03 de novembro de 2013 | 2h 17
OSCAR VILHENA VIEIRA, OSCAR VILHENA VIEIRA É JURISTA, PROFESSOR DA DIREITO GV, AUTOR DE ESTADO DE DIREITO, O DESAFIO DO DESENVOLVIMENTO (SARAIVA) - O Estado de S.Paulo
Na segunda-feira, protestos contra a morte do estudante Douglas Rodrigues, de 17 anos, bloquearam com ônibus e caminhões incendiados a Rodovia Fernão Dias. O jovem foi morto por um PM durante uma abordagem no domingo. O acusado diz que o disparo foi acidental.
A segurança pública é certamente o campo de ação estatal mais negligenciado pelas diversas forças políticas que ocuparam o poder nestas últimas duas décadas de democracia. Estabilizou-se a economia, modernizou-se o Estado, políticas sociais mais consistentes de redução da pobreza foram criadas. Mesmo o Judiciário sofreu uma importante reforma. No entanto, a mais direta e cotidiana relação do cidadão com o Estado - que se dá por intermédio dos órgãos de segurança pública - não sofreu grande alteração.
Os dados da violência no Brasil nestas duas décadas são alarmantes. Oficialmente, mais de 900 mil pessoas foram vítimas de homicídio doloso entre 1990 e 2011. Se somarmos as cerca de 130 mil mortes não contabilizadas, conforme detectado por pesquisa do Ipea, mais de 1 milhão de pessoas foram vítimas de homicídio nessa nossa guerra cotidiana. Número, aliás, muito superior às baixas americanas na Guerra do Vietnã, ou mesmo as mortes provocadas na Guerra do Golfo, ou no conflito Israel/Palestina, que já dura mais de seis décadas.
As deficiências de nossas instituições de aplicação da lei se explicitam não só pela incapacidade de combater a violência e o crime, como pelo próprio envolvimento de muitos de seus agentes com a prática criminal. Casos como o desaparecimento de Amarildo no Rio de Janeiro e a morte do jovem Douglas em São Paulo demonstram que as agências de segurança não se conformaram a sua função precípua de assegurar os direitos fundamentais dos cidadãos, em especial o direito à segurança das populações vulneráveis, tal como plasmado no caput do artigo 5º da Constituição. Os dados são alarmantes. Na cidade de São Paulo a letalidade policial é responsável por cerca de 20% das mortes. Destaque-se que nem sequer há números sobre as mortes em confronto com a polícia para a maior parte do País. Por outro lado, o número de policiais mortos, dentro e especialmente fora de serviço, é dramático. A agressão vil a um coronel da PM no dia 25 demonstra quanto a autoridade da polícia se encontra esgarçada.
A ambiguidade com que as forças de segurança têm enfrentado as múltiplas rebeliões originadas em junho, agindo ora de forma truculenta, ora de maneira surpreendentemente passiva, demonstra a falta de preparação técnica, e mesmo de liderança política, para lidar com situações de tensão que são inerentes à democracia. A confiança nas polícias, conforme mensurado periodicamente pelo ICJ/Direito GV, sofreu um fortíssimo abalo a partir de junho. Isso apenas amplia o temor de que não estaremos preparados para os grandes eventos que se aproximam, assim como não estamos preparados para garantir segurança dos cidadãos brasileiros no seu dia a dia.
Não se deve negligenciar melhorias incrementais importantes. São Paulo foi capaz de reduzir os homicídios de forma acentuada (cerca de 70%) ao longo da década passada. A simples mudança do secretário de Segurança Pública, no final de 2011, provocou uma redução de 64% no índice de letalidade. O mesmo ocorreu logo após o massacre do Carandiru, quando, à época, a polícia matava quatro pessoas por dia. Novas formas de policiamento comunitário têm sido implementadas com sucesso. Para não ficar restrito a São Paulo, no Estado do Rio de Janeiro o número de mortes provocadas pela ação policial caiu de 1.330 em 2007 para 415 em 2012, fruto da implementação de uma política mínima de segurança. É importantíssimo destacar, nesse sentido, que São Paulo e Rio foram capazes de, ao mesmo tempo, reduzir a violência policial e os homicídios. Deixando claro que a eficiência da polícia está diretamente ligada ao respeito que esta tenha pela população. Esses importantes avanços, no entanto, não foram capazes de gerar um círculo virtuoso, que impulsionasse a mudança do modelo das instituições de segurança pública.
A adoção de um modelo de polícia bipartida, no qual a corporação militar cumpre o policiamento ostensivo e preventivo e à polícia civil compete a apuração dos delitos, é um obstáculo de ordem estrutural. Interesses e conflitos corporativistas impedem que as duas polícias cooperem. A que está presente na rua não contribui para que a polícia investigue. Por outro lado, as informações coletadas pela polícia civil nem sempre são disponibilizadas para que se realize uma boa prevenção. Além desse problema estrutural, o poder público não se preocupou em qualificar profissionalmente as polícias. A formação de delegados e oficiais é profundamente bacharelesca. Os cargos de comando são concentrados nas mãos de pessoas letradas em direito, mas que não têm profundo conhecimento técnico nas áreas de sociologia e psicologia criminal. Isso para não mencionar questões triviais como recursos humanos, tecnologia da informação, gestão, etc.
A presidente Dilma manifestou sua "tristeza" com a "morte do jovem Douglas Rodrigues, de apenas 17 anos, na zona norte de São Paulo. Nessa hora de dor, presto minha solidariedade a sua família e amigos". Isso é política e simbolicamente muito importante. Esperamos que essa indignação sirva para impulsionar inúmeras propostas hoje pendentes no Congresso, como a construção de uma polícia de ciclo único, submetida a um maior controle social, composta por uma gama mais diversificada de profissionais - mais bem treinados e remunerados -, que tenha por missão clara a defesa dos direitos dos cidadãos. Também seria muito positivo que não mais ocorresse contingenciamento de recursos do Pronasci, de forma a incentivar boas práticas policiais nos Estados. Por último, a presidente poderia incentivar que seu governo liderasse uma discussão mais progressista sobre as drogas que, como sabemos, têm um papel devastador sobre a população jovem deste país.
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