domingo, 25 de agosto de 2013

Patrocinador do Mal - MARIO VARGAS LLOSA

 

O Estado de S.Paulo - 24/08

A série da TV colombiana Escobar, o Patrocinador do Mal teve muito sucesso no seu país de origem e não há dúvida que terá em todos os lugares onde for exibida. Foi muito bem produzida, escrita e dirigida. Ángel Parra, ator que encarna o narcotraficante, o faz com enorme talento. Contudo, diferentemente do que ocorre com outras grandes séries de TV, como The Wire ou 24, dos EUA, ela é acompanhada com desconforto, um mal-estar difuso provocado pela sensação de que, ao contrário do que relatam, é a descrição mais ou menos fidedigna de um pesadelo que acometeu a Colômbia durante os anos em que viveu sob o império do narcotráfico.

Os 74 episódios aos quais acabei de assistir, embora algumas liberdades tenham sido tomadas com relação à história real e alguns nomes próprios tenham sido mudados, são um testemunho autêntico, fascinante e instrutivo da violenta modernização econômica e social - um verdadeiro terremoto, que sofreu a letárgica sociedade colombiana, que se converteu, por obra do gênio empresarial de Escobar, de uma indústria artesanal, nos anos 70, na capital mundial da produção e do comércio de cocaína.

Infelizmente, a trajetória de Escobar está apenas resumida na série, que se concentra mais na experiência familiar do narcotraficante, sua vida pública e clandestina, seus delírios e seus crimes horrendos. Sua ambição era tão grande quanto sua falta de escrúpulos e os delírios e ataques de ira que o induziam a exercer a crueldade com o refinamento e a frieza de um personagem do Marquês de Sade, contrastavam curiosamente com seu complexo de Édipo mal resolvido que o transformava num cordeiro diante da rígida matriarca que foi sua mãe e sua condição de marido modelo e pai muito afetuoso.

Quando lhe apetecia uma "virgenzinha", seus sequazes procuravam uma e depois era assassinada para apagar as pistas. Sempre se considerou um "homem de esquerda" e quando oferecia casas de presente para os pobres construía também zoológicos e proporcionava grandes espetáculos esportivos, como quando mandava explodir carros-bomba que deixavam centenas de inocentes em pedaços.

Ele estava convencido de estar lutando por justiça e direitos humanos. Como criou milhares de empregos - lícitos e ilícitos -, era pródigo e perdulário e personificou a ideia de que uma pessoa pode enriquecer da noite para o dia usando uma arma. Foi ídolo nos bairros marginais de Medellín e, por isso, quando morreu, milhares de pobres choraram por ele, chamando-o de santo, um segundo Jesus Cristo. Ele, como sua família e seu exército de rufiões, era católico praticante e devoto de Santo Niño de Atocha.

Sua fortuna foi gigantesca, embora ninguém tenha conseguido calcular o valor com precisão e não tenha sido exagero quando, em determinado momento, se afirmou que ele era o homem mais rico do mundo. O personagem mais poderoso da Colômbia podia transgredir todas as leis, comprar políticos, militares, funcionários, juízes, torturar, sequestrar e assassinar todos aqueles (e suas famílias) que ousavam se opor a ele.

O notável é que, diante da alternativa em que Pablo Escobar transformou a vida dos colombianos - "prata ou chumbo" -, havia pessoas, como o jornalista Guillermo Cano, dono e diretor do jornal El Espectador, sua heroica família e alguns juízes, militares e políticos que não se deixaram comprar nem intimidar, e preferiram morrer. Foi o caso de Luis Carlos Galán e do ministro Rodrigo Lara Bonilla.

O que dá calafrios ao ver essa série é a impressão que fica de que, se o poder e afortuna não o tivessem empurrado, nos anos finais da sua vida, para excessos patológicos e a se desentender com os próprios sócios, que ele extorquia e mandava assassinar, e tivesse se resignado a um papel menos histriônico e exibicionista, Escobar poderia ter sido presidente da Colômbia ou talvez dono do país.

O que o arruinou foi a soberba, o fato de se acreditar o todo-poderoso, criar tantos inimigos no seu próprio meio e provocar tanto medo e terror com os assassinatos coletivos de carros-bomba, que mandava explodir nas cidades nas horas de pico para que o Estado se submetesse a suas ordens, que seus próprios cúmplices se juntaram contra ele e foram o principal fator de seu fim.

Se um romancista inserisse em sua obra alguns dos episódios protagonizados por Pablo Escobar, a história fracassaria estrondosamente, considerada inverossímil. Talvez o mais delirante e jocoso seja o episódio da sua "entrega" ao governo colombiano, depois de ter dado a satisfação para ele de assinar decretos garantindo que nenhum colombiano jamais seria extraditado para os EUA - a Justiça americana era o pesadelo dos narcotraficantes - e construir para ele um cárcere privado, "La Catedral", de acordo com suas exigências e necessidades.

