terça-feira, 17 de setembro de 2024

Com anistia, direita no Congresso nega responsabilidade individual de seus militantes, FSP

 A democracia é um regime político baseado em direitos e liberdades no qual estas são tão amplas e vigorosamente defendidas que não se podem permitir concessões que isentem as pessoas das consequências previsíveis de seus atos e da responsabilidade por suas decisões. A democracia é, essencialmente, um sistema de responsabilidades e responsabilizações —o preço da liberdade em um mundo adulto e emancipado.

Se vivêssemos sob um regime absolutista ou uma ditadura, nossa vontade política estaria submetida à do monarca ou ditador e de forma alguma poderíamos ser responsabilizados pelas consequências de decisões que nunca foram, de fato, nossas. A luta por regimes democráticos, por outro lado, parte da convicção de que todo ser humano é capaz de usar plenamente a razão e encontrar formas negociadas de convivência política, baseadas na liberdade e responsabilidade individuais. Livramo-nos do peso da obediência cega e da impossibilidade de divergir, pois nos consideramos capazes de suportar o fardo da responsabilidade por nossas decisões livres.

Por isso, tenho dificuldade com aqueles que insistem em oferecer ou requerer desculpas, imunidades, isenções, complacência e perdão aos cidadãos, ou a parte deles, como "o povo" ou "os pobres", por suas escolhas políticas. E não são poucos os que fazem isso.

A esquerda, por exemplo, que idolatra "o povo" —entendido como o conjunto das classes subalternas em sociedades divididas em classes, conforme a definição do filósofo italiano Antonio Gramsci—, tem enorme dificuldade em aceitar que esse povo nem sempre retribui esse amor.

Ser de esquerda frequentemente implica oferecer álibis que isentem essa classe social de responsabilidade por suas escolhas em eleições democráticas.

Na ilustração, um losango de papel, dobrado como uma sanfona de seis partes. A cor do papel começa amarelo, depois verde, alternando até o último.  Nas cinco primeiras partes, rostos de pessoas: de esquerda para a direita, a primeira com uma faixa acima dos olhos e a boca séria; na segunda, o olhas se vê dentre duas faixas, a boca começando a sorrir; na terceira, sem nenhuma faixa sobre os olhos, a boca mais aberta preparando a risada... na quarta, a boca aberta numa quase gargalhada... na quinta, essa sim com a boca aberta numa enorme gargalhada.  A sexta parte da sanfona de papel, tem apoiado na base um pé de cabra e fica pendurado uma cadeado aberto. Estão todos liberados (?)
Ariel Severino/Folhapress

Já a direita, nem se fala. A doutrina de Olavo de Carvalho no Brasil resume-se a uma teoria da conspiração que culpa um suposto esquema mundial envolvendo a esquerda, o comunismo, as universidades, o globalismo e jornalistas liberais pela perpetuação do esquerdismo como ideologia dominante. Retirar o véu, desvelar o código, parar a matriz —são todas formas metafóricas de afirmar que, no estado atual das coisas, as pessoas não fazem realmente escolhas livres pelas quais possam ser responsabilizadas.

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E quando é o próprio Congresso Nacional que resolve atacar o princípio da responsabilidade individual por decisões políticas? Pois parece estar decidido a conceder anistia aos que participaram dos atos do 8 de Janeiro, cujo objetivo era claramente forçar uma mudança de regime, anular o resultado das eleições e instaurar no poder o presidente derrotado nas urnas.

Milhares de militantes foram mobilizados, organizados e levados às ruas para tentar dar às Forças Armadas uma razão para violarem a vontade expressada nas urnas por 124 milhões de brasileiros.

Não foi uma banalidade nem um ato político comum. Os sediciosos do 8 de Janeiro invadiram, destruíram e tomaram o espaço físico dos Poderes da República com o intuito de tomar o poder pela força e dá-lo ao seu líder. Não foi um crime menor, foi o maior dos crimes contra a ordem democrática —uma tentativa de assaltar e derrubar o regime à força.

O fato de os militantes não acreditarem que viviam em uma democracia não serve como atenuante. As crenças que cada um alimenta livremente não se sobrepõem aos direitos coletivos. O argumento de que os sediciosos tinham boas intenções —porque estavam convencidos, como todos os militantes, de que se sacrificavam para tornar este um mundo melhor— não diminui a gravidade de suas ações. Afinal, até terroristas acreditam nas bases morais e religiosas de seus atos, mas isso não torna suas ações moralmente respeitáveis ou democraticamente aceitáveis.

Se uma anistia for concedida, a mensagem será clara: qualquer um pode tentar tomar o poder à força, desrespeitando as regras democráticas, porque, se for do nosso lado, garantimos sua impunidade. Na verdade, a direita está exercendo sua versão do "ninguém larga a mão de ninguém" para dar aos próprios militantes uma inédita imunidade política para recusar resultados eleitorais, assaltar conforme sua conveniência os Poderes constituídos da República e conceder poderes ditatoriais a seus líderes.

