domingo, 23 de junho de 2013

Caminho da transformação - HENRIQUE MEIRELLES


FOLHA DE SP - 23/06

Há uma sensação de mal-estar difuso e generalizado no país. Muitos associam as manifestações a esse sentimen-to. Existem explicações diversas para isso, que passam pela piora da economia, a rejeição de práticas políticas, os gastos com a Copa.

Eu gostaria de focar hoje a questão da qualidade de vida da população.

Vemos a irritação das pessoas com o trânsito, o mau funcionamento dos telefones, a superlotação dos aeroportos, a precariedade dos hospitais e dos serviços. Notícias de mau uso dos recursos públicos são frequentes.

Mas o problema vai além dos serviços públicos. Um amigo que está reformando sua casa me relatou, com grande indignação, que nenhum de seus fornecedores entregou serviços e produtos no prazo nem deu qualquer satisfação.

Não há dúvidas de que vivemos uma crise de produtividade no país, e isso está longe de ser mero conceito econômico teórico. É algo que atinge a todos diariamente.

Quando discutimos a necessidade de aumentar a produtividade com licitações de portos, rodovias, aeroportos e ferrovias, por exemplo, debatemos algo que terá impacto na vida de cada um e nos preços dos produtos. A demanda muito maior por produtos e serviços, fruto do desenvolvimento econômico da última década, deve ser acompanhada por investimentos.

Já o desemprego muito baixo reduz a preocupação com a manutenção do emprego e a exigência de qualificação. "Isso, por um lado, é muito bom, porque dá mais segurança às pessoas em relação ao emprego, e toda teoria econô- mica existe, em última análise, para elevar o bem-estar dos cidadãos.

O problema é como, nesse ambiente, motivar as organizações privadas e os governos a investir na qualidade dos seus produtos e serviços e em treinamento. E também como motivar as pessoas a fazer um bom trabalho, a prestar bom serviço e a seguir a lei.

Mais importante ainda, é preciso consolidar os valores de um trabalho bem execu- tado. Eles devem estar pre- sentes da escola fundamen- tal à universidade e seguir no governo, na empresa e no terceiro setor.

Portanto, o grande desafio do país é voltarmos a recuperar o orgulho de um trabalho bem-feito em todos os níveis. A ética, nesse movimento, será fundamental.

Em minha experiência profissional, no setor público e na área privada, vi como as pessoas podem se orgulhar de um serviço bem-feito, de uma instituição que funcione bem, do bom uso dos recursos.

Precisamos reforçar esses valores e trabalhar para que prevaleçam cada vez mais. É um caminho eficiente para a transformação tão claramente desejada pela população.

Poderes e corrupção - ROBERTO ROMANO


O ESTADÃO - 23/06

As fraturas no Estado brasileiro fortalecem a corrupção que entre nós está sedimentada. Naquele artefato político anacrônico o Poder Executivo é essencial, os demais setores são adjetivos. Ele não se modificou em profundidade desde 1824 e o poder de quem o controla foi hipertrofiado após as ditaduras do século 20. A Presidência, para se manter, deve pedágios aos oligarcas do Congresso e garante a escolha de seus candidatos aos tribunais superiores. Da crise entre o Judiciário e parlamentares pode vir um fortalecimento desastroso do Executivo. A Constituição de 1988 em farrapos não encontra quem a interprete de maneira inconteste. O mito da harmonia entre poderes é desmentido a cada minuto. Para entender o desarrazoado que nos rege, podem ajudar algumas achegas ao pensamento jurídico conservador e liberal.

O Congresso abriga líderes sem compromisso com os programas oferecidos nas urnas. Eles fazem política sem doutrinas, domesticados por verbas ou cargos num farsesco realismo miúdo. Em vez de atenuar os delitos políticos, tal atitude reforça na população a esperança em algum salvador que, da Presidência e de modo autoritário, limparia os costumes. O golpe de 1964, recordemos, foi justificado pelo combate à corrupção. Figuras como Jânio Quadros, Collor de Mello e outras usaram a indignação das massas para chegar à Presidência, lá ficando por breve tempo, sem apoio político.

