VINICIUS
MOTA
03/07/2016 02h00
538
PUBLICIDADE
RESUMO O livro "Brazil in
Transition", que acaba de ser publicado por um professor americano e três
brasileiros, conclui que o país se colocou, a partir dos anos 1990, numa rota
firme para se tornar desenvolvido. Leitura é fecunda, pois enfatiza de modo
sistemático o papel das instituições na história, mas sujeita a caloroso
debate.
Para
Robert Solow, o americano premiado em 1987 com o Nobel e perfilado entre os
economistas mais influentes da segunda metade do século 20, a sua disciplina
está para a sociedade assim como a física para a natureza. "Existe um
único modelo válido para o mundo. Ele só precisa ser aplicado", escreveu
em 1985.
A
chamada síntese neoclássica, definida na geração de Paul Samuelson (1915-2009)
e legada à de Solow, fez repercutir por décadas nas mais reputadas academias do
globo esse modelo de como o mundo funcionaria. A convergência da grande maioria
das nações ao padrão de desenvolvimento das mais avançadas seria questão de
tempo e de administrar a terapia certa.
A
história, de um lado, e o avanço do conhecimento, do outro, enfraqueceram o
elegante arcabouço neoclássico. Não é possível atribuir à evolução material das
sociedades humanas no tempo um comportamento regular e previsível.
O
pressuposto que levaria ao máximo rendimento na economia –o indivíduo racional
e plenamente informado em busca do interesse próprio– é muito raro nas
condições reais, percebeu Ronald Coase (1910-2013) em seus trabalhos sobre o
funcionamento das empresas.
Coase,
Nobel de 1991, concluiu que há custos implícitos no comércio que se originam
fora do ambiente de produção. Esses custos, denominados "de
transação" ou externalidades, sempre dificultam a atividade econômica, num
gradiente que pode inviabilizá-la.
Coube
a Douglass North (1920-2015), Nobel de 1993, enfatizar a crítica mortal do
insight de Coase ao pressuposto neoclássico e extrapolar esse achado para os
campos da história econômica e do desenvolvimento comparado. Custos de
transação são manifestações da eterna luta das comunidades humanas contra a
ignorância, a incerteza e a opacidade do futuro.
Porque
os homens estão imersos num labirinto de relações cujo mapa não enxergam, eles
erguem arquiteturas diversas na tentativa de domar os monstros da incerteza e
da violência, de regularizar na medida do possível o curso dos acontecimentos e
de mitigar sua brutalidade potencial. As arquiteturas são as instituições:
regras explícitas e tácitas de como o jogo social funciona, bem como os meios
para sua efetivação. Tais regras se manifestam na economia sobretudo como
custos de transação.
liberdade
As instituições, continua Douglass North, limitam por definição a liberdade de
escolha dos indivíduos. Elas podem fazê-lo de modo a favorecer mais ou menos a
eficiência e a prosperidade de um povo. Evoluem e mudam com o tempo, mas não
necessariamente para arranjos mais produtivos.
Apenas
um minoritário conjunto de nações, nos 10 mil anos de história da civilização,
logrou estabelecer, e muito recentemente, uma estrutura de estímulos flexível o
suficiente para permitir uma moderada, mas constante e secular, evolução da
prosperidade.
Essas
são as "sociedades de acesso aberto", para usar o termo de North, ou
as "inclusivas", na definição de Daron Acemoglu e James Robinson.
Elas comungam entre si traços como o império abstrato da lei sobre todos, o
livre acesso ao empreendedorismo, a proteção do direito à propriedade, a ampla
participação política e democrática, a responsabilização de autoridades, o
número elevado de organizações públicas e privadas e um volume relativamente
alto de arrecadação e despesa governamentais, especialmente no nível
subnacional.
A
grande maioria das comunidades, entretanto, definiu arranjos que produzem
grande variabilidade da renda no curto prazo, mas, quando muito, semiestagnação
no decurso dos séculos. São os "Estados naturais", termo que North e
colegas deslocaram do léxico hobbesiano, ou as "sociedades
extrativistas" de Acemoglu e Robinson.
Nesses
arranjos mais comuns, a incerteza e a violência são reduzidas por meio de um
pacto restrito entre elites dominantes. A coalizão ela mesma está bastante
vulnerável a choques internos e externos, o que açula a instabilidade.
Coase,
North e outros desbravadores do campo nos últimos 20 anos, como a estrela de
Harvard Dani Rodrik, restituíram um conjunto de disciplinas, das humanidades e
das ciências mais duras, à base do conhecimento econômico ortodoxo, aquele
discutido nas melhores escolas e nas principais publicações acadêmicas. Por
essa via, uma nova teoria do desenvolvimento está em sedimentação.
Se
faltava aplicar esse instrumental, de modo sistêmico, ao problemático
desenvolvimento brasileiro, a lacuna acaba de ser preenchida com "Brazil
in Transition: Beliefs, Leadership, and Institutional Change" [Princeton
University Press, 280 págs., US$ 39,50, e-book Kindle, R$ 90,59] (Brasil em
transição: crenças, liderança e mudança institucional), parceria entre o
pesquisador americano Lee Alston (Universidade Indiana) e os professores brasileiros
Marcus Melo (Universidade Federal de Pernambuco), Bernardo Mueller
(Universidade de Brasília) e Carlos Pereira (FGV-RJ).
O
primeiro choque ao atravessar o livro é entre a sua conclusão principal, de um
lado, e o "timing" de seu lançamento, do outro. Foi pensado para
abranger o período de meio século entre 1964 e 2014, foi finalizado em meados
de 2015 e chega ao público no que parece ser o ponto mais baixo da pior crise
econômica do Brasil como o conhecemos (urbano e populoso).
