segunda-feira, 24 de junho de 2013

Fantasia Desorganizada


 
24/06/2013- 05h43
Não é com as Diretas Já ou o Fora Collor que se parecem as manifestações atuais.
Aquelas iniciativas foram enquadradas e dirigidas por líderes políticos. Possuíam objetivo único e bem definido: o fim da ditadura, o fim de um presidente. Visavam, no fundo, substituir os que detinham o poder.
O movimento de agora é um primo pobre e muito longínquo de Maio de 68. Não apenas na maciça participação de jovens e estudantes, na caótica desorganização (Maio de 68 era bem mais estruturado), na rejeição do sistema político.
As maiores semelhanças são de essência: não querem conquistar o poder, mas, num caso, o de 68, “mudar a vida”, no outro, “mudar o Brasil”.
O Movimento Passe Livre é muito mais prosaico no ponto de partida: o protesto contra o aumento das passagens. Se desta vez o protesto “pegou”, foi porque o descaso com a inflação provocou o agravamento dos conflitos distributivos, como dizem os economistas.
O MPL não tem nem de longe a radicalidade universal do sonho utópico de Maio de 68. Tampouco se compara com os parisienses no sopro poético de buscar no Manifesto Surrealista a inspiração para inesquecíveis slogans como: “Seja realista: exija o impossível!”.
Não obstante, os manifestantes brasileiros não carecem de virtudes estimáveis. Restabeleceram o exercício direto da cidadania, demonstraram que o mar de corrupção não afogou a consciência moral dos jovens, revelaram senso de hierarquia de valores e prioridades superior ao de um governo empenhado em anestesiar os cidadãos com o desperdício circense da Copa.
Onde os nossos jovens se meteram num beco sem saída foi na rejeição em bloco de toda a política. Se quiserem purificar o sistema político, terão de enfiar as mãos na massa, canalizar a insatisfação para as eleições, único meio legítimo de conquistar o poder e mudar a sociedade.
Os discípulos de Marcuse não queriam virar governo por crerem que todo poder é dominação e alienação. Condenaram-se à impotência e ao niilismo: não é de surpreender que tenham dado lugar aos movimentos terroristas dos anos de chumbo.
Nosso movimento é uma manifestação a mais da crise mundial da democracia representativa. A saída, porém, está em construir mecanismos de participação direta que corrijam os desvios do sistema. Como, por exemplo, o “recall”, a revogação do mandato pelos eleitores.
Não será fácil, mas um foco claro como esse é mais exequível do que esperar que um sistema irremediavelmente sórdido e corrupto se reforme sem pressão irresistível do povo.
A euforia das passeatas, a intoxicação de se sentir ator e sujeito do próprio destino, traz de volta o que ensinavam os gregos: a mais nobre expressão da vida humana é participar do governo da cidade. Para isso, é preciso ter, como dizia Celso Furtado, uma “fantasia organizada”.
Não se pode ter manifestação sem itinerário, sem segurança que elimine os provocadores, sem respeito à liberdade e propriedade alheia.
Na falta disso, cai-se no “espontaneismo”. Na Espanha, espontâneo é aquele entusiasta de tourada que salta na arena para tourear com o paletó. Quase sempre acaba em tragédia e chifrada…
rubens ricupero
Rubens Ricupero, diretor da Faculdade de Economia da Faap, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), ministro da Amazônia e do Meio Ambiente, ministro da Fazenda (governo Itamar), embaixador em Genebra, Washington e Roma. Escreve quinzenalmente, aos domingos, na versão impressa de “Mercado”.

