannesson pode até ter simpatias pelo KR ou pelo Valur, os dois clubes que mais vezes conquistaram o campeonato islandês, mas seu coração só bate mais forte quando entra em campo o Manchester United.

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