O
contraste não poderia ser maior em relação à mensagem otimista do livro: a de
que o Brasil iniciou, em meados dos anos 1990, uma transição decisiva para
tornar-se nação desenvolvida, ou uma sociedade de acesso aberto.
Não
bastasse a dificuldade de enfrentar a prova adversa da renda per capita –cuja
evolução isoladamente não corrobora a tese–, os autores ainda terão de se
deparar com o profundo pessimismo, com a dose cavalar de incertezas políticas e
com o alargamento de horizontes para a recuperação que a derrocada econômica
ajudou a produzir.
Para
complicar, o pressuposto da narrativa é o de que o Brasil encontrou o seu
caminho para a prosperidade quando a rede de forças políticas dominante,
embalada pelo sentimento popular, chacoalhada por choques diversos e conduzida
por lideranças algo visionárias, aderiu a um modelo de crenças calcado no
amálgama entre inclusão social e responsabilidade fiscal. Aderiu e modificou as
instituições nesse sentido.
A
hipótese suporta bem a passagem dos anos Fernando Henrique Cardoso para o
primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva.
Se
a ideologia do PT prenunciava tentativa de arrancar uma série de estacas que,
sob Collor, Itamar e FHC, aprofundaram o controle da finança pública e a
abertura da economia, nenhuma reviravolta ocorreu –seja porque os petistas não
ousaram tanto, seja porque a reação social não permitiu.
Já
a aspiração do partido de acelerar a inclusão social e a redução da pobreza
pôde ser exercida com desenvoltura, pois se harmonizava com as crenças
dominantes e com os estímulos por elas favorecidos.
A
segunda administração Lula e, principalmente, a aventura Dilma Rousseff,
balançam a confiança do leitor na higidez do argumento de "Brazil in
Transition".
Como
20 anos de hegemonia da crença na inclusão social fiscalmente responsável e de enraizamento
de suas balizas institucionais puderam abrir espaço para subversão tão vasta e
desafiadora do modelo, no sentido do desenvolvimentismo inflacionário e
predatório que os autores afirmam ter sido superado com o fim da ditadura, em
meados dos anos 1980?
Há
bons argumentos de defesa no livro. Uma parte está entrincheirada na ideia de
que a trajetória de transição para um padrão mais aberto de sociedade é sempre
acidentada e sujeita a reversões.
RISCOS
O
termo utilizado é "inclusão dissipativa" para descrever as brechas
que o processo oferece a atores ainda bem posicionados em busca de proteção
contra os riscos de empobrecimento e perda de poder implícitos na abertura.
Será,
no entanto, que os custos de transação, para usar a linguagem de Ronald Coase,
estariam superando os benefícios da inclusão no Brasil? Estaríamos mesmo diante
de um caso de inclusão dissipativa? Ou, ao contrário, de dissipação inclusiva?
Isso apenas com o tempo vai se esclarecer.
A
resposta mais eficaz de "Brazil in Transition", porém, está na
própria dieta da crise econômica e política. Se houve uma série de agravos
contra os pilares do sistema de crenças e instituições dominante, houve reações
igualmente duras desse arcabouço, no sentido de tentar restituir o jogo para
dentro das fronteiras delimitadas.
A
copiosa corrupção de colarinho branco e no empresariado conectado ao Estado
produziu, como reação, o julgamento do Mensalão, o caso do Petrolão e seus
filhotes. Todos vão pender como uma espada oculta sobre o mundo do poder durante
décadas a fio.
A
cavalgada populista e inflacionária de Dilma Rousseff, que rompeu os limites da
responsabilidade fiscal e abusou da tolerância popular e social às mentiras de
campanha, acabou punida com o impeachment. Que presidente vai se atrever a repetir
a dose?
A
inflexão desenvolvimentista já havia sido estancada e revertida, como
tendência, antes mesmo da queda da presidente e por ela mesma, no seu curto
segundo mandato. A correção de rota, para a retomada da abertura, acelerou-se
com a equipe econômica nomeada por Michel Temer.
As
conclusões do livro, como se nota, despertarão caloroso debate, mas a sua
contribuição mais duradoura terá sido, sem dúvida, a de estabelecer o marco
procedimental de uma nova teoria do desenvolvimento no e para o Brasil.
Dificilmente
daqui em diante vai-se abordar esse tema, nas rodas mais sérias de debate e
pesquisa, sem mencionar o papel crucial das crenças, das lideranças, das
oportunidades (às vezes aleatoriamente oferecidas pela história, mas nem sempre
aproveitadas), das expectativas frustradas ou satisfeitas sobre as ações e das
regras do jogo, modeladas e remodeladas pelo entrechoque dos homens no ambiente
opaco do tempo.
A
história econômica e política do Brasil urbano, populoso e democrático passa a
ter uma leitura e, sobretudo, uma maneira de leitura das mais fecundas.
Nota: A Folha promove debate sobre o livro
"Brazil in Transition" no auditório do jornal na terça (5), às 19h.
Os autores serão entrevistados por Zeina Latif, economista-chefe da XP
Investimentos, Celso Rocha de Barros, colunista da Folha, Marcos Lisboa,
presidente do Instituto Insper, e Sergio Fausto, superintendente executivo da
Fundação Fernando Henrique Cardoso. O evento é gratuito e as inscrições devem
ser feitas pelo site eventos.folha.uol.com.br.
VINICIUS MOTA, 42, é secretário de
Redação da Folha
Nenhum comentário:
Postar um comentário