O pós-protesto

JOSÉ ROBERTO DE TOLEDO - O Estado de S.Paulo
Mesmo antes de o gás lacrimogêneo baixar, algumas consequências da onda de manifestações são visíveis. A saber:
1) Dilma Rousseff está pagando o pato. A presidente não era o alvo das manifestações tempestivas, mas virou seu para-raio. Sua popularidade caiu e continua caindo. No IndiPop do Estadão Dados, que faz uma média de pesquisas de avaliação divulgadas ou não, seu saldo de aprovação (ótimo+bom menos ruim+péssimo) caiu 18 pontos desde março. Só na semana passada, foi de 45 para 40 pontos. Os protestos reforçaram a tendência de queda (blog.estadaodados.com/indipop).
2) A classe média tradicional cansou de Dilma e do PT. A perda de popularidade de Dilma ocorre em todas as regiões e segmentos, mas se concentrou na classe média tradicional. Foi ela, e não os emergentes, que se insurgiu nas ruas. No Sul, no Sudeste e entre quem ganha mais de 10 salários Dilma está num patamar típico de reta final do primeiro turno presidencial. É como se a presidente já tivesse sofrido o desgaste típico de uma campanha eleitoral com ataques e denúncias da oposição.
3) Revolta contra partidos cria espaço para aventuras. Dilma e o PT perdem mais porque têm mais a perder. Mas a revolta é contra os partidos em geral, e a incapacidade do atual sistema político de produzir resultados. Assim, não necessariamente os partidos de oposição, como o PSDB, vão se beneficiar do desgaste dos rivais. Está aberta a porta para salvadores da pátria.
4) Protestos reabriram cenário de 2014. Até poucas semanas atrás, Dilma era franca favorita a se reeleger no primeiro turno. Agora, age para consolidar sua candidatura dentro do próprio partido, contra a turma do "volta Lula". Mais partidos deverão lançar candidatos a presidente, tentando capitalizar parte do descontentamento. A briga é pela outra vaga no segundo turno, porque uma ainda é dos petistas.
5) Manifestações viraram arma para todos os lados. O PT e a esquerda perderam o monopólio das manifestações de rua. Quem saboreou o reconhecimento público e a vitória de suas reivindicações (afinal, revogaram o aumento da passagem, a presidente teve que dar satisfações na TV) aprendeu que tem outras formas de fazer valer seus interesses além do voto. Engajamento tende a aumentar; novas lideranças, a aparecer.
6) Reforma política não é para políticos. A discussão sobre a necessidade de reformar a política deixa de ser assunto exclusivo para políticos profissionais. Novas ideias de representação, diminuindo o poder dos partidos, ganham força. A proposta de financiamento público de campanha está enterrada: dar mais dinheiro de impostos para políticos aparecerem bem na TV é capaz de provocar uma nova onda de protestos.
7) Procura-se um slogan que mobilize todos. A personalização do consumo chegou à política. Motes universais como "combate à fome" já não bastam. As manifestações "pós-20 centavos" mostraram uma enorme pulverização dos desejos. Se alguém conseguir uni-los sob um mote único, larga com grande vantagem sobre os rivais. Mas talvez esse slogan não exista.
8) Quem agrada gregos desagrada troianos. Dilma fez o que era esperado dela ao dar a cara para bater em rede de TV. Tentou transformar a agenda negativa em positiva, recolocando em pauta, por exemplo, a destinação do dinheiro do pré-sal para a educação. Mas quando falou em trazer milhares de médicos do exterior, cutucou um vespeiro. Os nacionais reagiram nas redes sociais e é capaz de irem às ruas. Agora é assim.
9) Espiões sabem menos que as redes sociais. Os órgãos de "inteligência" do governo não previram nada do que aconteceu no Brasil. Caíram em desgraça, por obsoletos. Não é à toa que Obama é fã de bisbilhotar e-mails, SMS e toda forma de comunicação eletrônica. 007 agora é hacker.
10) Não tem décima. "Abaixo os números redondos!"


domingo, 23 de junho de 2013

Brado a capela (sobre futebol e manifestações)

