Em oito capítulos, livro da historiadora Lilia Moritz Schwarcz procura dissecar o tema do autoritarismo na biografia do nosso país
Leandro Karnal, O Estado de S. Paulo
30 de junho de 2019 | 02h00
“Nós, os brasileiros, somos como Robinsons: estamos sempre à espera do navio que nos venha buscar da ilha a que um naufrágio nos atirou” (Lima Barreto, Transatlantismo). Assim Lilia Moritz Schwarcz inicia o texto Sobre o Autoritarismo Brasileiro (Cia das Letras, 2019, 273 páginas).
Em oito capítulos, o livro procura dissecar o tema do autoritarismo na biografia do nosso país. Apesar da imagem rósea que foi construída sobre a Terra de Santa Cruz, o estudo é taxativo: somos profundamente autoritários. A violência é estrutural, endêmica e parte permanente da realidade, apesar de todas as narrativas pacifistas construídas sobre o povo gentil habitante bafejado pela fortuna de um clima cálido.
Como é obra de excelente historiadora, não basta a constatação: ela demonstra o princípio. Quais seriam as bases da nossa violência e do autoritarismo? Primeiro passo: a experiência da escravidão, algo “incontornável” e um “fantasma” que continua a nos assombrar.
Ao lado da herança do trabalho compulsório (que exclui a maior parte da população da existência jurídica e da cidadania), temos a tradição do mandonismo de uma elite com aspirações de nobreza com genealogias, com frequência, inventadas. O sistema se afunila e continua excludente mesmo após o fim da escravidão. Na agitada década de 1920, os eleitores representavam 2,3% a 3,4% do total da população. Concentração fundiária de um lado e seu correlato poder oligárquico controlando os vernizes de participação: eis o quadro que se inicia na colônia e sobrevive com novas máscaras.
Em delicado equilíbrio com os poderes oligárquicos locais, nota-se o Estado Patrimonial e a necessária base de corrupção de um poder que tudo abarca e a poucos presta contas. Interessante no item sobre corrupção no Império, os dados abundantes quebram a imagem de um Segundo Reinado marcado pela retidão pública substituído por uma república de ladrões. O uso de recursos estatais para fins privados é uma constante e não um fato inaugurado pelo golpe de 15 de novembro de 1889.
Quando lemos um livro conceitual como o de Lilia Schwarcz, quebram-se as barreiras cronológicas estanques e vemos os processos em continuidade.
Recortes mais amplos perdem, claro, um pouco da especificidade de cada momento, mas garantem linhas de continuidade notáveis que obras mais limitadas não permitem.
A desigualdade social é a causa/efeito de tudo o que foi dito antes. Existe uma lógica densa na pesquisa que vai construindo um quadro muito claro, quase circular. Lemos no capítulo 5: “Mão de obra escrava, divisão latifundiária de terra, corrupção a patrimonialismo, em grandes doses, explicam os motivos que fizeram do país uma realidade desigual”. Aqui a autora registra divergências dos dados sobre a melhoria ou piora da concentração de renda. Há correntes (exemplificadas no texto com números) que mostram ligeira melhora no quadro e há autores que indicam, também com base em dados objetivos, aumento da desigualdade.
Como boa obra científica, o texto não escolhe um dogma e o defende a qualquer custo, porém evidencia que há questões mais amplas do que apenas sim ou não.
Não causa estranheza a qualquer pessoa que a consequência direta de tudo que foi descrito é a violência, tema do sexto capítulo. O capítulo seguinte mostra que os temas de raça e gênero são decisivos para estabelecer o público-alvo por excelência. Aqui, concepções culturais, tradições sociológicas e práticas históricas se combinam para fazer de negros, indígenas, mulheres e grupos LGBTTQ as vítimas por excelência dos ataques culturais e da violência real.
O livro Sobre o Autoritarismo Brasileiro é uma dissertação lógica sobre elementos impossíveis de serem negados. Ocorre, quase, uma releitura do clássico de Sérgio Buarque, Raízes do Brasil (1936). Do homem cordial canônico do historiador (que não era pacífico, diga-se de passagem) emerge um fel que sempre detestamos encarar. Raízes amargas de uma terra que, desde nosso primeiro historiador sistemático (frei Vicente do Salvador), já se reclama da falta de republicanismo, de sentido coletivo, de concepção de bem-estar mais amplo do que “dar-se bem”.
Ler o livro foi como contemplar de forma lenta o retrato perverso de Dorian Gray. Oscar Wilde imaginou um homem bonito e sempre jovem que, por arte mágica, transfere as marcas do ódio e as rugas do mal para uma imagem que o assombra, escondida no sótão.
Temos tido imensa habilidade em negar o retrato oculto. A alegria fresca e despreocupada é nosso imaginário de terra abençoada sem terremotos, onde inexistem tsunamis, guerras civis ou choques sociais agudos. Somos o território dos papagaios, a terra sem males, com povo de boa índole que habita um “país tropical abençoado por Deus e bonito por natureza”.
O que o livro de Lilia Moritz Schwarcz demonstra, de forma cristalina, é que o ideário de paz e pacifismo serviu apenas a um pequeno grupo. Ler e entender o texto é um passo para assumir que, como diz Guimarães Rosa ao final do texto, a vida, de fato, embrulha a gente, porém demanda coragem. Como na obra de Wilde, há o risco de o retrato feio ser trazido à força para o meio da sala. Bom domingo para todos nós.
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