Falar em fascismo é pouco. Corremos o risco, todos os dias, de regredir aos tempos da escravidão. O caso é tão escabroso que hesito em descrevê-lo. Mas vamos em frente. Aconteceu em Salvador, lá onde tem o Pelourinho.
Um dono de loja, cujas preferências políticas não foram reveladas —mas não me deixam em dúvida—, perdeu a paciência com o funcionário William de Jesus, a quem acusou de furtar R$ 30. Pelo jeito, não era a primeira vez que isso acontecia. Com ajuda do gerente, esse "empresário", como se gosta de dizer, levou William e outro funcionário mal comportado aos fundos do estabelecimento. Ligou o celular, para gravar o que ia fazer.
Não, não iria matar os dois; iria aplicar-lhes um "corretivo". Seguiu-se uma sessão de pauladas nas palmas das mãos; conforme hábitos disciplinares imemoriais, a vítima foi obrigada a contar os golpes que recebia. Era pouco; com um ferro de passar, o "comerciante" —que, leio, professa a religião evangélica, não que, haha, isso signifique muito— resolveu marcar o dorso das mãos do empregado: inscrito a ferro, o número "171" queria indicar a desonestidade da vítima.
Há tempos, os moradores do bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro, prenderam um menor infrator a um poste, pelo pescoço, usando uma trava de bicicleta. Daí para o linchamento, seria só um passo.
O que aconteceu em Salvador foi pior. Os torturadores gravaram tudo, orgulhando-se do que faziam. Por desonestos que fossem, os funcionários não representavam nenhuma ameaça à segurança física de quem passasse pelas ruas.
Um boletim de ocorrência, uma prisão em flagrante não eram coisas fora do alcance do dono da loja. Com um pouco de cinismo, eu diria até que os supostos infratores provavelmente apanhariam na delegacia, não havendo razão para organizar a sessão de tortura num local privado. E é nisso que tudo se encaixa.
Primeiro, elege-se um presidente que só se tornou um nome nacional na política ao fazer o elogio de um torturador. Depois, segue-se uma doutrina religiosa que abandona o que o cristianismo trouxe de mais bonito e civilizador ao mundo ocidental: a ideia de que "os mansos herdarão a terra"; os valores do amor, da bondade e da tolerância; o princípio de que somos todos, realmente, irmãos —que a fraternidade não se esgota nos que pertencem a uma mesma seita, a uma só igreja.
Em terceiro lugar, defende-se a privatização de tudo: das armas, da Justiça, da floresta, da escola, da saúde, da vida humana. A mentalidade privatista se recusa a usar máscara cirúrgica para evitar que outras pessoas se contaminem. O fazendeiro pode queimar a mata que quiser, desde que seja sua. E, se não for —se estiver nas mãos de uma entidade coletiva como um povo indígena, por exemplo, ele acha que tem direito de ocupar.
Como na escravidão, ele faz com o funcionário o que bem entender. Não precisa mais recorrer à polícia: possui o corpo da vítima, para bater e marcar a ferro. Só não estuprou porque o rapaz não merecia.
Por fim, divulga-se o feito nas redes sociais. O narcisismo eletrônico nem sequer imagina que possa ser denunciado pelas barbaridades que diz ou que comete.
Por que seria? Se Bolsonaro existe, tudo é permitido. Para se eleger, o bolsonarismo usou como pretexto o combate à corrupção, iludindo quem queria se iludir. Hoje, a bandeira bolsonarista é outra: esses escravocratas, esses fanáticos, esses criminosos falam em "liberdade".
Como se o "comunismo" fosse uma ameaça real, e como se Lula e o PT, depois de anos e anos de governo moderado, em que estiveram a anos-luz de distância de qualquer ditadura chavista, agora resolvessem instaurar esse tipo de regime.
A "liberdade" do bolsonarismo se resume a um único projeto: ignorar a lei. É proibido torturar? É proibido destruir o ambiente? É proibido ameaçar de morte um jornalista, um político, um ministro do Supremo? Que absurdo! Onde está a nossa liberdade?
Defendemos o direito de torturar, de matar, destruir o ambiente, ameaçar de morte um jornalista, um político, um ministro do Supremo. É o neoliberalismo sem máscara, que se exacerba em escravidão. E que viva dom Pedro 1º. Leis penais? Não precisamos delas para punir quem furtou R$ 30. Leis trabalhistas? Que atentado à liberdade econômica! Como sobreviver sem a hiperexploração da mão de obra?
Direitos humanos? Mas como? O funcionário é meu e o trato como merece. Aliás, a frase é outra. O preto é meu, bato nele o quanto eu achar melhor.