domingo, 23 de fevereiro de 2014

Confiar desconfiando - SUELY CALDAS


O Estado de S.Paulo - 23/02

Há algumas fragilidades embutidas na nova meta fiscal do governo que levaram analistas e agentes econômicos a confiarem desconfiando. A meta em si (um superávit de R$ 99 bilhões, equivalente a 1,9% do PIB) é realista e factível. O corte de R$ 44 bilhões nos gastos também. São números que merecem ser festejados - deixaram para trás os devaneios dos últimos três anos. Por que, então, a desconfiança?

A eleição é o fator mais imponderável: a candidata-presidente vai negar dinheiro para atender a demandas de aliados políticos vindas do País inteiro? Vai recusar gastar o que for preciso para atender à voz das ruas e investir em transportes ou apressar obras para inaugurá-las e ganhar votos? A incerteza em relação ao comportamento de governantes/candidatos em períodos eleitorais é sustentada no vasto histórico dos políticos brasileiros em geral e, em particular, no inesgotável e ardente desejo do PT de ganhar eleição a qualquer custo.

Outro fator imponderável é o que fará Dilma se, ao longo do ano, as despesas crescerem mais do que o previsto, a receita tributária for insuficiente para cobri-las e ameaçar o cumprimento da meta. Ela vai recorrer a truques e malabarismos da tal contabilidade criativa dos três anos anteriores? Isso ela parece ter aprendido, sabe que triangulações financeiras forçadas, receitas falaciosas e outras pajelanças arquitetadas por assessores minaram a confiança dos empresários e subtraíram investimentos em seu governo. Pedir a Mantega uma meta fiscal realista é sinal de que não pretende recorrer a artifícios.

Só que Mantega calculou a receita tributária - essencial para o superávit primário de 1,9% do PIB - com base em estimativa otimista de uma taxa de crescimento econômico de 2,5%, enquanto os analistas (inclusive ligados ao governo, como o ex-secretário executivo da Fazenda Nelson Barbosa) não acreditam em mais de 1,5%. E 1% a menos na já minúscula previsão do PIB faz enorme diferença para o resultado final da receita tributária. Resta o recurso de remanejar verbas de uma para outra área. Mas será possível fazê-lo sem prejudicar investimentos e a área social, que Dilma quer preservar neste ano eleitoral? Difícil.

Até porque há no Orçamento outras fragilidades técnicas não equacionadas, que pressionarão o resultado fiscal ao longo do ano. Uma delas é tão clara que salta aos olhos: a previsão de déficit para a Previdência foi calculada em R$ 40 bilhões, 25% menor que os R$ 49,85 bilhões de 2013, mesmo com o reajuste de 6,78% do salário mínimo e nenhuma mudança no cenário que fundamente tal otimismo futurológico.

A segunda fragilidade é mais complexa, pois arrisca debilitar ainda mais a situação financeira das empresas do setor elétrico e comprometer a qualidade de serviços de manutenção da rede, potencializando a ocorrência de apagões País afora. É que o governo decidiu reservar no Orçamento só R$ 9 bilhões para subsidiar o consumo de energia em 2014 (em 2013 foram R$ 9,8 bilhões), mas nada destinou para cobrir os crescentes prejuízos causados pela longa estiagem do verão, que levou as empresas a comprarem energia das termoelétricas a preços mais caros do que vendem aos consumidores.

Há duas alternativas de solução para o problema: ou a candidata/presidente subtrai do Orçamento de 2014 mais R$ 9 bilhões (estimativa de técnicos do governo) para cobrir os prejuízos das empresas ou os repassa para o consumidor via aumento da tarifa. O assunto foi recorrente no encontro de Mantega com analistas internacionais na sexta-feira. O ministro não esclareceu por qual solução o governo vai optar, mas definiu o mês de abril como último prazo para decidir, depois de avaliar os estragos da seca nos reservatórios de hidrelétricas e quantificar prejuízos. A decisão mais simples seria reajustar a tarifa. Mas aí entra o dilema eleitoral: qual interesse vai prevalecer, o da presidente ou o da candidata?

Infelizmente, os fatos têm mostrado que a redução da tarifa de energia está mais para um monstrengo do que para um carro-chefe de campanha - para a presidente e para a candidata.