Isso não é anistia, é uma oferta de impunidade aos criminosos da própria facção política. É a forma mais tosca de negação da responsabilidade individual por decisões políticas, que disfarça com desculpas e justificativas a oferta de uma excludente de ilicitude democrática para os membros do próprio grupo.

A ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA DE DANTE ALIGHIERI , por Alexandre Marcos Pereira, Procurador de Justiça. (APMP)


O contraste entre o pensamento moderno e o pensamento medieval revela uma transformação profunda na concepção da existência humana e de sua finalidade. Para o homem moderno, a busca pela identidade pessoal e pelo sentido da vida, de maneira geral, está muitas vezes desvinculada de uma visão teocêntrica. As questões existenciais frequentemente giram em torno da autonomia do indivíduo, da liberdade e da responsabilidade ética em um mundo onde Deus, se não foi completamente abandonado, certamente já não ocupa a posição central como a explicação última de todas as coisas.

 Em Kant, por exemplo, encontramos a noção de que o homem é o legislador moral de si mesmo, e em Nietzsche, a famosa proclamação de que “Deus está morto”, enfatizando a ruptura da metafísica tradicional que fundamentava o pensamento de Dante Alighieri. 

Dante, por outro lado, ao escrever a Comédia - posteriormente chamada Divina Comédia a partir de seu primeiro exegeta, Giovanni Boccaccio – encontra na teologia o fio condutor da existência humana. Sua obra é, em última instância, uma jornada espiritual que coloca a redenção e a proximidade com Deus como o destino supremo do homem. 

O caminho traçado por Dante através do Inferno, Purgatório e Paraíso é, portanto, uma alegoria da purificação da alma. O sofrimento no inferno é o resultado de uma vida afastada de Deus, o Purgatório é o espaço de transição onde o pecado é queimado para que a alma possa finalmente alcançar a pureza necessária para entrar no Paraíso.

 O conceito dantesco de vida humana é, portanto, um movimento de ascensão, uma busca constante pelo retorno ao Criador. Se para nós, o problema da identidade é muitas vezes resolvido por meio de reflexões sobre a subjetividade, para Dante, a identidade do homem está inseparavelmente ligada a Deus. O homem é criatura e, como tal, não pode encontrar em si mesmo as respostas definitivas sobre seu propósito. 

Em Dante, a verdadeira liberdade não é a capacidade de autodeterminação no sentido moderno, mas sim a libertação do pecado e a subsequente reconciliação com a vontade divina. Aqui, o conceito de liberdade se afasta da noção moderna de escolha ilimitada e aproxima-se mais de uma “liberdade para o bem”, uma liberdade que consiste em submeter a própria vontade ao bem absoluto que é Deus. O que Dante nos propõe, portanto, é um modelo de vida que, à luz da modernidade, pode parecer severamente limitador, mas que, para ele, era o único caminho verdadeiro para a felicidade e a realização humanas.

 No cerne de sua visão está a ideia de que o intelecto humano, quando adequadamente orientado, deve necessariamente conduzir à percepção do divino. Essa percepção é, ao mesmo tempo, o objetivo final da existência e a chave para resolver os dilemas éticos e existenciais que surgem na vida terrena. A Divina Comédia é, nesse sentido, uma crítica contundente à visão mundana que se afasta de Deus.

 Dante não nega a importância da razão, mas a subordina a uma ordem maior: a razão deve conduzir à fé, e não se limitar a compreensão dos fenômenos terrestres. Enquanto os modernos se dedicam à análise e à explicação do mundo, buscando respostas dentro dos próprios limites da razão, Dante nos lembra que a razão, sozinha, é insuficiente para abarcar o mistério da vida. A verdade última, para ele, não está no mundo, mas além dele, e somente pela graça divina pode ser plenamente alcançada. Em termos filosóficos, a obra de Dante pode ser lida como uma síntese entre o pensamento aristotélico e o cristianismo. Aristóteles (“maestro di color che sanno”), com sua concepção de que todo ser tem uma finalidade ou causa final (telos), encontra em Dante uma aplicação teológica. 

A finalidade do homem não é simplesmente alcançar a virtude ética, como pensava o filósofo grego, mas transcender a moralidade terrena em direção à perfeição divina. A virtude, para Dante, é um meio, e não um fim em si mesmo. O fim é a união com Deus, e a ética cristã é o caminho que conduz a esse fim. 

 Por outro lado, para o homem moderno, que se baseia em uma visão mais secularizada, o conceito de telos foi profundamente transformado. A finalidade do ser humano, é muitas vezes, vista como algo que ele mesmo constrói, seja por meio da realização de seus desejos, do cumprimento de sua liberdade ou da busca de sentido pessoal. A moralidade, nesse contexto, pode variar significativamente, pois depende de valores subjetivos ou intersubjetivos que mudam de acordo com a cultura, o tempo e o indivíduo.

 Dante, no entanto, nos oferece uma visão em que a verdade e o bem são absolutos e não estão sujeitos às variações humanas. Isso nos leva a uma reflexão sobre a natureza das nossas próprias vidas. Seria possível, na modernidade, reconciliar essa busca pela verdade e pelo bem absolutos com uma vida que preza pela liberdade individual? 

