Xico
Graziano
A exumação do corpo do ex-presidente João Goulart
atiça o passado político. Naquela época, quando se buscava um caminho
alternativo para o desenvolvimento, estava na moda xingar o latifúndio. Sem
reforma agrária o Brasil não progrediria. A História, porém, desmentiu a
pregação nacionalista.
Era 13 de março de 1964. Enorme multidão, estimada em
150 mil pessoas, aglomerou-se na Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Convocado
por movimentos populares, sindicais e estudantis, o grande comício a favor das
"reformas de base" prometia mudar o rumo do País. Horas antes o presidente havia
assinado o Decreto 53.700/63, dando à Superintendência de Política Agrária
(Supra) poderes para iniciar as desapropriações de terras. Com voz entoada,
discursou Jango: "Trabalhadores, acabei de assinar o decreto da Supra com o
pensamento voltado para a tragédia do irmão brasileiro que sofre no interior de
nossa Pátria. Ainda não é aquela reforma agrária pela qual lutamos. Ainda não é
a reformulação de nosso panorama rural empobrecido. Ainda não é a carta de
alforria do camponês abandonado. Mas é o primeiro passo: uma porta que se abre à
solução definitiva do problema agrário brasileiro".
Sempre prometida, porém jamais concretizada, começaria
finalmente a famigerada reforma agrária. O arrojo de Jango ultrapassou as
expectativas: "Espero que dentro de menos de 60 dias já comecem a ser divididos
os latifúndios das beiras das estradas, os latifúndios ao lado das ferrovias e
dos açudes construídos com o dinheiro do povo, ao lado das obras de saneamento
realizadas com o sacrifício da Nação. E, feito isto, os trabalhadores do campo
já poderão, então, ver concretizada, embora em parte, a sua mais sentida e justa
reivindicação, aquela que lhe dará um pedaço de terra para trabalhar, um pedaço
de terra para cultivar". Aplausos fizeram tremer o palanque.
Jango
argumentava com consistência. Ele prometia distribuir as terras valorizadas,
economicamente viáveis, próximas dos centros de consumo, com transporte fácil
para o escoamento da produção. Citando os casos do Japão de pós-guerra, da
Itália, do México e da Índia, países que promoveram bem-sucedidas reformas
fundiárias, o presidente reforçava sua convicção sobre o sucesso da
empreitada.
Buscou,
ademais, um argumento econômico: "Os tecidos e os sapatos sobram nas prateleiras
das lojas e as nossas fábricas estão produzindo muito abaixo de sua capacidade.
Ao mesmo tempo que isso acontece, as nossas populações mais pobres vestem
farrapos e andam descalças, porque não têm dinheiro para comprar. Assim, a
reforma agrária é indispensável não só para aumentar o nível de vida do homem do
campo, mas também para dar mais trabalho às indústrias e melhor remuneração ao
trabalhador urbano". Uma aliança operário-camponesa.
Nos
anos de 1960 a maioria da população brasileira ainda morava na roça. À cidade,
entretanto, também deveria interessar a redistribuição agrária. Assim
estabelecia o receituário do marxismo tupiniquim: acabar com o latifúndio
estimulava, via elevação de renda das famílias, o mercado interno. Em
consequência, a ruptura com a oligarquia agrária deveria seduzir os empresários
nacionais. Fazia sentido.
O
comício da Central repercutiu imensamente. Dois dias depois, Jango encaminhava
ao Congresso Nacional mensagem pleiteando mudanças constitucionais para permitir
ao Estado pagar pelas desapropriações de terras com títulos de longo prazo, e
não mais em dinheiro. A confusão política aumentou. Uns, da esquerda, enxergavam
a aurora do socialismo. Outros, da direita, conspiravam dentro das Forças
Armadas. Em 31 de março, apenas 18 dias após o discurso da reforma agrária na
praça, Jango estava destituído por um golpe militar.
Muitos
analistas imputam ao radical gesto de Jango um fenomenal erro de avaliação
política. Ao acirrar a briga contra os partidos conservadores, que participavam
da coalizão governamental, provocou a ruptura que o derrubaria. Em outras
palavras, cutucou a onça com vara curta. Se tivesse sido mais conciliador, ou
preparasse melhor sua tacada, talvez os fatos se passassem de forma diferente.
Vai saber.
Surpreendentemente,
uma das maiores ironias da História estava por vir. Os militares, ao invés de
esquecerem a reforma agrária, logo a impulsionaram. Sob a coordenação do
poderoso Roberto Campos, então ministro do Planejamento, um grupo de trabalho,
recrutado entre os melhores quadros, avançou na formulação da proposta
reformista. Em 10 de novembro de 1964 a Emenda Constitucional n.º 10 passava a
permitir a desapropriação de terras com pagamento em títulos especiais da dívida
pública. Passados 20 dias, em 30 de novembro, o Congresso aprovava o Estatuto da
Terra, a mais avançada lei agrária do mundo. A esquerda quedou boquiaberta: os
milicos haviam roubado sua maior bandeira.
Não
a utilizaram, todavia. A rápida industrialização e urbanização, abrindo a
posterior globalização da economia, junto com a consequente expansão do
capitalismo, desmentiram a tese agrarista: o Brasil passou por uma incrível
modificação produtiva no agro sem alterar sua concentrada estrutura fundiária.
Mais importante que o tamanho da fazenda, a tecnologia começou a mandar no
campo. A revolução verde elevou a produtividade rural, abastecendo as
cidades.
Amortecida
por duas décadas, a reforma agrária ressurgiu em 1985. Incluída na agenda social
da redemocratização, perdeu sentido econômico. Comandada pelos invasores de
terras, realizada tardia e açodadamente, os assentamentos revelaram-se um
fracasso produtivo. João Goulart faleceu em 1976. Jamais imaginaria ver a
reforma agrária favelizando o campo.
AGRÔNOMO,
FOI SECRETÁRIO
DE
AGRICULTURA E SECRETÁRIO DO MEIO AMBIENTE DO ESTADO
DE
SÃO PAULO. E-MAIL:
XICOGRAZIANO@TERRA.COM.BR
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