domingo, 27 de janeiro de 2019

As tragédias permitidas, Janio de Freitas, FSP

Faltaram providências para que administradoras de barragens fizessem inspeções

A par das causas físicas e empresariais, a Procuradoria-Geral da República, os Ministérios Públicos federal e de Minas e o Judiciário destacam-se entre os responsáveis pela segunda tragédia causada por ruptura de barragem. Sentenças rigorosas, e em tempo admissível, para os culpados pela tragédia em Mariana levariam os administradores de barragens a fiscalizações sérias e permanentes. E à prevenção devida aos habitantes, seus bens e áreas produtivas atingíveis por possível ruptura --caso óbvio de Brumadinho.
Faltaram ainda àqueles poderes providências, por exemplo, para que todas as empresas administradoras de barragens fizessem, em seguida ao desastre de Mariana, inspeções e laudos formais em prazo determinado.
Talvez evitassem em Brumadinho o desaparecimento de tantas pessoas, colhidas na ingenuidade perversa do perigo. E por certo o fariam em outras barragens também deixadas ao seu potencial ameaçador.
Já sabemos como aqueles poderes procederão outra vez.

ESTÁ NO AR

Excluído do Exército, sob ponderações no Superior Tribunal Militar que puseram em dúvida até seu equilíbrio mental, Bolsonaro ficou à distância de sua classe por muito tempo. Embora refletindo-a nas opiniões e, proveito também eleitoral, nas reivindicações.
A perspectiva da candidatura à Presidência mudou sua relação com o passado. Por utilitarismo, sem dúvida, Bolsonaro empenhou-se em ser dado como capitão, representante legítimo de todas as idiossincrasias e da radicalidade conservadora, anticultural e patrioteira da caserna. O candidato identificado com as Forças Armadas.
Os comandos do Exército aceitaram o risco dessa identificação, apesar da preocupação até revelada. Os da reserva, categoria em que as pretensões de superioridade e os sectarismos podem se mostrar mais, regozijaram-se com a atitude de Bolsonaro. 
O então comandante do Exército, general Villas Bôas, que se reconhecera como um dos preocupados, formalizou a aceitação do risco, aparentando dá-lo por extinto.
Em duas semanas após a posse, a preocupação voltou a muitos. Pelo avesso, porém. Como preocupação com a possibilidade de identificação, aos olhares internos e sobretudo externos, dos militares e seus generais com Bolsonaro, suas ideias irrealistas e o círculo familiar-religioso insustentável.
Desde a terceira semana, o lento desenrolar do caso Flávio Bolsonaro e seus tentáculos até o próprio Bolsonaro tiveram a contribuição do vexame no Fórum Econômico Mundial para agravar o estado de coisas. Se cá fora, sem comprometimento com a situação, seus possíveis desdobramentos causam inquietações, é fácil imaginar o que se passa com a maioria dos generais, inclusive como contribuintes da identificação militar com o novo e caótico poder.
Nos últimos dias, as interpretações, análises, deduções, dos mais diversos calibres, povoaram as mentes e conversas dos próximos e dos mais atentos às várias movimentações no poder e arredores.
Admitidas exceções, entre os generais do governo militarizado e Jair Bolsonaro o ar já não é o mesmo.
Apesar do esforço, a poluição é perceptível.
Ainda não se conhece poluição que não deixe consequências.
Janio de Freitas
Jornalista e membro do Conselho Editorial da Folha.

Brasil na lama e em ruínas, Vinicius Torres Freire, FSP

Além do vômito letal da represa de lixo da Vale, obras públicas caem aos pedaços

Faz mais de cinco anos, a gente tem a impressão de que o Brasil está em ruína progressiva. O sabor político do sentimento depende do gosto ideológico do freguês. Quanto ao sentido literal da expressão “ruína”, há sinais e sintomas evidentes de que o país está caindo aos pedaços.
Por exemplo, qualquer pessoa sensata vai se perguntar como é possível que se repita em três anos um horror como esse das barragens de Minas Gerais, essa desgraça revoltante na represa de lixo da Vale. Mas a coisa já ia longe.
A gente está com a pulga atrás da orelha de uma cabeça com cabelos em pé, aqui em São Paulo. Há notícias em série sobre o mau estado das pontes e dos viadutos da capital do estado mais rico e mais cheio de universidades de ponta do país.
 
No final do ano passado, um viaduto da marginal do Pinheiros cedeu e foi interditado. Na semana que passou, foi a vez de um viaduto que liga a marginal do Tietê à Via Dutra.
Oito pontes e viadutos vão passar por vistoria de emergência, entre eles duas pontes sobre a marginal do Tietê.
As marginais são uma das duas grandes vias de circulação expressa e de saída da cidade. Se param, a cidade não consegue chegar nem na breca.

Problema local? Hum.
O investimento do setor público, a despesa em “obras”, afunda mais que viaduto paulistano. Na soma dos gastos dos governos federal, estaduais e municipais, o investimento médio de 2015 a 2017 baixou 36,6% em relação à média dos anos “bons” de 2004 a 2013.
Baixou em termos relativos, em proporção do PIB, um desastre (estas contas são baseadas nas séries de investimento calculadas pelos economistas Rodrigo Orair e Sérgio Gobetti, do Ipea).
O investimento é insuficiente para manter e reparar a infraestrutura, segundo os especialistas (é menor que a depreciação). A baixa é brutal nos governos estaduais, o dobro da queda relativa do investimento feito pelo governo federal e pelos municípios.
Em português claro, isso quer dizer que não há dinheiro suficiente para manter, que dirá melhorar, estradas, pontes, viadutos, açudes, barragens etc. O país está apodrecendo fisicamente.
Para piorar, sem obras novas ou consertos, a economia demora a se recuperar. A construção civil foi o grande setor mais desgraçado da economia durante a recessão. Parou de piorar, mal e mal, apenas no ano passado.
Além da falta de dinheiro, escassearam vergonha na cara e competências. Convém lembrar que as maiores empreiteiras eram comandadas por gângsteres, máfias que compravam governos, leis etc. Sabe-se lá mais o que aprontaram.
Desconhece-se o motivo da nova desgraça mineira, mas sabemos de algumas coisas:
1) leis ambientais rigorosas não faltam; há baderna ou coisa pior na fiscalização;
2) muita gente e negócios estão no rastro possível do vômito letal dessas barragens que se esboroam;
3) não há meios de avisar essa gente que fica no caminho do mar de lama tóxica ou modo de tirá-las de lá a tempo. Quando acontece um desastre, por acidente ou incompetência criminosa (a ver), as pessoas morrem como vítimas de bala perdida nos tiroteios das metrópoles brasileiras. Isso é descaso.
Incúria, corrupções, burrices e ignorâncias brasileiras básicas e, ainda pior agora, a falta de dinheiro devem nos deixar mais alertas. Alguém ainda se lembra da desgraça, da tristeza infinita, do Museu Nacional? A queima da memória brasileira, a ponte que caiu ou a lama da mineração podem ser sintomas de coisa pior.
Vinicius Torres Freire
Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).