10 de novembro de 2013 | 2h 16
Stephen Marche* - O Estado de S.Paulo
TORONTO - Ainda recentemente, uma imagem bastante acurada de Toronto circulou no Twitter. Uma das catracas do Metrô quebrou e nenhum guarda estava por perto, de maneira que os passageiros deixaram seus bilhetes e trocados ao lado dela, formando uma pequena pilha. Vivo numa cidade que respeita absurdamente a lei e os regulamentos. Mas há uma exceção: o prefeito. Ele fuma crack. E confessou o fato na terça-feira. Duas vezes.
Mark Blinch/Reuters
Primeira pedra. Ford culpou o 'estupor de embriaguez' em que se encontrava
Os velhos clichês sobre a cidade onde vivo começam a evaporar. O que ocorreu com Toronto? Onde está a "Nova York governada por suíços"? O uso de crack pelo prefeito Rob Ford - "em um de meus estupores de embriaguez", como admitiu - é o exemplo extremo de suas recentes aventuras ilícitas. Talvez a história mais reveladora de uma ocorrência policial que veio à tona há alguns dias tenha sido a escapada do prefeito com o amigo colega Sandro Lisi, atualmente na prisão, acusado de extorsão, deixando no caminho sacos de garrafas de vodca vazias.
Até agora isso não afetou sua popularidade, que na verdade aumentou 5 pontos na semana passada, para 44%. Isso depois de o delegado de polícia confirmar a existência de um vídeo "coerente" com notícias que surgiram pela primeira vez em maio, de que o prefeito fumava crack, fato que ele negou até terça-feira. Mas, de acordo com pesquisas de opinião, Rob Ford é cinco vezes mais popular que o atual Congresso dos EUA.
Talvez não surpreenda, portanto, que ele tenha se recusado a renunciar ao cargo. Ford aproveitou a confissão para lançar sua campanha pela reeleição no próximo ano. "Precisamos manter Toronto avançando", disse num comunicado preparado previamente. E ele poderá vencer com facilidade a eleição. Depois de um pseudo pedido de desculpas durante seu programa de rádio no último domingo, um ouvinte o comparou a John F. Kennedy. Outro lembrou que Winston Churchill tomava sua garrafinha de uísque por dia. Ford é um populista, sem dúvida, mas ele capta melhor que ninguém as fortes correntes de ira contra as instituições da cidade.
Aparentemente Toronto parece melhor que nunca. Graças a nosso sistema bancário bem regulamentado, tivemos uma recessão bastante suave. Recentemente a cidade passou Chicago em população. Sua qualidade de vida é alta, com boas escolas públicas, hospitais gratuitos e um governo que combina regulamentos de peso com mercados abertos. Mas a cidade está dividida e revoltada. E Ford soube aproveitar essas fissuras. A prefeitura está quebrada - resultado de uma fusão desastrosa realizada por conservadores provinciais. Nosso falido sistema de governo tem gerado graves consequências. Enquanto a rede de metrô congelou no tempo em 1980, a média de pessoas que utiliza o transporte público para ir ao trabalho superou a de Los Angeles.
Apesar dos seus arrancos racistas e das relações de seu irmão com a Ku Klux Klan, Ford tem grande apoio nos bairros de imigrantes na periferia - conquistado com base na alienação desses imigrantes. Insistiu para que linhas de metrô fossem construídas nesses bairros, em vez de defender propostas de trens rápidos mais sensatas. E ressalta que esses bairros devem ter exatamente o que as pessoas elegantes têm no centro da cidade. A ira contra as velhas elites é evidentemente profunda e resistente.
Os valores das velhas elites também sobrevivem. Toronto pode ser uma das cidades mais multiculturais do mundo, com mais da metade dos moradores nascida em outros países, mas conserva um forte legado do Império Britânico. O teórico de literatura Northrop Frye a descreveu como "um bom lugar para se cuidar da própria vida". E é ainda uma cidade em que só se pode comprar bebidas alcoólicas no Liquor Control Board (empresa criada pelo governo para controle do consumo) e onde a possibilidade de se abrir um cassino no centro provocou uma enorme campanha de oposição.
Diante disso a desculpa de Ford em seu programa de rádio refletiu velhos valores: "Não deveria ter me embriagado. Se você quiser tomar umas e outras, fique em casa. Não vai querer se tornar um espetáculo público". O erro do prefeito, segundo ele próprio, foi ter se comportado como um bêbado em público. Deveria tomar sua bebida em silêncio, no porão. Essa cidade do beber no porão (e fumar crack) está desaparecendo. A velha Toronto se esvanece. A Toronto de funcionários públicos responsáveis e insípidos, invisivelmente eficazes, de mulheres carrancudas que julgam silenciosamente, da veneração do tédio, a cidade com a pergunta do velho conto de Alice Munro nos lábios: "Quem você acha que é?" - Toronto, a insípida vai sumindo, talvez já tenha desaparecido. Tinha dignidade, reconheça-se. Toronto hoje é a cidade de Rob Ford, um total desastre em expansão, alimentada por segredos sombrios, desejos inarticulados e virulência incipiente. Vencendo 20 anos de decisões sensatas, ela começa a ficar interessante. Tornou-se uma cidade que fez de si mesma um espetáculo.
*Stephen Marche é romancista e editor colaborador de Esquire. Escreveu este artigo para o The New York Times.
TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
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