09 de novembro de 2013 | 2h 03
Dom Odilo P. Scherer - O Estado de S.Paulo
Poucas semanas antes de sua vinda ao Brasil, em julho, o papa Francisco esteve na Ilha de Lampedusa, no sul da Itália, já próxima da África. Ali aportam numerosos prófugos da miséria e da violência, procedentes do continente africano e de outras partes do mundo, sonhando com a vida na Europa.
Muitos, de fato, nem conseguem chegar à terra firme e naufragam, ou são abandonados pelos modernos mercadores de escravos no meio do Mediterrâneo em barcos abarrotados e sem o mínimo respeito à sua dignidade. Isso depois de terem pago caro a alguma organização criminosa pelo transporte e pela promessa de visto e emprego no lugar de destino. Milhares acabam morrendo e jogados ao mar, nada diferente do que ocorria durante séculos com os navios negreiros no período colonial.
O papa jogou flores ao mar para lembrá-los; ao mesmo tempo rezou pelos que pereceram, confortou sobreviventes; e denunciou o tráfico de pessoas como uma atividade ignóbil, uma vergonha para sociedades que se dizem civilizadas. Diante dessa questão os governos muitas vezes ficam indiferentes ou sem ação. Francisco conclamou todos à superação da "globalização da indiferença".
Desde tempos imemoriais, o tráfico de pessoas era praticado amplamente e até aceito, geralmente, em vista do trabalho escravo. O Brasil conviveu por séculos com a escravidão de índios e africanos; estes últimos eram adquiridos, traficados e comercializados como "coisa" num mercado vergonhoso, mas florescente. Foram necessários séculos para que a escravidão fosse formalmente proibida e abolida. Um progresso civilizatório!
Mas o problema voltou, se é que já havia sido erradicado de maneira completa. A forma contemporânea de escravidão é bem mais difundida e grave do que se poderia imaginar e está sendo favorecida pela globalização das atividades econômicas ilegais e clandestinas. Hoje, como no passado, essa atividade criminosa envolve organizações e redes nacionais e internacionais, com altos ganhos a custos e riscos baixos para os traficantes.
O tráfico de pessoas é praticado em vista de vários âmbitos da economia, legais e ilegais, como a construção civil, a agricultura, o trabalho doméstico, o entretenimento, a exploração sexual e, mesmo, a adoção ou a comercialização de órgãos. As vítimas, geralmente, são atraídas por promessas de trabalho e emprego, boas condições de vida em outras cidades ou outros países. Com frequência o tráfico de pessoas está ligado ao fenômeno das migrações e à permanência ilegal e precária em algum país.
Capítulo especialmente doloroso representa o tráfico de crianças e adolescentes, praticado por redes que envolvem pequenas vítimas do mundo inteiro. Entidades não governamentais que acompanham essa questão estimam que na década de 1980 quase 20 mil crianças brasileiras foram levadas para adoção no exterior; constataram-se numerosos processos fraudulentos nessas adoções. No Brasil há denúncias de tráfico de crianças e adolescentes destinados à exploração sexual; e continua grande o contingente de crianças de 7 a 14 anos de idade exploradas no trabalho infantil.
Algumas características do tráfico humano já foram estudadas. Antes de tudo, ele envolve o crime organizado, com uma complexa estrutura que relaciona meios e fins para facilitar suas atividades; há aliciadores, fornecedores de documentos falsos e de assistência jurídica, transportadores, lavagem de dinheiro... Existem rotas nacionais e transnacionais do tráfico de mulheres para a exploração sexual, de trabalhadores ilegais, de crianças, de órgãos. No Brasil, a região amazônica é a que apresenta o maior número dessas rotas, seguida pelo Nordeste.
O tráfico de pessoas é abastecido por hábeis e convincentes aliciadores, que induzem suas vítimas e as envolvem numa rede que lhes tira a autonomia e da qual dificilmente conseguem libertar-se. Em geral, há uma boa proposta de emprego e renda no aliciamento. Por ser um crime invisível e silencioso, seu enfrentamento é difícil; as vítimas normalmente não o denunciam, uma vez que passam a viver em situação de risco e de constrangimento. Além da vulnerabilidade social e econômica, elas têm sua dignidade degradada.
Como enfrentar essa chaga social, que representa um verdadeiro retrocesso cultural e civilizatório? Apesar da gravidade do problema, apenas recentemente ele começou a ser enfrentado seriamente pela sociedade. A partir da segunda metade do século 20, a escravidão no âmbito do trabalho forçado imposto pelas guerras começou a ser debatida em fóruns internacionais, de modo especial na Organização Internacional do Trabalho e na ONU. Com o avanço da globalização, alastrou-se ainda mais o tráfico de pessoas, mas também a consciência sobre a necessidade de normas adequadas e eficazes para combater esse tipo de crime.
Em 1999 a ONU realizou a Convenção de Palermo, contra o crime organizado transnacional, e seus protocolos estão em vigor desde 2003. O Brasil adotou essa convenção em 2006 e desde 2008 tem o seu próprio Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Há numerosas iniciativas de organizações da sociedade civil que se dedicam a enfrentar o tráfico de pessoas. A Igreja Católica também tem suas pastorais voltadas para essa problemática.
Em 2014 a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) promoverá, no período que precede a celebração da Páscoa, a Campanha da Fraternidade sobre o tema do tráfico de seres humanos. Será uma boa ocasião para uma tomada de consciência mais ampla sobre as dimensões e a gravidade do problema e para suscitar iniciativas e decisões para enfrentar essa vergonhosa chaga social em nosso país.
*Cardeal-arcebispo de São Paulo
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