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Democracia líquida (artigo essencial)

Para sociólogo italiano, a luta contra a barbárie depende de um ambiente em que a arte e a cultura sirvam de ‘líquido amniótico’ para ideais de liberdade, tolerância e solidariedade

15 de fevereiro de 2014 | 16h 00

João Marcos Coelho
Dois peixes jovens encontram-se casualmente com um peixe mais velho que nada na direção contrária. Este cumprimenta-os com a cabeça e lhes diz: "Bom dia, rapazes, como está a água?". Os dois peixes jovens nadam mais um pouco; depois um olha para o outro e pergunta: "Que diabos é água?". Nuccio Ordine Diamante, 55 anos, professor de literatura italiana da Universidade da Calábria e colaborador do jornal Corriere della Sera, costuma abrir suas aulas a cada ano contando essa historinha do escritor norte-americano David Foster Wallace. A intenção é ilustrar o papel e a função da cultura. Com os alunos meio "boiando", Ordine explica a parábola: "Como acontece com os dois peixes jovens, não nos damos conta de que é na água que vivemos cada minuto de nossa existência. Não temos consciência de que a literatura e os saberes humanísticos, a cultura e o ensino constituem o líquido amniótico ideal no qual as ideias de democracia, liberdade, justiça, laicidade, igualdade, direito à crítica, tolerância e solidariedade podem experimentar um vigoroso desenvolvimento".
Vidas inúteis? 'No universo utilitarista, um martelo vale mais que uma sinfonia' - Wilton Junior/Estadão
Wilton Junior/Estadão
Vidas inúteis? 'No universo utilitarista, um martelo vale mais que uma sinfonia'
Mas e se a água está irremediavelmente suja? Uma água contaminada pela corrupção, por uma sociedade em busca incessante do lucro? Uma água que transforma estudantes em "clientes", induzidos por pais a carreiras que só contemplam maior chance de enriquecer? Uma água virulenta, que espalha violência gratuita? Uma água que sepulta a arte e a cultura de invenção, em troca da "beleza fácil" e dos critérios comerciais na vida artística e cultural, na expressão de Ordine?
Contra essa água emporcalhada, o professor oferece um livrinho-bomba - um manifesto virulento e cheio de indignação intelectual a favor da arte e da cultura desinteressada a cargo de Platão, Aristóteles, Ovídio, Dante, Montaigne, Borges, Shakespeare, Boccaccio, Leopardi e Calvino. Um timaço convocado por Ordine em sua frente de combate. Título? A Utilidade do Inútil. Menos de 200 páginas em formato de livro de bolso editadas pela Bompiani de Milão. No final de 2013, a Acantilado de Barcelona lançou a edição espanhola. O professor Luiz Carlos Bombassaro, da UFRGS, universidade que recebeu Ordine em 2012, já traduziu o livro, a ser lançado no Brasil ainda em 2014. Na Itália, foram nove edições e 46 mil exemplares vendidos em quatro meses; na Espanha, cinco edições e 17 mil exemplares em três meses; e na França, 10 mil em quatro edições. Além do Brasil, o livro deve sair este ano na Grécia, Alemanha, Romênia e Coreia do Sul; em 2015, na Bulgária e na China. A melhor frase na imprensa europeia sobre o livro já está eleita: é de Jordí Llovet em El Pais: "Uma porrada em toda a classe política".
A mensagem de Ordine é bastante direta: não é verdade, nem em tempos de crise como se vive na Europa, que é útil apenas o que produz cifras. Num jogo de palavras, ele brinca com a utilidade do inútil (conhecimento) e a inutilidade do útil (lucro). Especialista em Giordano Bruno e no Renascimento e com um conhecimento enciclopédico fluindo numa escrita saborosa e clara, Ordine constrói um caleidoscópio de defesa da arte e da cultura - segmentos massacrados e hostilizados especialmente quando praticam a criação e a pesquisa baseadas tão somente no saudável gosto de perseguir o conhecimento.
"No universo do utilitarismo, um martelo vale mais que uma sinfonia, uma faca mais que uma poesia, uma chave-inglesa mais que um quadro, porque é fácil entender a eficiência de uma ferramenta, mas vem se tornando cada vez mais difícil entender para que servem a música, a literatura ou a arte", denuncia Ordine. Existem saberes que são fins em si mesmos e que - por sua natureza gratuita e desinteressada, alheia de qualquer vínculo prático e comercial - podem exercer papel fundamental no cultivo do espírito e desenvolvimento civil e cultural.
Mesmo se em alguns momentos da história o saber não soube ou pôde eliminar de vez a barbárie, ele diz não haver nenhuma outra escolha. "Devemos continuar a crer que a cultura e uma educação livre são os únicos meios para tornar a humanidade mais humana." Pequenas revoluções individuais, essa é a receita de Nuccio Ordine para mudar o estado das coisas. Abaixo, sua entrevista concedida ao Aliás.
No Brasil temos muitos ‘berlusconis’ e a classe política sofre o mesmo descrédito que na Itália. As verbas do governo chegam ralas a sua destinação porque são saqueadas no trajeto pela burocracia e pelos políticos. Que atitudes podem ser tomadas para começarmos a mudar esse estado de coisas? Que nos ensinam os clássicos em termos de resistência contra tudo isso?

