Antes,
suspeitávamos que o Brasil era inclinado ao delírio coletivo; 32 fases depois,
temos certeza
O Estado de S.Paulo
16 Julho
2016 | 16h00
O fato é que o País segue embalado
por revelações bombásticas. De duas a três vezes por semana, subverte-se a
ordem razoável das coisas, das pessoas e dos acontecimentos. Na literatura, o
nome disso é realismo fantástico. Na vida como ela é, no Brasil contemporâneo,
responde pelo nome de nosso cotidiano.
Nessa perspectiva, marco zero é o 17
de março de 2014. Naquela segunda-feira, a PF caiu da cama e anunciou a prisão
de uma quadrilha que lavava dinheiro em postos de combustíveis. Batizaram de
Lava Jato, numa alusão ao fato de que um dos postos de fato lavava carros, além
de dinheiro. Como costuma acontecer nos momentos em que nossa existência muda
de rumo, naquele dia nos ocupamos de banalidades. A notícia foi a apreensão de
um Camaro amarelo. Mas foi a partir dali que se instaurou o imprevisível.
As 32 fases da Operação Lava Jato,
com suas derivadas e correlatas, não apenas revelaram o que era sabido: a
corrupção infesta o público e o privado no País. Confirmaram que o diabo mora
nos detalhes – e os detalhes é que são insólitos.
Já se sabia que dá para parcelar
iates e aviões de luxo no Brasil. Aqui até rico gosta de um carnê. Mas a
Operação Zelotes, dedicada a desmascarar a compra de perdão para multas
fiscais, mostrou que fomos além: há crediário para a propina. Um integrante do
Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, o Carf, cobrou suborno de R$ 1,5
milhão do Itaú Unibanco e propôs parcelamento em 10 vezes – sem juros. A
Operação Boca Livre fez avant première de denúncias na área da Cultura. Segundo
os investigadores, a melhor peça da temporada foi o casamento com patrocínio da
Lei Rouanet numa praia chic em Santa Catarina. Evento sem paralelo: o primeiro
caso em que noivos e convidados foram penetras em festa bancada pela população.
Mas não sejamos injustos. Há diversidade na corrupção. Um dos muitos dutos do
chamado petrolão canalizou dinheiro das obras do novo Cenpes, centro de
pesquisas da Petrobrás, no Rio, diretamente para o financiamento de uma escola
de samba do Rio Grande do Sul, onde nem se sabia haver carnaval. Entre os
beneficiários, estava a madrinha da bateria, que teria recebido um mensalinho
de R$ 61,7 mil.
A equipe do Sensacionalista, site de
humor que inventa notícias falsas a partir de fatos reais, atesta que a
concorrência da realidade se tornou predatória. Como bem lembrou Martha
Mendonça, uma das sócias, enquanto o Brasil pena na crise econômica, a
indústria de tornozeleiras eletrônicas para presos cresce quase 300% e há falta
do produto. “Mais surreal, impossível”, diz ela. Nelito Fernandes, criador do
site, conta que o grupo troca ideias por WhatsApp. “Se a gente entra no meio da
conversa, já não dá para saber se o tema é a nossa piada ou a notícia
original”, diz. “Um dos elementos do humor é distorcer a realidade,
surpreendendo com algo inesperado. Mas, com uma realidade já distorcida como a
nossa, fica difícil.”
A política tem sido um ambiente
fértil na produção de esquisitices do grupo. Fernandes prossegue: “O que era
Eduardo Cunha tentando explicar que o dinheiro do trust no exterior não era
dele? Claro que não: era nosso. E o Lula, que foi empossado ministro, depois
deixou de ser, aí voltou... Nunca se viu algo assim. Na sequência vem outro
governo, com o discurso da moralidade, mas que ao mesmo tempo carregou vários
ministros acusados na Lava Jato. Esses fatos dificultam a piada, porque eles
mesmos já são piadas.”
