domingo, 30 de junho de 2019

Daniel Martins de Barros Conteúdo Exclusivo para Assinante Propagandeando a verdade, OESP


O cérebro fica inclinado a tomar como verdade o que interpreta mais facilmente

Daniel Martins de Barros, O Estado de S.Paulo
30 de junho de 2019 | 03h00
Uma das maiores transformações que experimentei quando o assunto é turismo foi a possibilidade de trocar hotéis por casas de verdade. Claro que hotéis podem ser chiques, oferecem cafés da manhã que a gente só vê em novela e tolhas mais macias do que meu travesseiro. Mas – sobretudo para quem viaja com crianças – eles tendem a se tornar gaiolas de ouro: ficar limitado ao um quarto é aflitivo.
Daí a liberdade de se ter uma casa inteira para você – em vez dos mimos do hotel, o conforto de um espaço maior. Se você não se importa em cozinhar de vez em quando, lavar louça e fazer uma arrumação, viajar para uma casa de verdade é uma excelente opção.
Um desafio particular é fazer compras de mercado. Diante de marcas totalmente desconhecidas e rótulos nem sempre compreensíveis, às vezes nos damos mal. Já cheguei a colocar chocolate em pó num leite estranho, que só depois descobri ser um tipo de coalhada, por exemplo. Sim, é um caso bem “classe média sofre”, eu sei. Não é um problema de verdade. Mas tudo isso era só para dar um exemplo de como ficamos desorientados diante da ausência de informações prévias, mostrando como o cérebro depende das coisas que já ouvimos antes para se orientar.
Quando somos expostos a propagandas dos produtos, já ouvimos falar das marcas, fica mais fácil escolher, mesmo que a propaganda seja enganosa. O que nos leva finalmente para o tema do artigo – uma mentira repetida várias vezes começa a parecer verdade.
Foi publicado este mês um estudo feito com mais de 2 mil pessoas que investigou se a forma que pensamos influencia a tendência de acreditarmos mais nas mensagens repetidas. Um grupo que reuniu cientistas da BélgicaCanadáEstados Unidos e Alemanha entrevistou voluntários avaliando três aspectos mentais: a inteligência; o estilo cognitivo das pessoas – se elas eram mais intuitivas, confiando nas impressões, ou analíticas, avaliando mais cuidadosamente as informações; e a necessidade de fechamento – tendência que as pessoas têm de evitar ambiguidade e encontrar um sentido fechado nas informações.
A pesquisa começava pela leitura de várias afirmações ou manchetes políticas que deveriam ser apontadas como falsas ou verdadeiras. Em seguida, os voluntários eram submetidos aos testes cognitivos. Ao final eles novamente deveriam distinguir frases falsas de verdadeiras, misturando frases já apresentadas no início da pesquisa com outras vistas pela primeira vez.
Independentemente da inteligência dos sujeitos, de sua necessidade de fechamento ou de seu estilo ser mais intuitivo ou analítico, tudo mundo acreditava mais em informações falsas quando elas eram apresentadas pela segunda vez. Pode parecer desanimador o fato de que ninguém está imune ao fenômeno, chamado de efeito da verdade ilusória. Se todos somos sujeitos à influência da propaganda repetida, haveria esperança de combater tanta desinformação que nos cerca? A resposta provavelmente é sim, desde que consigamos expor as pessoas a mais e mais informações adequadas. 
O mecanismo provável por trás do efeito de verdade ilusória é que o cérebro fique inclinado a tomar como verdadeiras informações que seja capaz de interpretar mais facilmente. Essa fluência no processamento é tanto maior quanto mais habituados àquela informação estamos.
O efeito se mantém mesmo sem termos registro explícito daquela memória. Não espanta que o cérebro esteja programado para tanto; afinal de contas, na maioria das vezes em nossa história a repetição tinha mesmo relação com a verdade da informação. Não se trata de defeito de alguns leitores, mas de uma característica humana embutida em nossa mente.
Se formos capazes de apresentar as informações corretas para a sociedade, portanto, de forma clara, compreensível e – mais que tudo – incansável, podemos tornar o processamento das informações corretas mais fluente, ajudando-as a tomá-las como verdade. Como mostra minha experiência nos supermercados desconhecidos, apesar de muitas vezes ser mal utilizada, a boa propaganda é útil para ajudar a navegar o mar de informações que nos cerca.