O problema da corrupção acompanha todas as épocas. Mas hoje parece que ganhou mais capilaridade. A ditadura do lucro e do utilitarismo infectou todos os aspectos da nossa vida, chegando a contaminar esferas nas quais o dinheiro não deveria ter peso, como a educação. Transformar escolas e universidades em empresas que devem produzir unicamente diplomados para o mundo do trabalho é destruir o valor universal do ensino. Os estudantes adquirem créditos e pagam débitos com a esperança de conquistar uma profissão que possa dar a eles o máximo de riqueza. A escola e a universidade, ao contrário, devem formar os heréticos capazes de rejeitar o lugar-comum, de repelir a ideologia dominante de que a dignidade pode ser medida com base no dinheiro que possuímos ou com base no poder que possamos gerenciar. A felicidade, como nos recorda Montaigne, não consiste em possuir, mas em saber viver. No meu livro, quis chamar a atenção sobre os saberes que hoje são considerados inúteis porque não produzem lucro. Sem a literatura, a filosofia, a música e a arte, nós construiremos uma humanidade desumana, violenta, formada por indivíduos capazes de pensar exclusivamente em interesses egoístas.
Como devolver aos professores o sentido de missão que deveria ser a razão de seu trabalho?

Os professores viraram burocratas em busca de recursos para sobreviver. Perseguidos pela necessidade de encontrar recursos econômicos e governados por uma métrica burocrática que determina a pauta das reuniões de departamento, dos cursos de graduação e dos mais diversos conselhos (de administração, de pós-graduação, de cursos de especialização), vivem correndo de uma instituição a outra esquecendo que a tarefa mais importante de um docente consiste em estudar, preparar as aulas e acompanhar os alunos. Ensinar não é uma profissão, mas uma vocação que não prescinde de compromisso civil. Também na área da ciência financia-se cada vez menos a pesquisa de base e cada vez mais se pede que universidades e laboratórios encontrem financiamentos privados. Somente a liberdade da pesquisa (da pesquisa considerada "inútil") deu vida às grandes revoluções da humanidade. Sem os estudos teóricos de Maxwell e Hertz, Marconi nunca teria inventado o rádio.
As artes e a cultura são sempre as primeiras a sofrer cortes nas políticas públicas em situação de crise. Mas hoje a situação é pior: até os profissionais da arte e da cultura estão contaminados com a busca obsessiva pelo lucro. Mede-se e atribui-se valor à arte pelo volume de público que consegue atrair, mas quantidade nunca quis dizer qualidade. Isso sempre aconteceu historicamente?

Com o agravamento da crise econômica, os cortes dos governos atingem inexoravelmente mais os saberes considerados inúteis e as instituições que não produzem lucro: escolas e universidades, museus e arquivos históricos, escavações arqueológicas e bibliotecas, teatro e música. Muitas vezes, a sobrevivência desses saberes está subordinada à lógica da "quantidade", como se o sucesso imediato e o dinheiro derivado desse sucesso fossem os únicos parâmetros de avaliação. Mas, frequentemente, como lembra Tocqueville, o sucesso é determinado pela "beleza fácil" que não exige muito esforço nem excessiva perda de tempo. E dedicar tempo e realizar atividades que não produzem dinheiro parece ser um luxo que não podemos nos permitir. Se Tocqueville lembra que descuidar da instrução, da beleza e da cultura significa jogar a humanidade no abismo da ignorância e da barbárie, Víctor Hugo, num atualíssimo discurso proferido na Assembleia Constituinte francesa em 1848, demonstra que mesmo em tempos de crise é preciso dobrar os investimentos para a educação das novas gerações e para a promoção da cultura em geral. Hugo sabia bem que abrir uma escola significava fechar uma prisão.
Como transformar a indignação em uma luta coerente contra a ditadura do consumo?