Outro sócio do Sensacionalista, o
historiador Leonardo Lanna tem entre seus personagens favoritos o presidente em
exercício Michel Temer, não pelo resgate da mesóclise nos discursos ou por
desposar uma bela, recatada e do lar em pleno século 21, mas por sua suas
reviravoltas neste ano mirabolante: “Ele é o vice que, até então decorativo,
tira a presidente de cena com ajuda de um mega vilão, que acabou abandonado
depois de cumprir seu papel”.
O assustador é que a loucura geral é
documentada. Há escutas telefônicas. Computadores, celulares e tablets são
apreendidos. Imagens de câmeras de segurança são confiscadas. Documentos em
papel e pen drive são arquivados. Um arsenal de Big Brother com relatos de
vícios, manias, desejos inconfessáveis.
Grampo vazado revelou que o
ex-presidente Lula atende o telefone com a expressão “querido (a)”. Inclusive
quando do outro lado da linha está Dilma, usuária contumaz do adjetivo. Afinal,
o bordão “querido” foi criado por Lula ou Dilma?
O prefeito do Rio, Eduardo Paes,
numa escuta da PF, apareceu (com toda a finesse) dizendo a Lula o que muitos
pensavam e não tinham coragem de falar sobre o tal sítio em Atibaia que o
ex-presidente diz não lhe pertencer: “Agora, da próxima vez, o senhor me para
com essa vida de pobre, com essa tua alma de pobre, comprando esses barcos de
merda, sitiozinho vagabundo”.
Os registros só foram melhorando.
Segundo a Força Tarefa da Lava Jato, a Odebrecht montou um departamento para
fazer o pagamento das propinas e dispunha de planilhas listando cerca de 300
políticos, boa parte com codinomes. Não se sabe ainda se foram doações ou outra
coisa, mas a papelada foi reproduzida na internet. É divertido tentar ligar o
nome ao apelido. A deputada estadual gaúcha Manuela d’Ávila é “avião”, e o
ex-presidente José Sarney, “escritor”. Faz todo o sentido. Assim como está
explicado que Cunha seja “caranguejo”, o bicho que agarra e não solta – segue
aí, grudado no mandato. Mas falta explicar por que o ex-ministro Jaques Wagner
é “passivo”, e em que circunstância Jarbas Vasconcelos Filho ganhou o apelido
de “Viagra”.
Há indícios de que alguns agora
estão alucinando. Espalhou-se a convicção de que a PF pode rastrear conversas
de celulares desligados. Há quem diga que até sem bateria. O aparelho é vetado
em gabinetes da Esplanada dos Ministérios. Nem assim adianta. As revelações
mais bombásticas vieram da intimidade. O empresário Marcelo Odebrecht tinha
oito celulares e, aparentemente, sofre de hipergrafia – anota de tudo. A polícia
estimou ter encontrado algo como 500 anotações de sua autoria, boa parte
cifrada. Uma das mais polêmicas tratava de “Vaca”, “Vaccari”, “Vacareza”, e o
número 2,2 M – gastou-se tempo e massa encefálica e os investigadores
concluíram que se tratava de propina para o tesoureiro do PT, João Vaccari
Neto. No fim, era apenas Hamina, uma vaca (animal) de R$ 2,2 milhões.
Vaccari, aliás, foi pródigo em
aparições. Em sua delação, o empresário Ricardo Pessoa, dono da empreiteira
UTC, deixou registrado que o ex-tesoureiro não mencionava as palavras dinheiro
ou propina. Pedia “pixuleco”, substantivo até então obscurecido. Vaccari
contribui, assim, ao imaginário coletivo, pois o termo passou a designar o
boneco inflável de Lula com roupa de presidiário.
Já Sergio Machado, ex-presidente da
Transpetro, desenvolveu o curioso hábito de gravar conversas. O senador Romero
Jucá, registrado falando mal da Lava Jato, nunca desconfiou. Não ficou uma
semana na cadeira de ministro do Planejamento no governo interino após suas opiniões
virem a público. Conta-se que Lúcio Funaro, preso acusado de lavagem de
dinheiro e atuar como operador de Cunha, tem 18 meses de gravação que prometem
desnortear ainda mais a cena. Dizem que vai causar inveja a Machado.