‘Presidente optou por se tornar rainha da Inglaterra’, diz Pessôa, OESP

Douglas Gavras, O Estado de S. Paulo
30 de junho de 2019 | 05h00
O Congresso deve conseguir aprovar a reforma da Previdência, apesar da falta de articulação do Executivo, avalia o chefe de crescimento econômico do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), da Fundação Getúlio Vargas, Samuel Pessôa. “Difícil é imaginar o dia seguinte. Mudar a Previdência é uma condição necessária, mas ela não é suficiente (para reaquecer a economia)”, diz.
Para Pessôa, há condição para que o Comitê de Política Monetária (Copom), do Banco Central, corte os juros básicos. Ainda assim, antes de aprovar a Previdência, o governo não tem espaço para muitas medidas de curto prazo. A seguir, trechos da entrevista: 
Por que a economia não reage?
Quando o presidente Jair Bolsonaro ganhou a eleição, houve um excesso de otimismo com o governo, as pessoas imaginavam que o presidente iria operar o sistema político da forma convencional, atendendo ao conjunto de regras de funcionamento do presidencialismo de coalização, nos mecanismos de relacionamento do Executivo e Legislativo desenvolvidos ao longo do mandato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e que serviram de padrão para os outros governos em seguida. 
ctv-mmg-pessoa
Alívio. Ciclo de queda dos juros pode ajudar em investimentos de infraestrutura, diz Pessôa  Foto: Werther Santana/Estadão

 