Luiz Zanin Oricchio - O Estado de S. Paulo
A bela vitória de 2 a 0 do Brasil sobre o México na Copa das Confederações pode vir a ser, no futuro, lembrada como um acontecimento em que o futebol foi além de si mesmo.
Torcedores não perderam oportunidade para protestar durante os jogos da seleção - Fernando Faro/AE
Fernando Faro/AE
Torcedores não perderam oportunidade para protestar durante os jogos da seleção
Do lado de fora do Castelão, em Fortaleza, havia uma grande manifestação popular que, como todas as manifestações recentes, atirava contra várias frentes – transporte caro e ruim, corrupção, saúde precária, obras faraônicas para a Copa financiadas com dinheiro público. Dentro, um público, já energizado pela manifestação, portava cartazes esclarecendo que o protesto não era contra a seleção. Era contra... uma série de coisas. Contra "tudo que está aí", como se dizia em outra época.
Nesse clima, um ato emocionante. A torcida continuou a cantar, a capela, o Hino Nacional encurtado pela Fifa por razões de tempo. No clima patriótico que ali se formava, não se toleravam resumos. O Hino tinha de ser entoado na íntegra, em sua quilométrica letra. E assim aconteceu, emocionando até os mais experientes e empedernidos jornalistas lá presentes.
Dentro de campo, talvez contaminada pelo clima ambiente, a seleção jogou seus melhores 20 minutos desde que foi formada por Luiz Felipe Scolari. Jogou "à brasileira", com fome de ataque, acuando o adversário, envolvendo-o em passes sutis e rápidos, dribles e deslocamentos. A síntese dessa postura ofensiva foi o gol de Neymar, uma bola espirrada que caiu em seu pé esquerdo (estava em ótima posição) e, de sem-pulo, foi direta para a rede mexicana. Lindo gol. Assim como foi excepcional a jogada do mesmo Neymar no segundo e último gol do jogo, passando entre dois defensores mexicanos como se fosse uma sombra e entregando, com açúcar e afeto, para Jô completar. Uma jogada perfeita, joia sem jaça do futebol-arte.
Houve naquela tarde de quarta-feira comunhão entre a seleção e a torcida, coisa que, da forma como se deu, não se produzia havia muito tempo.
Um dos temores da CBF era o crescente distanciamento entre time e torcida, que só vinha aumentando nos últimos anos e por culpa principal da própria entidade. Por razões de mercado, a seleção jogava nos quatro cantos do mundo menos em seu país. Os mais cínicos diziam que ela jogava "em casa" quanto atuava no londrino Emirates Stadium, um dos seus palcos favoritos. Uma postura muito elitista, arrogante e distante dos jogadores atuando na Europa contribuiu para a sensação de que a seleção, um dos símbolos nacionais, fosse vista pelos torcedores como algo que se tornara estranho a nós.
Pois bem, talvez como subproduto de manifestações que resgataram a rua para os cidadãos, a seleção, como símbolo, também foi recuperada, da mesma forma que o Hino Nacional e as bandeiras verde-amarelas. O nacionalismo, até pouco ironizado pelos bem-pensantes de terno e gravata, tornou-se de novo permissível, e quase obrigatório. De repente, uma nação, periodicamente atacada pela síndrome descrita por Nelson Rodrigues como "complexo de vira-latas", descobre-se orgulhosa de si mesma.
Algumas pessoas ligadas ao futebol tiveram a percepção exata do momento. Outras não o compreenderam direito. Joseph Blatter, Jerôme Valcke, José Maria Marin, Aldo Rebelo, Ronaldo, parecem preocupados demais com o prejuízo que essa ligação entre futebol e manifestações populares possa trazer à boa organização dos jogos. Bobagem. O futebol tem laços estreitos com a política, para o bem e para o mal. Na Copa de 1938, Mussolini ameaçava os jogadores italianos com a ordem de vincere o morire (vencer ou morrer). Na Copa de 1970, os militares brasileiros tentaram instrumentalizar a vitória no México. Mas a própria excelência da seleção ia além das intenções dos ditadores e fornecia ao povo uma visão lúdica de coesão e criatividade, e era motivo de orgulho. A seleção de Pelé, Tostão, Jairzinho, Clodoaldo, Carlos Alberto Torres, Gérson e Rivellino era do povo e não dos milicos. Isso ficou claro quando militantes de esquerda desobedeceram a ordens dos seus comandos de "torcer contra a seleção para não dar armas ao inimigo". Ninguém resistia à seleção, ela era coisa nossa.
Diferentemente de cartolas, políticos e ex-jogadores acomodados ao establishment, Neymar, astro do jogo e, possivelmente, o grande ídolo para a Copa de 2014, postou texto muito interessante numa rede social: "...Sempre tive fé que não seria necessário chegarmos ao ponto de ir para as ruas para exigir melhores condições de transporte, saúde, educação e segurança, isso tudo é OBRIGAÇÃO do governo... A partir deste jogo, contra o México, entro em campo inspirado por essa mobilização...#Tamojunto"".
Enfim, são coisas díspares e ainda estamos tateando um conceito unificador que nos permita assimilá-las. Protestos contra aumento de tarifas que se transformam em manifestações generalizadas a propósito de tudo que nos incomoda, da falta de seriedade com o dinheiro público à vida intolerável nas metrópoles. Numa óbvia crise da representação do poder político, o povo, ou parte dele, foi à rua e resolveu falar por conta própria. O que se chama de "falta de foco" das manifestações talvez exprima, pelo contrário, sua abrangência. O repúdio às bandeiras partidárias aponta para uma indefinição ideológica que talvez seja natural em nosso mundo fragmentado. Quis o acaso – ou talvez não se deva usar o termo – que houvesse no Brasil, na mesma época das manifestações, um torneio internacional que multiplicasse sua visibilidade.
Nesse movimento de reapropriação do ser nacional (e talvez seja esse o conceito unificador), nada mais natural que a seleção brasileira fosse tomada de volta como símbolo do País. É bom sinal que tenha respondido em campo a esse chamado.