Na história recente as teses da direita elogiam o Executivo em detrimento dos outros poderes. É o caso de Carl Schmitt, o autor de A ditadura. Emulado por juristas como Francisco Campos, Schmitt cunhou a fórmula segundo a qual "soberano é quem decide sobre o estado de exceção". Ele foi crítico (e, não raro, com acerto) do Parlamento. Para levar a sério a democracia, afirmava, só o povo pode decidir o seu destino e jamais os deputados. Em O Protetor da Constituição, ele apela ao presidente da República, o único vigia seguro da Carta, e menciona o Poder Moderador brasileiro posto acima das pretensões parlamentares. Nega também que o Judiciário possa guardar a Constituição porque age atrasado para sanar desvios institucionais. "A independência é a necessidade primeira para um protetor da Constituição", juízes e deputados não podem cumprir o mister, pois não são independentes o bastante para garantir o Estado. Só o presidente suspende o direito "em virtude de um direito de autoconservação". É o golpe e a ditadura. Schmitt retoma o slogan contra o regime democrático: nele se discute, pouco se decide. Mas a democracia é um processo no qual não existem garantias de vitórias sem amarguras. Cada costume melhorado incentiva o bem público. Hoje, infelizmente, boa parte de nossos parlamentares age como lobistas. Quando se ouve falar em "bancadas" no Congresso, o que temos são grupos que atuam em prol de interesses particularíssimos.

Carl Schmitt não cita por acaso a Carta brasileira de 1824. O Poder Moderador, nela, foi um golpe contra a soberania popular e o Parlamento. Os idealizadores de nosso Estado seguiram a contrarrevolução europeia. O movimento de 1789, no seu entendimento, resultou em anarquia. Para barrar tal ameaça, fomos submetidos ao monarca "pela graça de Deus". Segundo o conservador Guizot, "o mais simples bom senso reconhece a necessidade da limitação de todos os poderes, quaisquer que sejam seus nomes e formas. Abri o livro em que o sr. Benjamin Constant tão engenhosamente representou a realeza como poder neutro, moderador, elevado acima dos acidentes, das lutas sociais, e que só intervém nas grandes crises. É preciso que haja nesta ideia algo muito próprio a mover os espíritos, pois ela passou com uma rapidez singular dos livros para os fatos. Um soberano dela fez, na Constituição do Brasil, a base de seu trono; a realeza é representada como Poder Moderador elevado acima dos poderes ativos, com espectador e juiz".

Segundo Constant, o Poder Moderador é neutro e apanágio da realeza, os ministros respondem pelo governo e os legisladores nada recebem. O julgamento pelo júri é a norma e impera a livre imprensa. No elogio do Poder Moderador feito por Guizot há um desvio do conceito. Constant define aquele poder como neutro para coordenar os demais. Pôr os quatro poderes numa hierarquia vertical foi o golpe em 1824. A tendência centralizadora definiu o Estado com privilégio do chefe, amesquinhando o Parlamento e o Judiciário.

As prerrogativas do Poder Moderador, inconfessadas, persistem hoje na Presidência da República, o que leva às fraturas no Estado, pois o Executivo negocia apoio parlamentar (com várias técnicas), nomeia os juízes do Supremo, controla o Senado, mas é praticamente destituído de responsabilidade. Vivemos como se ainda vigorasse o Título 5, Capítulo primeiro, artigo 99 da Constituição de 1824. Sagrada, a pessoa presidencial não está sujeita a sérios questionamentos. Ela domestica, pela propaganda e controle dos recursos públicos, a soberania popular, distorce a representação do Parlamento. As duas ditaduras que marcaram o século anterior levaram ao paroxismo a distorção da máquina estatal. A Presidência brasileira é absolutista e propensa à ditadura. A lei da reeleição, as medidas provisórias que se eternizam, a prerrogativa de foro para agentes dos poderes definem alguns dos principais óbices para a democracia. E temos a sucessão de crise após crise, porque não existe limite efetivo para o Executivo. Se este último ignora barreiras, o mesmo tentam fazer os demais. Reaparece, surgida da indecisão jurídica nacional, outra fórmula cunhada por Carl Schmitt: política é o campo onde os inimigos são definidos. Inimigo harmônico é quimera, algo tão fantasioso quanto as leis no Estado brasileiro.