Meu livro é uma reflexão sobre a utilidade do inútil, mas é também uma análise crítica da inutilidade do útil. Quantas vezes são vendidos produtos e objetos como sendo realmente indispensáveis? As invenções mais revolucionárias da técnica (basta pensar no iPhone ou na internet) também podem se transformar numa forma de escravidão. Os estudantes que não conseguem desligar o celular nas aulas (ou as pessoas que não o desligam num concerto, no cinema, no teatro, numa conferência) comportam-se como drogados. O dispositivo tecnológico é como um fármaco: pode curar e pode matar. Tudo depende da dose. Mas há mais. Numa sociedade em que o aparecer é mais importante que o ser, parece normal que o automóvel de luxo ou o relógio de grife se tornem expressão do nosso modo de ser. Basta ler O Mercador de Veneza, de Shakespeare, para compreender como a exterioridade induz ao erro. No reino de Belmonte, a bela Porzia se entregará como esposa ao que abre o cofre de chumbo, e não ao que abre o de ouro ou prata. Trata-se de um topos que, desde O Banquete de Platão, atravessará todo o Renascimento: as aparências enganam.
A palavra utopia tem sido malvista nos últimos tempos. Mas não é justamente o anseio pelas utopias que nos faz viver de modo mais intenso e impulsionou o senhor a escrever esse livro?

Reduzir o valor da vida ao dinheiro mata toda possibilidade de idealizar um mundo melhor. Somente o saber pode fazer frente ao domínio do dinheiro, pelo menos por três razões. A primeira: com o dinheiro pode-se comprar tudo (dos juízes aos parlamentares, do poder ao sucesso), menos o conhecimento. Sócrates lembra a Agatão que o saber não pode ser transferido mecanicamente de uma pessoa a outra. O conhecimento não se adquire, mas se conquista com grande empenho interior. A segunda razão diz respeito à total reversão da lógica do mercado. Em qualquer troca econômica há sempre uma perda e um ganho. Se compro um relógio, por exemplo, "perco" o dinheiro e fico com o relógio; e quem me vende o relógio "perde" o relógio e recebe o dinheiro. Mas, no âmbito do conhecimento, um professor pode ensinar um teorema sem perdê-lo. No círculo virtuoso do ensinar, enriquece quem recebe (o estudante), enriquece quem dá (quantas vezes o professor aprende com seus estudantes?). Trata-se de um pequeno milagre. Um milagre - e essa é a terceira razão - que o dramaturgo irlandês George Bernard Shaw sintetiza num exemplo: se dois indivíduos têm uma maçã cada um e fazem uma troca, ao voltar para casa cada um deles terá uma maçã. Mas, se esses indivíduos possuem cada um uma ideia e a trocam, ao voltarem para casa cada um deles terá duas ideias. Mesmo se em alguns momentos da história o saber não soube ou pôde eliminar por completo a barbárie, não temos outra escolha. Devemos continuar a crer que a cultura e uma educação livre são os únicos meios para tornar a humanidade mais humana.

 que é Democracia Líquida?

Introdução

A Democracia Líquida é uma forma de democracia híbrida entre as democracias direta e representativa, com o objetivo de combinar as vantagens de ambas, dando aos cidadãos uma maior possibilidade de participar. Assista ao vídeo:

