Assim começam os contos de fadas ou histórias para crianças
(serão mesmo apenas para crianças?) de antigamente.
Nessa expressão tão singela quanto engenhosa se encerra toda
a força mágica da fantasia e da imaginação, que nos transportam de imediato
para qualquer tempo ou local em que se passa a narrativa.
No fim, outra frase tradicional — E viveram felizes para
sempre… — projeta que a vida dos personagens continua para além do que foi
contado. Na verdade, suas vidas começam onde acaba o que foi contado.
Lembra-me, a propósito, o episódio do sujeito que se atrasou
e chegou esbaforido na igreja, onde deu com o padre se preparando para sair.
— Puxa vida! O casamento do Fulano já acabou?
— Não, apenas começou,
respondeu-lhe o sábio pároco.
Sempre tento imaginar o que terá acontecido ou estará
acontecendo com certos personagens inolvidáveis, que me parecem apenas ter
partido para um lugar distante, incerto e não sabido, como alguns amigos que
nos somem na poeira ou na curva da estrada, tal qual o vagabundo de Chaplin.
Quando menos se espera, podem reaparecer.
Robert Walser, escritor suíço de língua alemã, lido e
admirado por contemporâneos notáveis como Robert Musil, Thomas Mann, Hermann
Hesse e, sobretudo, Franz Kafka, que se dizia decisivamente influenciado por
ele, é uma figura inquietante, cuja vida e obra se equilibram na tênue linha da
lucidez e do delírio. Sofria surtos depressivos e foi diagnosticado como
esquizofrênico, como a mãe e o irmão. Dizia a respeito dos seus personagens,
que se confundem com ele: “E, se não morreram, então hoje ainda vivem.”
Brás Cubas ─ que repentinamente se tornou best seller graças
ao TikTok ─ é um defunto autor, que escreve suas memórias póstumas e as dedica “Ao
verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver”.
Mas não teria ainda o que contar sobre a existência
além-túmulo, que tanto nos intriga nesta vida de aquém-túmulo? Ou será mesmo
que o resto é silêncio?
O velho Casmurro, que deixou de lado a jurisprudência,
filosofia, política e também a “História dos Subúrbios” para tomar da pena e
contar dos tempos idos e das inquietas sombras de uns olhos de ressaca, revela
secamente quase no final do livro, de passagem, ao falar sobre o breve encontro
com o filho dele e de Capitu (?): “A mãe — creio que ainda não disse que
estava morta e enterrada. Estava; lá repousa na velha Suíça.” Pouco
adiante, sabe-se pelo rapaz que a mãe “Morreu bonita.”
Mas como e o quê teria Capitu vivido depois da separação e
até que morresse?
A narrativa se fecha com o homem amargo em que se transformou
o maravilhado menino Bentinho lançando-se na empreitada da “História dos Subúrbios”.
Se ele não morreu, então hoje ainda vive (como ainda vivem em nós os que
morreram).
Paul Auster, falecido recentemente, reflete agudamente sobre
os limites e sortilégios da ficção literária no seu romance “Viagens no
scriptorium”, contando sobre um velho desmemoriado, preso num pequeno
quarto, onde é vigiado o tempo todo por meio de inúmeras câmeras e microfones.
Ele apenas sabe vagamente que teve um papel decisivo na vida de muitas pessoas.
Descortina-se enfim que o velho ─ sugestivamente chamado
Blank ─ é ou foi um escritor, e se acha encarcerado por obra de seus
personagens:
“Quando é que vai acabar este absurdo?
Não vai acabar nunca. Porque Blank é um de nós agora, e, por
mais que se debata, tentando entender sua sorte, estará sempre no escuro. Creio
que falo por todos os seus pupilos quando digo que ele está tendo o que merece
─ nem mais nem menos. Não como forma de punição, e sim como um ato de suprema
justiça e compaixão. Sem ele, não somos nada, mas o paradoxo é que nós,
fantasias de outra mente, sobreviveremos à mente que nos fez, porque, uma vez
atirados no mundo, continuamos a existir para sempre, e nossas histórias
prosseguem sendo contados, mesmo depois que morremos.”
Antonio Carlos Augusto Gama
Promotor de Justiça, aposentado