Ou seja: mesas de bilhar, piscina, discoteca, um chefe de cozinha de prestígio, equipamentos sofisticados de rádio e televisão, o direito de escolher e vetar a guarda encarregada de vigiar o exterior da prisão. Escobar instalou-se na Catedral com suas armas, seus sicários e continuou dirigindo, dali, seu negócio transnacional. Quando queria, ia para Medellín para se divertir e, outras vezes, organizava orgias no suposto cárcere, com músicos e prostitutas que eram trazidos por seus capangas.

Na mesma prisão, permitiram o assassinato de dois dos seus destacados sócios no Cartel de Medellín por não terem deixado que os extorquissem. Como o escândalo foi enorme e a opinião pública reagiu com indignação, o governo tentou transferi-lo para uma prisão de verdade. Então, Escobar e seus pistoleiros, alertados pelos próprios guardas, que estavam em sua folha de pagamento, fugiram. Ainda conseguiu desencadear uma série de assassinatos, mas ele já estava mentalmente perturbado. Os Pepes (Perseguidos por Pablo Escobar) haviam começado a agir.

Quem eram os Pepes? Uma associação de rufiões, vários deles ex-sócios de Escobar no tráfico de cocaína, o Cartel de Cali, que sempre foi adversário do de Medellín, os guerrilheiros da ultradireita (comitês de autodefesa) de Antioquia e outros inimigos do universo do banditismo que Escobar fora criando com seus caprichos e prepotências ao longo de sua carreira. Eles compreenderam que a visibilidade alcançada por esse personagem punha em risco todo o narcotráfico.

Assassinaram seus colaboradores, prepararam emboscadas, converteram-se em informantes das autoridades. Em menos de um ano, o império de Pablo Escobar desintegrou-se. Seu final não podia ser mais patético: acompanhado por um único guarda-costas - todos os outros estavam mortos, presos ou haviam passado para o lado do inimigo - escondido em uma casinha muito modesta e delirando com seu projeto de refugiar-se em algum grupo guerrilheiro nas montanhas, por fim, foi caçado por um comando policial e militar que o abateu a tiros.

A morte de Escobar, esse pioneiro dos tempos heroicos, não acabou com a indústria do narcotráfico. Nos nossos dias, ela se tornou muito mais moderna, sofisticada e invisível do que naqueles tempos. A Colômbia já não detém a hegemonia de então. O tráfico se descentralizou e campeia também no México, na América Central, Venezuela, Brasil e nos países antes exclusivamente produtores da pasta básica, como Peru, Bolívia e Equador.

Hoje, eles competem na área do refino e na comercialização e, como na Colômbia, têm guerrilheiros e exércitos privados a seu serviço. A fonte principal da corrupção, a grande ameaça para o processo de democratização política e modernização econômica vivido pela América Latina, continua sendo e será cada vez mais o narcotráfico.

Até que, por fim, se abra totalmente o caminho para a ideia de que a repressão à droga serve apenas para criar obras destrutivas como a construída por Escobar e a delinquência associada a ela desaparecerá somente quando o seu consumo for legalizado e as enormes somas atualmente investidas em combatê-la forem gastas em campanhas de reabilitação e prevenção. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO E ANNA CAPOVILLA

Capital afetivo - HUMBERTO WERNECK


O Estado de S.Paulo - 25/08

A esta altura dos acontecimentos, devo admitir que ainda não achei resposta para a pergunta com que o Caetano foi ao ponto: existirmos, a que será que se destina? Seremos, como dizia no fim o Cazuza, cobaias de Deus? Se você me permite a filosofada, desconfio que o sentido da vida se resume ao inconsequente prosseguimento da espécie, nessa absurda correia transportadora em cujo termo nos espera a queda no vazio. Resta saber o que faremos enquanto estamos por aqui. Se aceita sugestão, aqui vai esta: o melhor investimento é nos afetos.

Nada impede que a gente faça amigos até o último dia, mesmo como esforço de reposição, e espero que seja assim comigo. Alguns anos atrás, para comemorar uma idade redonda, dei uma festança, e me lembro da alegria que saboreei quando, ao descer uns degraus rumo ao espaço onde estava o povaréu, me bateu essa constatação: o que costurava aquelas 200 pessoas - muitas das quais nem se conheciam -, numa inédita e irrepetível configuração, era o afeto que me ligava a cada uma delas.

E não se tratava, benza Deus, de passageiros apenas do vagão de 1945, aquele em que desembarquei no mundo; ao contrário, estacionara ali uma composição de variadas gerações, dos 80 anos aos menos de 20. Foi gratificante me dar conta de que venho resistindo bem à tentação, reforçada pelo envelhecimento, de me refugiar nostalgicamente no vagão de origem. Bom saber que posso transitar por todos os demais até que chegue à estação final.

Lá estavam, claro, vindos de diversas partes, amores meus também chegados em 1945 e imediações; os "amigos fundamentais" a quem dediquei um livro e que me empenho em cultivar. Pois não é pouca coisa uma amizade capaz de atravessar, nem digo décadas, mas tantas solicitações à dispersão. É fácil ser amigo enquanto impera o socialismo da juventude, essa companheiragem - os mesmos sonhos, os mesmos gostos, o mesmo dinheiro curto - que nos mantém mancomunados até por volta dos 30, 30 e poucos anos, quando uma diáspora nos espalha por destinos nem sempre coincidentes e não raro inconciliáveis. É duro admitir, mas há em nossos corações (ou será no fígado?) um quarto de despejo para descarte de afetos vencidos.