Democracia Interativa usando Democracia Líquida

Traduzido porObservatório Pirata
por Andreas Nitsche

Democracia Líquida
Comecemos com um antigo sonho mencionado por Alexander Hamilton em 1788: “Foi observado por um cavalheiro honrado que uma democracia pura, se praticável, seria o mais perfeito sistema de governo”. Com esta ideia ele comparou desfavoravelmente a democracia pura (ou direta) à república proposta pela Convenção Constitucional da Filadélfia.
Uma democracia representativa é fundada no princípio de que indivíduos eleitos representam o povo. Geralmente, você elege um representante (indivíduo ou partido) para um mandato fixo – se você mudar de ideia durante o mandato, não pode fazer muito a respeito. Além disso, representantes em geral defendem todo um conjunto de objetivos políticos. Se você não encontrar a sua mistura perfeita, terá de aceitar concessões.
Por outro lado, uma democracia pura (ou direta) pode ser menos eficiente. Acredita-se que seja impraticável em larga escala, e prevenções contra o mando da turba remontam a Platão. Ainda assim muitas pessoas, honradas ou não, sustentam o sonho de uma democracia pura. Novas tecnologias como a Internet poderiam colocar o sonho ao nosso alcance. É claro que este é somente o aspecto técnico. A questão que fica é: serão todas as pessoas capazes de lidar com todas as questões, ou elas deixarão de participar? Ou haverão somente decisões superficiais, do tipo “parece bom – vamos votar por isso”?.
É aí que entra a Democracia Líquida. A ideia básica é: um eleitor pode transferir seu voto a um delegado (tecnicamente uma procuração transitória). O voto pode então ser transferido adiante, construindo assim uma rede de confiança. Todas as delegações podem ser efetuadas, alteradas e revogadas por tópico. Eu voto por mim mesmo em questões de meio ambiente, Anne me representa em política externa e Mike me representa em todas as outras áreas, mas eu posso mudar de ideia a qualquer momento.
Qualquer um pode escolher seu próprio caminho, desde a democracia pura até a democracia representativa. Basicamente, cada um participa naquilo que o interessa, mas em todas as outras áreas repassa seu voto a alguém que age em seu interesse. Claro que eventualmente alguém pode fazer uma má escolha, mas poderá mudar de ideia a qualquer momento.

O Projeto LiquidFeedback
O LiquidFeedback é um sistema online para discussão e votação de propostas no contexto de um partido (ou organização), e compreende o processo que vai desde a introdução do primeiro rascunho de uma proposta até a decisão final. Discutir um tema antes da votação aumenta a consciência dos prós e dos contras, oportunidades e riscos, e permite que as pessoas considerem e sugiram alternativas.
Ele combina conceitos de um processo de discussão não moderado e auto-organizado (feedback construtivo e quantificado) e democracia líquida (ou delegada ou por procuração). Seguindo a ideia da democracia interativa, o LiquidFeedback introduz um novo canal de comunicação entre votantes e representantes (neste caso, membros e membros diretores), entrega resultados confiáveis sobre o que os membros querem e o que pode ser usado como informação, sugestão ou diretriz, a depender das necessidades da organização ou da legislação do país.
Este sistema permite que todos os membros participem não somente votando como também desenvolvendo ideias, ao mesmo tempo que auxilia membros diretores a entender o que a maioria realmente quer, para tomar decisões corretas e responsáveis baseadas no “voto popular”.
O Liquidfeedback foi desenvolvido pelo Public Software Group, em Berlim, Alemanha. Está disponível sob licença do Massachusetts Institute of Technology (MIT), similar à licença da cláusula BSD-3 da University of California, em Berkeley, o que torna o software basicamente livre para todos. A motivação original para sua criação, em 2009, era a demanda de um partido político em ascensão em evitar uma representação hierárquica clássica. Os membros diretores do Partido Pirata em Berlim quiseram perpetuar a possibilidade de que qualquer membro participasse tanto no desenvolvimento de ideias quanto nas decisões do partido.
Embora queiramos que todos participam do desenvolvimento de ideias, nós acreditamos que em um primeiro momento muitos rascunhos serão criados por um pequeno grupo ou mesmo individualmente. Este não é um problema, desde que:
- todos possam se informar sobre a iniciativa
- todos possam contribuir com sugestões
- todos possam criar uma iniciativa alternativa
- todos possam votar no final
Todo membro pode começar uma iniciativa. Durante o período de discussão, os proponentes poderão divulgar suas propostas e obter respostas sobre o nível de suporte para a mesma dentro da organização.
Além disso, eles recebem sugestões para desenvolver a iniciativa. Estas sugestões são quantificadas em termos de quanto suporte poderá ser ganho ou perdido caso sejam implementadas. Por razões óbvias, apenas o proponente da iniciativa pode decidir se uma sugestão será ou não implementada. A ideia de como se dará a implementação pode diferir muito. Portanto, depois que um novo esboço é publicado os membros podem informar aos proponentes se a implementação corresponde àquilo que é tratado na sugestão.
Neste ponto nós queremos que todos trabalhem para um mesmo objetivo e precisem apenas de feedback construtivo para a iniciativa. Nós não esperamos melhorias de pessoas que consideram a ideia básica absurda. Se alguém sente que há algo na proposta de que discorda fundamentalmente, deve propôr uma iniciativa alternativa ou votar “Não” quando chegar a hora da votação.
Também não queremos forçar as pessoas a fazer concessões que talvez não queiram fazer, ou encorajá-los a votar baseadas em posições majoritárias e possibilidades – por exemplo: ninguém que vota em A deve ser encorajado a votar em B só porquê B tem mais chances de ganhar e C é ainda pior. Em vez disso, nós permitimos que os eleitores expressem seus objetivos políticos
Intencionalmente, não implantamos moderação ou negociações reservadas entre os proponentes. Como resultado, podem haver os chamados clones, isto é, iniciativas muito semelhantes mas com diferenças aparentemente insignificantes (que podem ser importantes para alguns eleitores). Clones não devem prejudicar uma ideia básica (e nem apoiá-la, é claro), e é por isso que implementamos um sistema muito avançado de votação baseado noDescartamento Sequencial Schwartz Imune a Clones (CSSD -  Cloneproof Schwartz Sequential Dropping, em inglês), também conhecido como o Método de Schulze (Schulze method).
Finalmente, nos apoiamos no conceito de rastreabilidade para assegurar a integridade do sistema. É o que chamamos de transparência, no sentido político da palavra.