O estágio atual é o da paranoia. O
herdeiro da maior construtora do País está na cadeia há mais de um ano. Um
banqueiro foi parar em Bangu 8. Até o tal do japonês da Federal, que escoltava
os criminosos, foi preso. Amanhã pode ser o vizinho que faz barulhos estranhos
na madrugada. Pode ser aquela tia solteirona. Você mesmo começa a temer pelo
que andou fazendo. E espera a PF bater na sua porta.
A Lava Jato
surpreendeu a colega Luciana Amaral, repórter de Política do Estado. Ela e
Haroldo, um filhote de Yorkshire, foram acordados por batidas fortes na porta e
gritos de “abre, é a Polícia Federal”. De pijama, descabelada e descalça, viu
pela fresta três homens fortes e paramentados exibindo um mandado assinado por
Moro. Estavam ali para a busca e apreensão de R$ 50 mil. Aos 24 anos, no início
da profissão, Luciana bem que desejou que o tal dinheiro existisse. Era tudo um
mal entendido. “O Brasil está uma maluquice e escrevemos sobre isso todo dia,
mas de repente eu fazia parte daquilo. É como entrar numa realidade paralela,
num sonho surreal”, diz ela.
No diagnóstico do economista e
cientista social Eduardo Giannetti, sofremos a recaída de uma doença antiga. “A
realidade no Brasil sempre foi surreal”, diz ele. Citando um texto de Hélio
Beltrão, ex-ministro da Desburocratização (sim, houve esse cargo), ele lembra
que tudo no Brasil é feito de cima para baixo e de trás para diante, sem nunca
romper com um padrão torto. “O Brasil vive ciclos: vem confiante, as coisas
parecem se encaminhar, acreditamos ter encontrado o nosso destino, mas aí as coisas
desabam.”
Após a 2ª Guerra, já houve três
ciclos seguindo esse padrão, pontua Gianetti. Fomos dos anos dourados de JK,
com Bossa Nova, Cinema Novo, capital nova, fusca zero quilômetro, à derrocada
fiscal e uma crise institucional que levaram ao golpe de 64. O segundo momento
começa no Milagre Econômico dos anos 70 e termina na Década Perdida de 80.
Depois vem o ciclo atual, que nasce no Plano Real, atravessa a transição serena
de FHC para Lula, e milhões de brasileiros emergem da pobreza e ingressam no
mercado de consumo. Até que tudo começou a ruir, no primeiro mandato de Dilma.
“Neste momento, estamos atordoados, no pior estágio dessa síndrome: predomina a
desesperança, a percepção da realidade está distorcida, e a Lava Jato escancara
a corrupção, endêmica, mas que agora subiu de patamar: dá impressão de que
ganhou uns três zeros.”
Difícil arriscar palpite para quando
e como encontraremos a cura. No livro de citações Antologia
da Maldade, os economistas Gustavo Franco e Fabio Giambiagi lembram uma
frase de Isaac Newton a propósito dessa limitação: “Eu consigo calcular o
movimento dos corpos celestes, mas não a loucura das pessoas”. Neste momento,
em viagem pelo Velho Mundo, Franco manda um recado: “Aqui, entre os gringos, só
se fala na corrupção do Brasil, não há outro assunto. Como disse Millôr, só
muda o corrupto, jamais o tema. Mas também não há um gringo que não confirme
que no seu país a coisa já foi preta, embora tempos atrás, há 50 ou 100 anos”,
diz Franco. Assim, imerso em outros ares, ele vislumbra que o tempo e o
amadurecimento podem nos levar, enfim, à sanidade: “A corrupção é uma doença da
juventude dos países. Ou seja, não somos estragados de nascença, somos apenas
jovens. Vamos nos corrigir, como aconteceu com franceses, japoneses e americanos”.
Até lá, haja Rivotril.
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