Ou será que estamos condenados a uma existência fragmentada, onde a ausência de uma verdade última nos conduz a uma multiplicidade de sentidos que, no fim, nos deixam mais perdidos do que antes? A Comédia nos convida a revisitar essas questões, não como uma imposição de respostas definitivas, mas como um lembrete de que a busca pela verdade é essencial para qualquer concepção de vida significativa.

 Se, para Dante, essa verdade era indissoluvelmente ligada a Deus, para nós, homens modernos, talvez seja necessário reconsiderar onde buscamos nossas próprias respostas e o que consideramos como sendo o centro da nossa existência. Afinal, o que nos resta quando o sentido não está mais fixado no divino? 

O livro acadêmico como instrumento de disseminação da ciência, GAMA

 Foi uma imensa honra ter sido convidado pela Câmara Brasileira do Livro (CBL) para a curadoria da primeira edição do Prêmio Jabuti Acadêmico, uma iniciativa que visa reconhecer e valorizar obras acadêmicas, científicas e profissionais. Esta experiência não apenas me proporcionou a oportunidade de contribuir para o reconhecimento da produção intelectual brasileira, mas também me fez refletir profundamente sobre o papel fundamental do livro na disseminação do conhecimento científico.

Em tempos em que a comunicação rápida, representada principalmente por artigos científicos e mídias digitais, domina o cenário acadêmico, o livro permanece como um instrumento inigualável para o aprofundamento e expansão do conhecimento. Enquanto artigos científicos em geral se concentram em resultados específicos e pontuais, o livro oferece um espaço para discussões mais amplas e complexas, permitindo que os autores explorem diversos temas com a profundidade que merecem.

De fato, o livro acadêmico desempenha um papel crucial na construção e preservação do conhecimento. Ele permite aos pesquisadores apresentarem suas ideias de forma mais abrangente, contextualizando-as dentro de um panorama mais amplo de sua área de estudo. Além disso, essas obras frequentemente servem como referências duradouras, influenciando gerações de estudantes e pesquisadores, algo que dificilmente é alcançado por outros formatos.

O livro acadêmico tem a capacidade de fazer a ponte entre a academia e a sociedade

Outro aspecto importante do livro acadêmico é sua capacidade de fazer a ponte entre a academia e a sociedade em geral. Obras de divulgação científica, por exemplo, têm o poder de traduzir conceitos complexos para uma linguagem acessível, fato fundamental para a democratização do conhecimento e para o combate à desinformação, aspectos cada vez mais críticos em um mundo inundado por informações superficiais e, muitas vezes, equivocadas.

A criação do Prêmio Jabuti Acadêmico veio justamente reconhecer e valorizar essa forma de produção intelectual. Com quase duas mil obras inscritas (todas publicadas em 2023 como primeira edição), o prêmio revelou uma produção vasta e diversificada, antes pouco visível no cenário literário nacional. Este número expressivo não apenas demonstra a vitalidade da produção acadêmica brasileira, mas também ressalta a importância do livro como veículo de transmissão do conhecimento científico.

O Prêmio Jabuti Acadêmico, ao dar visibilidade a essas obras, não apenas reconhece a excelência na produção intelectual, mas também incentiva a continuidade e o aprimoramento dessa produção. Em um momento em que a ciência e a educação enfrentam diversos ataques, iniciativas como esta são fundamentais para reafirmar o valor do conhecimento e da pesquisa científica como pilares para o desenvolvimento sustentável e para a construção de uma sociedade mais justa e informada.

A diversidade de categorias do prêmio — 29 no total — reflete a riqueza e a complexidade do conhecimento humano. Das ciências exatas às humanidades, da tecnologia às artes, cada área contribui de maneira única para o avanço do saber. Ao reconhecer essa diversidade, o prêmio celebra não apenas a excelência individual, mas também a interdisciplinaridade e o diálogo entre diferentes campos do conhecimento. O sucesso da primeira edição do prêmio, que além do apoio irrestrito da Câmara Brasileira do Livro contou com a participação de uma comissão curadora e um total de 87 jurados de diversas áreas do conhecimento.

Olhando para o futuro, vejo o Prêmio Jabuti Acadêmico como um catalisador para o fortalecimento da produção intelectual no Brasil. Mais do que uma premiação, ele representa um compromisso com a valorização do conhecimento, da ciência e da educação. É um convite para que mais pesquisadores, professores e profissionais compartilhem suas ideias e descobertas por meio dos livros, enriquecendo o debate acadêmico e contribuindo para o progresso da sociedade.

Em um mundo cada vez mais complexo e interconectado, o livro acadêmico permanece como um farol de conhecimento, iluminando caminhos e inspirando novas gerações de pensadores e inovadores. Que o Prêmio Jabuti Acadêmico continue a celebrar e a promover essa fonte inesgotável de saber, reafirmando o papel vital do livro na construção de um futuro mais informado, crítico e humanizado.

MARCELO KNOBEL Marcelo Knobel é físico e professor do Instituto de Física Gleb Wataghin, da Unicamp. Escreve sobre ciência, tecnologia, inovação e educação superior, e como impactam nosso cotidiano atual e o futuro