Fazendo articulações? 
É a forma como o presidente negocia, de maneira republicana, a construção da base de sustentação e compartilha poder com partidos que são próximos a ele, mantendo uma participação proporcional ao tamanho e ao peso de cada partido. Isso o Bolsonaro não quis implementar, o que gerou uma enorme frustração de expectativa em todo mundo e desestimulou investimentos. 
As dificuldades políticas têm atrapalhado as reformas e a recuperação da economia?
O presidente construiu uma candidatura, foi eleito e está prestes a aprovar uma reforma da Previdência sem se comprometer com ela. Bolsonaro é o maior interessado na aprovação da reforma, mas ela deve passar sem a liderança dele. Em geral, o fracasso do desempenho da economia é atribuição do Executivo, mas Bolsonaro conseguiu uma coisa original: jogou no colo do Congresso a responsabilidade pelo desempenho fraco que a economia brasileira tem tido. 
Essa postura tem dado certo?
Na última semana, o presidente se queixou de que o Legislativo quer esvaziar o seu poder, transformando Bolsonaro em uma espécie de ‘rainha da Inglaterra’ (ao comentar um projeto da Câmara que transfere aos deputados o poder de fazer indicações para agências reguladoras). Isso é uma coisa que muito me espanta. Ele escolheu ser ‘rainha da Inglaterra’. Ele fez toda uma campanha demonizando a política tradicional, mas não existe outra política - ela pode ser bem-feita ou de pior qualidade, mas não há outra. Quando o presidente não toma a liderança da negociação entre Legislativo e Executivo e diz que toda política é roubalheira, ele se exime de fazer política. O Brasil já havia aprendido a operar nos marcos do presidencialismo de coalização padrão e eu sou uma certa viúva dele. Hoje, temos um governo de extrema direita, que não se preocupa tanto com a agenda econômica do País.
Aprovando as mudanças na Previdência, o que vem a seguir?
Mudar a Previdência é uma condição necessária, mas não é suficiente. Ela consegue colocar a economia rodando a 2%, ao invés de 1%, como agora. Há toda uma agenda de outras reformas que precisam ser feitas, mas tenho dificuldades de desenhar o dia seguinte à aprovação da reforma da Previdência, não sei qual vai ser a reação do Congresso. Não sei como ficaria o contorno da política. Pode ser que o presidente continue no palanque, fazendo guerra cultural, matando os comunistas que ele diz encontrar por aí. E o Congresso, tocando a agenda das demais reformas, em paralelo ao governo.
O governo pode tomar medidas para tentar reaquecer a economia no curto prazo?
Não tem muita coisa que pode ser feita além das reformas, mas o Banco Central sinalizou que haverá um ciclo de queda dos juros depois da aprovação da reforma da Previdência. Se olharmos o gasto público hoje, tem um espaço de R$ 35 bilhões que poderiam ser gastos na manutenção de estradas. Não valeria a pena construir coisas novas, mas colocar algum dinheiro na manutenção de estradas e pontes. Mas é preciso passar a etapa da reforma da Previdência. Qualquer medida que for tomada antes que o País tire a reforma da frente pode aumentar o risco-país, gerar um aumento de percepção de risco lá fora, o que seria uma coisa ruim para o crescimento econômico.
A redução dos juros poderia ser mais rápida? 
Independente da percepção das pessoas, a gente está discutindo pouco abaixo dos juros atuais. Eu entendo que o Banco Central tenha dificuldade de iniciar essa discussão sem tirar o tema da Previdência da frente. Mas o ciclo de queda de juros sempre ajuda um pouco, pode ter algum espaço para incentivar a infraestrutura.
O boletim Focus, do Banco Central, tem trazido previsões cada vez mais baixas para o crescimento do País este ano. Alguns economistas estimam crescimento inferior a 1%. O senhor concorda com essas expectativas? 
Eu sou um pouco mais otimista do que parte dos economistas tem sido até agora. Aqui no Ibre, nós projetamos 1,2% de crescimento do País para este ano. O argumento que a gente sustenta é que o consumo das famílias tem tido uma recuperação. É medíocre e a produtividade ainda está muito baixa, mas pode ajudar.

Raizes amargas do Brasil, Leandro Karnal, O Estado de S. Paulo


Em oito capítulos, livro da historiadora Lilia Moritz Schwarcz procura dissecar o tema do autoritarismo na biografia do nosso país