Perspectivas e o que é necessário para o sucesso
Nós esperamos que a Democracia Líquida seja introduzida na forma de sugestões para o processo decisório dos representantes. Mesmo isso pode ter um grande impacto, se os resultados forem reconhecidos como confiáveis e indisputáveis.
Mesmo que os resultados não tenham efeito legal e signifiquem apenas uma indicação para um representante (ou membros da diretoria), não deve haver dúvida que expressam a vontade dos participantes. Para cumprir esta exigência devem haver regras incontestáveis sobre quando e como uma decisão é feita.
Além disso, se os resultados devem expressar a opinião de um determinado grupo, deve haver um acordo entre seus membros para usar um sistema específico, e cada membro deste grupo (e apenas este) deve ter acesso ao sistema com exatamente uma conta.
Toda experiência que adquirimos nos últimos meses demonstra que as pessoas participam se elas percebem que o sistema faz sentido, e representantes legais ao menos reconhecem o desejo dos participantes, em lugar de discutir com maiorias silenciosas.
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Narciso na viatura


Reação furiosa de PMs à inversão cômica proposta pelo Porta dos Fundos reflete a projeção, num espelho gigantesco, de suas próprias formas de ser e de agir

16 de fevereiro de 2014 | 2h 07

JOEL BIRMAN - O Estado de S.Paulo
O humorista e colunista do Estado Fábio Porchat está sendo ameaçado seriamente por policiais militares do Rio de Janeiro em consequência do esquete Dura, veiculado na internet pelo grupo humorístico Porta dos Fundos. O Blog do Soldado, uma página não oficial da Polícia Militar do Rio de Janeiro, publicou o esquete, com comentários de indignação dos policiais. Eles se sentiram ultrajados e mesmo humilhados em sua função de exercício da segurança pública, ameaçando se vingar do ator. Em decorrência disso, o pai de Fábio, ex-deputado, foi ao Senado solicitar proteção para o filho, provocando então um fato político. O fato enuncia a atuação truculenta das polícias militares, que pretendem ocupar uma posição de exceção no Estado brasileiro, como ocorre, aliás, com as demais instâncias do poder constituído de nossa República capenga.
É preciso reconhecer que a totalidade do episódio seria cômica se não fosse triste. Assim, fica patente que a democracia brasileira ainda não convive com o humor e a ironia como ocorre na maior parte das democracias de longa duração, como outros episódios recentes já mostraram. Além disso, é também óbvio nesse episódio como nossa democracia não suporta a plena liberdade de expressão. Em decorrência disso, a arte e o trabalho intelectual pagam um preço alto por essa censura direta e indireta, pela qual a criminalização da vida social no Brasil vem se transformando numa prática nefasta e perigosa.
Contudo, se examinarmos a composição do dito esquete, o que é que nos é apresentado? Nada mais nada menos que uma inversão caricata daquilo que as forças responsáveis pela manutenção da segurança pública fazem com os cidadãos brasileiros no dia a dia. Vale dizer, esses agentes públicos humilham e achacam ostensivamente parcelas significativas da população, principalmente se essas são frágeis do ponto de vista social, etário, étnico e sexual. Com efeito, são os pobres, sobretudo se forem negros, além dos jovens de todas as cores e classes sociais, sem esquecer das mulheres e dos homossexuais, que são certamente os alvos privilegiados da Dura, conhecida como o "inferno nosso de cada dia". É a cidadania brasileira que é assim achincalhada, de maneira acintosa e despudorada, pelas forças da ordem. É essa inversão jocosa que o esquete propõe em sua paródia, mostrando cidadãos indignados, grosseiros e violentos cobrando dos policiais que estejam à altura da função social que lhes é constitucionalmente atribuída, mas agindo paradoxalmente como fazem os policiais.