Cada safra de amizades tem sua marca, mas só as mais antigas ostentam o privilégio de haverem compartilhado descobertas primordiais. Só na extrema juventude você tem direito de anunciar a seus parceiros, sem risco de ridículo, que descobriu um tal de Dostoievski, um tal de Brahms, um tal de Cézanne. Ou mesmo um tal de... não, não vou dizer o nome do romancista em questão. Mas entrego a cena cômica.

Ali pelos nossos 20 anos, um de meus comparsas literários, cujo nome também devo omitir, me apareceu um dia, exultante, com um livro nas mãos. Eu tinha que ler aquilo, tinha!, urgia ele, enfático. Bom assim?, perguntei, descrente de que por trás daquele título e daquela capa, ambos medonhos, pudesse haver o que se aproveitasse. Não - concedeu ele, antes de proferir essa maravilha: "É ruim, mas importante!". Pra quê! Estava criada em nossa roda, para todo o sempre, a categoria do ruim-mas-importante.

Mas convém ir devagar nos julgamentos, pessoais e literários inclusive. Era menino quando minha mãe me aplicou o Coração, do italiano Edmundo De Amicis, centenária coletânea de histórias que li e reli apaixonadamente, mas que no final da adolescência, sentindo-me não só homem feito como senhor de insubornável senso crítico, condenei à estante da subliteratura lacrimogênea. Já me aproximava dos 30 anos quando reencontrei o mesmo exemplar de Coração, que me pus a folhear, enquanto contava à amiga que me acompanhava: "Imagina que eu lia isso e chorava...". Abri o livro ao acaso e comecei a ler, em tom de mofa, a história do pequeno vigia lombardo, até que a voz engasgou e os olhos, como antigamente, boiaram em lágrimas.

(Epa, eu falava de amizade, enveredei pelas letras, cheguei às lágrimas... Espero que você perdoe o desconchavo. Amigo não é pra essas coisas?)

O que você vai ser quando crescer? - MARTHA MEDEIROS


ZERO HORA - 25/08


Numa sociedade competitiva como a de hoje, não é de estranhar que o fator mais importante da vida seja o trabalho. Ele consome nosso tempo e nossas preocupações: temos que ganhar dinheiro, temos que ser os melhores, temos que superar a concorrência e só então... Só então o quê? Morrer?

Crianças mal atingem os cinco anos e já começam a ser sabatinadas sobre o futuro: “O que você vai ser quando crescer?”. E as coitadinhas entram no jogo. Em vez de responderem que pretendem ser surfistas, caroneiras, participantes de um coro ou defensoras da natureza, respondem com a primeira profissão que lhes vêm à cabeça: veterinário, professor, bombeiro. Na verdade, elas não têm a menor ideia do que querem ser – nem os vestibulandos têm – mas já intuem que sua identidade estará atrelada ao que fizerem para se sustentar.

Tanto isso é verdade que os anjinhos crescem, estudam, começam a trabalhar e um dia estão numa festa e são apresentados a alguém. Trocam um aperto de mãos e a primeira pergunta entre os dois desconhecidos será: “O que você faz?”.

E não se ouvirá como resposta “eu levo meus filhos ao estádio, eu participo de rallys aos domingos, eu sou campeão em palavras-cruzadas, eu saio com meu cachorro todo final de tarde, eu vou ao cinema às quintas-feiras, eu namoro a mulher mais incrível do mundo, eu corro maratonas”.

Você responderá que é professor, veterinário, bombeiro. Ou vão achar que você não tem uma vida.

Mas você também. Só que ela ocupa um lugar muito menor do que deveria na sua lista de prioridades. Você passa um terço do dia trabalhando, e outro terço pensando na reunião de amanhã cedo, nas tarefas que ainda não foram concluídas, no cliente que está ameaçando deixar a empresa, no funcionário que não está correspondendo. No terceiro terço você dorme. Mal.

Quem está viciado nesse esquema pode encontrar dificuldade em relaxar. Mas para quem está entrando agora no mercado de trabalho, vale adotar desde cedo uma postura mais equilibrada entre vida pessoal e profissional, começando por repensar essa questão da identidade: você não é o que você faz para ganhar dinheiro, você é o que você faz para ser feliz. As horas de lazer também são produtivas, uma vez que elas abastecem nossa imaginação, sonhos, ideias, reflexões, e sem isso, aí é que não se cria identidade alguma, viramos apenas um número a mais nas estatísticas de mão-de-obra.

Não sei o que o Brasil pretende ser quando crescer, mas tomara que ele cresça com pessoas que, ao chegarem perto da morte, não tenham tantos arrependimentos pelo que deixaram de fazer quando ainda tinham tempo para fazê-las.