A mais cara de todas as copas

O Estado de S.Paulo
A Copa do Mundo de 2014 no Brasil será a mais cara de todas. O secretário executivo do Ministério dos Esportes, Luís Fernandes, anunciou que em julho seu custo total chegará a R$ 28 bilhões, um aumento de 10% em relação ao total calculado em abril, que era de R$ 25,3 bilhões. E supera em R$ 6 bilhões (mais 27%) o que em 2011 se previa que seria gasto.
Por enquanto, já se sabe que o contribuinte brasileiro arcará com o equivalente ao que gastaram japoneses e coreanos em 2002 (R$ 10,1 bilhões) mais o que pagaram os alemães em 2006 (R$ 10,7 bilhões) e africanos do sul em 2010 (R$ 7,3 bilhões).
O "privilégio" cantado em prosa e verso pelo ex-presidente Luiz Inácio da Silva, que se sentou sobre os louros da escolha em 2007, e entoado por sua sucessora, Dilma Rousseff, em cuja gestão se realizará o torneio promovido pela Fifa, custará quatro vezes os gastos dos anfitriões do último certame e três vezes os gastos dos dois anteriores.
O governo federal não justifica - nem teria como - este disparate. Mas, por incrível que pareça, os responsáveis pela gastança encontram um motivo para comemorar: a conta ainda não chegou ao teto anunciado em 2010, que era de R$ 33 bilhões. É provável, contudo, que esse teto seja alcançado, superando o recorde já batido, pois, se os custos cresceram 10% em dois meses, não surpreenderá ninguém que subam mais 18% em 12 meses.
Esta conta salgada é execrada porque dará um desfalque enorme nos cofres da União, que poderiam estar sendo abertos para a construção de escolas, hospitais, estradas, creches e outros equipamentos dos quais o País é carente. Como, aliás, têm lembrado os manifestantes que contestam a decisão oficial de bancar a qualquer custo a realização da Copa das Confederações, do Mundial de 2014 e da Olimpíada no Rio de Janeiro em 2016. E, além dos valores, saltam aos olhos evidências de que tal custo não trará benefícios de igual monta.
É natural que, no afã de justificar o custo proibitivo, o governo exagere nas promessas de uma melhoria das condições de vida de quem banca a extravagância. Segundo Fernandes, responsável pela parte que cabe ao governo na organização do torneio, "a Copa alavanca investimentos em saúde, educação, meio ambiente e outros setores". E mais: "Ou aproveitamos esse (sic) momento para o desenvolvimento do País ou perdemos essa (sic) oportunidade histórica".
A Nação aguarda, com muita ansiedade, que o governo, do qual participa o secretário executivo do Ministério dos Esportes, venha a público esclarecer quantos hospitais, escolas ou presídios têm sido construídos e que equipamentos têm sido adquiridos para melhorar nossos péssimos serviços públicos com recursos aportados por torneios esportivos que nos custam os olhos da cara.
Não é preciso ir longe para contestar esta falácia da "Copa cidadã": o Comitê Olímpico Brasileiro (COB) previu um "legado inestimável" que ficaria da realização dos Jogos Pan-americanos de 2007 na mesma cidade onde será disputada a Olimpíada de 2016. O tal "legado" virou entulho: os equipamentos construídos para aquele fim estão sendo demolidos e reconstruídos e, enquanto não ficam prontos, os atletas simplesmente não têm onde se preparar para disputar os Jogos Olímpicos daqui a três anos.
A manutenção do estádio Green Point, na Cidade do Cabo, que custou R$ 600 milhões (menos da metade dos gastos na reforma do Maracanã, no Rio, e do Mané Garrincha, em Brasília) para ser usado na Copa da África do Sul, demanda, por ano, R$ 10,5 milhões em manutenção, o que levou a prefeitura local a cogitar de sua demolição. Por que os estádios de Manaus, Cuiabá e Natal terão destino diferente depois da Copa?
A matemática revela que o maior beneficiário da Copa de 2014 será mesmo a Fifa, e não o cidadão brasileiro, que paga a conta bilionária. Prevê-se que o lucro da entidade será de R$ 4 bilhões, o dobro do que arrecadou na Alemanha e o triplo do que lucrou na África do Sul. O resto é lorota para enganar ingênuos e fazer boi dormir.