Por que então a reação descabida dos policiais? Certamente porque eles se sentem denunciados naquilo que fazem com os cidadãos, visualizando na inversão cômica proposta pelo humorista a projeção num espelho gigantesco das próprias formas de ser e de agir. Isso tudo nos é mostrado de forma realista nos seus menores detalhes gestuais e nos seus inconfundíveis jogos de linguagem. Se Narciso só ama o que é espelho, como toda a tradição psicanalítica, de Freud a Lacan, está careca de saber e que até Caetano Veloso evoca numa de suas canções, no caso em questão os policiais reagem violenta e perigosamente contra o que é mostrado porque querem ocultar o que são e o que fazem - isto é, a prática cotidiana da "dura".
Se essa prática não estivesse naturalizada entre os policiais, não haveria razão para que o Blog do Soldado reagisse da forma inusitada que o fez, de maneira a representar assim a totalidade da corporação. Pode-se mesmo supor que, se os policiais em questão se sentissem desonrados pela paródia, poderiam escolher os canais legais que a ordem democrática lhes oferece para questionar tal modalidade de humor. Contudo, se não o fizeram, mas preferiram em vez disso fazerem ameaças de "metralhar" o humorista, isso revela, por essa "outra volta do parafuso" (na imagem do escritor Henry James), a truculência policial na nossa existência. Enfim, pela repetição do mesmo os policiais confirmam o que fazem.
Além disso, a inversão paródica proposta pelo humorista, que gerou tal reação despropositada, nos remete a todas as demais inversões que nos últimos dias têm caracterizado o imaginário da sociedade brasileira. As formas pelas quais os recentes acontecimentos no Rio têm sido tratados pelas autoridades políticas e policiais, assim como por uma parcela da mídia, ao realizarem inversões circenses do que de fato acontece em torno do "terrorismo" relançam num espelho assustador as tentativas para restaurar práticas autoritárias vigentes na ditadura militar.
O que não se fala quase nunca é que, além de ser um personagem mítico, Narciso é o nome de uma flor, utilizada em rituais funerários na Grécia Antiga, remetendo então à experiência da morte. Portanto, na imagem do sujeito projetada no espelho, seja essa bela ou horrorosa, como é o caso da que é reconhecida na sua reação pelos policiais, o que está também em jogo é a figura macabra da morte, como Oscar Wilde representou de maneira brilhante em O Retrato de Dorian Gray.
Se Marx dizia, em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, que a história acontece como tragédia e se repete como farsa, não resta dúvida de que essa proposição lapidar serve para explicitar o que está em causa nesse episódio funesto. Com efeito, as forças da segurança pública agem frequentemente com violência, desrespeitando direitos fundamentais da cidadania e das regras democráticas - o que, convenhamos, é da ordem do trágico -, mas reagem pela ameaça da força e da morte a qualquer um que tenha a coragem de dizer isso alto e bom som.
O que os humoristas fizeram em sua cena, pela inversão de posição entre as figuras do policial e do cidadão, foi apenas a farsa dessa tragédia que nos acossa e nos deixa cada vez mais inseguros face às supostas forças da ordem pública.
JOEL BIRMAN É PSICANALISTA,  PROFESSOR TITULAR DO INSTITUTO DE PSICOLOGIA DA UFRJ, PROFESSOR ADJUNTO DO INSTITUTO DE MEDICINA SOCIAL DA UERJ