terça-feira, 25 de junho de 2024

Arthur Lira derrapa na rampa, Dora Kramer - FSP

 O poder é bicho traiçoeiro. Tanto confere altitude ao dono como lhe retira de sob os pés a escada quando a esperteza despreza os conselhos do bom senso. É nessa zona de perigo que entrou o presidente da Câmara, Arthur Lira (PL), ao abrir o baú de anacronismos para atrair a ala reacionária do eleitorado interno ao plano de fazer o sucessor.

O deputado pode, e tudo indica que conseguirá, eleger o substituto em fevereiro de 2025. Mas se arrisca a sair do posto menor do que entrou e a descer a rampa do Congresso Nacional sob a égide de inimigo da opinião pública representada pela instituição que preside.

Lira saiu-se mal ao desengavetar projetos desprovidos de relevância e urgência para a sociedade, mas relevantes e urgentes para os propósitos ideológicos daquela parcela da Câmara de quem ambiciona ter votos em detrimento do consenso prevalente na população.

O deputado caminhava bem em seu acordo com o presidente Lula (PT) de ajudar nas propostas econômicas de interesse do país, se abster na agenda de costumes e posicionar-se contra agendas marcadamente petistas.

Nesse cenário, a ideia era figurar como fiador da reforma tributária e de propostas atinentes a avanços na economia. Até que resolveu render homenagem à obsolescência legislativa.

Manifestantes queimam imagem de Arthur Lira em protesto contra PL que equipara aborto a homicídio - Amanda Perobelli - 23.jun.24/Reuters

O presidente da Câmara escolheu aparecer como avalista do atraso no apoio às propostas de equiparação do aborto ao homicídio, de restrição ao uso das delações premiadas e de anistia aos partidos em débito com a Justiça Eleitoral por uso indevido do fundão de R$ 4,9 bilhões.

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Lira reclama de as críticas serem concentradas na pessoa dele, reivindica dividir o prejuízo com o colégio de líderes, mas, claro, aprecia quando se vê reconhecido como detentor de influência absoluta sobre o Poder Legislativo.

Um ganho questionável quando tal poder se põe na condição de antagonista da consciência média do país.


Hélio Schwartsman - Jovens bem formados e sem emprego fortalecem a direita radical?, FSP

 Mesmo que o presidente Emmanuel Macron consiga evitar que o Rassemblement National (RN) saia com um primeiro-ministro das eleições legislativas que começam no próximo domingo (30), é líquido e certo que o grupo da ultradireita avançará várias casas. E, a crer nas pesquisas, os jovens são em grande medida responsáveis pelo crescimento do partido comandado por Marine Le Pen.

Boa parte da imprensa se pergunta como jovens, cujos avós deflagraram a revolução sexual e cujos pais asseguravam boas votações a partidos de esquerda, puderam ir tão para a direita. Sabe-se que a orientação política tem forte componente hereditário.

Para tornar o quebra-cabeças ainda mais intrigante, um elemento recorrente nos fenômenos de radicalização política, a deterioração das condições econômicas, não está no momento muito presente. Ao contrário, os ventos são favoráveis: a pandemia passou, a inflação vai sendo controlada e o desemprego, problema crônico na França, anda bem-comportado.

Em Marselha, funcionário municipal prepara cédulas que serão usadas na eleição legislativa - Philippe Lopez/AFP

Uma hipótese que merece consideração é a levantada por Peter Turchin no livro "End Times", que já comentei aqui. Para Turchin, um dos fatores que explicam períodos de turbulência é a superprodução de elites. Quando tudo vai bem, as pessoas se preparam para um futuro melhor. Estudam mais na esperança de encontrar empregos que paguem bem e tragam satisfação pessoal. Só que, quando tudo vai realmente bem, temos a superprodução de elites: muito mais gente se preparando para assumir bons postos do que vagas disponíveis. Em algum momento, esses jovens percebem que o futuro pode não ser tão bom, o que se traduz em votos radicais, às vezes até antissistema. Para Turchin, a superprodução de elites é um fenômeno cíclico que se repete a cada 100 ou 200 anos.

Se é mesmo isso que está por trás da ascensão da ultradireita nos países ricos, então lidamos com um problema muito mais estrutural e difícil de resolver do que se imaginava.