Leandro Karnal, O Estado de S. Paulo
30 de junho de 2019 | 02h00
“Nós, os brasileiros, somos como Robinsons: estamos sempre à espera do navio que nos venha buscar da ilha a que um naufrágio nos atirou” (Lima Barreto, Transatlantismo). Assim Lilia Moritz Schwarcz inicia o texto Sobre o Autoritarismo Brasileiro (Cia das Letras, 2019, 273 páginas).
Em oito capítulos, o livro procura dissecar o tema do autoritarismo na biografia do nosso país. Apesar da imagem rósea que foi construída sobre a Terra de Santa Cruz, o estudo é taxativo: somos profundamente autoritários. A violência é estrutural, endêmica e parte permanente da realidade, apesar de todas as narrativas pacifistas construídas sobre o povo gentil habitante bafejado pela fortuna de um clima cálido. 
Como é obra de excelente historiadora, não basta a constatação: ela demonstra o princípio. Quais seriam as bases da nossa violência e do autoritarismo? Primeiro passo: a experiência da escravidão, algo “incontornável” e um “fantasma” que continua a nos assombrar.
Ao lado da herança do trabalho compulsório (que exclui a maior parte da população da existência jurídica e da cidadania), temos a tradição do mandonismo de uma elite com aspirações de nobreza com genealogias, com frequência, inventadas. O sistema se afunila e continua excludente mesmo após o fim da escravidão. Na agitada década de 1920, os eleitores representavam 2,3% a 3,4% do total da população. Concentração fundiária de um lado e seu correlato poder oligárquico controlando os vernizes de participação: eis o quadro que se inicia na colônia e sobrevive com novas máscaras. 
Em delicado equilíbrio com os poderes oligárquicos locais, nota-se o Estado Patrimonial e a necessária base de corrupção de um poder que tudo abarca e a poucos presta contas. Interessante no item sobre corrupção no Império, os dados abundantes quebram a imagem de um Segundo Reinado marcado pela retidão pública substituído por uma república de ladrões. O uso de recursos estatais para fins privados é uma constante e não um fato inaugurado pelo golpe de 15 de novembro de 1889.
Quando lemos um livro conceitual como o de Lilia Schwarcz, quebram-se as barreiras cronológicas estanques e vemos os processos em continuidade.
Recortes mais amplos perdem, claro, um pouco da especificidade de cada momento, mas garantem linhas de continuidade notáveis que obras mais limitadas não permitem. 
A desigualdade social é a causa/efeito de tudo o que foi dito antes. Existe uma lógica densa na pesquisa que vai construindo um quadro muito claro, quase circular. Lemos no capítulo 5: “Mão de obra escrava, divisão latifundiária de terra, corrupção a patrimonialismo, em grandes doses, explicam os motivos que fizeram do país uma realidade desigual”. Aqui a autora registra divergências dos dados sobre a melhoria ou piora da concentração de renda. Há correntes (exemplificadas no texto com números) que mostram ligeira melhora no quadro e há autores que indicam, também com base em dados objetivos, aumento da desigualdade.
Como boa obra científica, o texto não escolhe um dogma e o defende a qualquer custo, porém evidencia que há questões mais amplas do que apenas sim ou não. 
Não causa estranheza a qualquer pessoa que a consequência direta de tudo que foi descrito é a violência, tema do sexto capítulo. O capítulo seguinte mostra que os temas de raça e gênero são decisivos para estabelecer o público-alvo por excelência. Aqui, concepções culturais, tradições sociológicas e práticas históricas se combinam para fazer de negros, indígenas, mulheres e grupos LGBTTQ as vítimas por excelência dos ataques culturais e da violência real.
O livro Sobre o Autoritarismo Brasileiro é uma dissertação lógica sobre elementos impossíveis de serem negados. Ocorre, quase, uma releitura do clássico de Sérgio Buarque, Raízes do Brasil (1936). Do homem cordial canônico do historiador (que não era pacífico, diga-se de passagem) emerge um fel que sempre detestamos encarar. Raízes amargas de uma terra que, desde nosso primeiro historiador sistemático (frei Vicente do Salvador), já se reclama da falta de republicanismo, de sentido coletivo, de concepção de bem-estar mais amplo do que “dar-se bem”. 
Ler o livro foi como contemplar de forma lenta o retrato perverso de Dorian Gray. Oscar Wilde imaginou um homem bonito e sempre jovem que, por arte mágica, transfere as marcas do ódio e as rugas do mal para uma imagem que o assombra, escondida no sótão.
Temos tido imensa habilidade em negar o retrato oculto. A alegria fresca e despreocupada é nosso imaginário de terra abençoada sem terremotos, onde inexistem tsunamis, guerras civis ou choques sociais agudos. Somos o território dos papagaios, a terra sem males, com povo de boa índole que habita um “país tropical abençoado por Deus e bonito por natureza”.
O que o livro de Lilia Moritz Schwarcz demonstra, de forma cristalina, é que o ideário de paz e pacifismo serviu apenas a um pequeno grupo. Ler e entender o texto é um passo para assumir que, como diz Guimarães Rosa ao final do texto, a vida, de fato, embrulha a gente, porém demanda coragem. Como na obra de Wilde, há o risco de o retrato feio ser trazido à força para o meio da sala. Bom domingo para todos nós.