FABIO LAMPERT O Brasil e o eixo, FSP

 

Fabio Lampert

Doutor em filosofia (Universidade da Califórnia - Irvine), ensina e pesquisa filosofia na Universidade de Greifswald, na Alemanha

Em artigo publicado nesta Folha no último dia 9 de junho, Celso Amorim, assessor especial da Presidência da República, argumenta que há uma articulação entre Brasil e China oferecendo uma "renovada oportunidade de ação diplomática" para construir o que ele chama de "Eixo da Paz", visando uma solução para a guerra entre Rússia e Ucrânia.

Casas destruídas em Pokrovsk, na região de Donetsk - Roman Pilipey/AFP

Amorim baseia-se em seu comunicado, divulgado conjuntamente com Wang Yi, ministro das Relações Exteriores da China, publicado no site da Presidência da República em 23/5/2024. Esse comunicado contém "entendimentos comuns" entre Brasil e China para uma solução política ao que eles chamam de "crise na Ucrânia" (termo que leva o leitor a associar a Ucrânia à crise, e não a Rússia, que iniciou a guerra de forma unilateral).

Apesar de indicar que todas as propostas de paz devem ser consideradas, um trecho crucial do artigo de Amorim sugere restrições. Amorim diz que "não podemos nos render a narrativas simplificadas" e que devem ser considerados fatores "históricos e políticos", assim como "legítimas preocupações de segurança de todas as partes".

Amorim não esclarece a natureza de tais narrativas ou quais fatores históricos e políticos ele tem em mente. Mas a sugestão implícita de que a Rússia teria legítimas preocupações de segurança é não apenas absurda mas propagandística. A Federação Russa não invadiu a Ucrânia por preocupações de segurança legítimas e nunca teve suas fronteiras ameaçadas pela Ucrânia ou pela Otan.

Ademais, existe um caminho que poderia levar ao fim da guerra imediatamente, sem necessidade de "preocupações de segurança" do lado da Rússia e sem a destruição do Exército russo (que Amorim parece considerar indesejável): Putin pode trazer seu Exército de volta e desocupar os territórios ucranianos que ocupa ilegalmente, por escolha, desde 2014.

Melhor ainda se ele se comprometesse a parar de invadir e destruir cidades inteiras, como fez na Chechênia, na Síria, na Geórgia e na Ucrânia—sempre com o pretexto de "preocupações de segurança". Putin poderia fazer isso e ter sua máquina de propaganda estatal descrevendo, de alguma forma, a situação como uma vitória.

Haverá protestos por um tempo, como nos dias após a morte de Navalny, mas Putin provavelmente conseguiria viver o resto dos seus dias em luxo, como o maior oligarca russo, podendo até restabelecer oficialmente os laços com países europeus no futuro —especialmente se a extrema direita europeia, próxima de Putin, continuar a crescer.

Talvez Brasil e China pudessem usar sua influência, como parceiros estratégicos da Rússia por meio dos Brics, para tentar convencer Putin de que esse é o melhor caminho para acabar com a guerra. Mas o Kremlin não precisa nem se dar ao trabalho de tentar levar o Ocidente a crer que tal curso não é "viável". O Brasil e a China fazem esse trabalho por ele.

Por um lado, o governo brasileiro usa um discurso moralista, criticando aberta e repetidamente "as atrocidades cometidas pelo governo Netanyahu em Gaza" (como disse o chanceler Mauro Vieira em um de seus artigos recentes), publicando notas frequentes que condenam explicitamente os ataques israelenses, resultando, de fato, no sofrimento e morte de milhares de civis palestinos inocentes.

Por outro lado, notas similares não são publicadas pelo governo brasileiro para condenar os ataques russos na Ucrânia —que explodem pais e filhos passeando nas ruas ou dormindo em suas casas—, ou os sequestros de milhares de crianças ucranianas, ou os casos de tortura e assassinatos de prisioneiros de guerra etc.

Ainda aguardamos linguagem do tipo "as atrocidades cometidas pelo governo Putin na Ucrânia" vindas do governo brasileiro. O "Eixo da Paz", ao contrário do que prega Amorim, facilita a destruição russa na Ucrânia, com o Brasil disparando suas importações de óleo da Rússia e injetando bilhões, que estão sendo utilizados nas compras de microeletrônicos e outras tecnologias chinesas essenciais para a Rússia manter a fabricação de tanques, mísseis e outras armas.

Talvez minha narrativa seja simples demais para Amorim, mas o governo brasileiro é tão hipócrita quanto, ou mais do que, aqueles que critica.

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