domingo, 23 de junho de 2013

Ladislau Dowbor: Ser jovem não é fácil

Não se trata de 20 centavos, trata-se de um saco cheio generalizado com o caos urbano gerado, que transtorna a qualidade de vida das pessoas, e dos jovens em particular.


Por Laidslau Dowbor, professor da PUC-SP, economista e consultor de várias agências das Nações Unidas. A presente nota se apoia no estudo mais amplo A Economia da Família, http://dowbor.org/2013/05/economia-da-familia.html/
Fonte: Carta Maior

O transporte numa cidade como São Paulo é sem dúvida caótico. Anos de poder de empreiteiras e montadoras articuladas com políticos fisiológicos a seu serviço nos deram muitos viadutos, túneis e ruas paralisadas por 7 milhões de veículos. A apropriação da política urbana pelos sucessivos malufismos gerou uma estagnação do transporte coletivo. O Paulistano perde uma média de duas horas e quarenta minutos no trânsito por dia. E na ausência de transporte de massa decente, quem mora na Capela do Socorro acorda às 5 da manhã para chegar na hora ao emprego, volta para casa às 9 e adormece no sofá vendo bobagens. Vida de família?
Não tenho aqui a pretensão de explicar a juventude, nem de dar conselhos sobre os movimentos. Mas o contexto dá para delinear. Há tempos ajudei a organizar um livro para as Nações Unidas, Cities for Children, ou seja, cidades para crianças. Recusaram o título que eu propus inicialmente, que era “Administrando as Cidades como se as Crianças fossem Importantes” (nota 2). A realidade é que crianças e jovens representam um terço da população, mas as políticas urbanas foram organizadas para a faixa etária superior, e para as elites. Não se trata de 20 centavos, trata-se de um saco cheio generalizado com o caos urbano gerado, que transtorna a qualidade de vida das pessoas, e dos jovens em particular.
Não é tão difícil assim colocar-se no lugar do jovem. Sai da escola sem nunca ter visitado uma empresa, uma repartição pública, uma organização da sociedade civil. A separação radical entre as fases de estudo e do trabalho, produz uma geração de jovens desorientados, à procura da sua utilidade na vida. Se cruzarmos esta situação com as dinâmicas do trabalho, a ausência de perspectivas torna-se muito forte, a não ser em alguns grupos privilegiados. Na realidade, no processo produtivo onde os conhecimentos passam a desempenhar um papel preponderante, em vez de estudo e trabalho serem etapas distintas da vida, devem crescentemente constituir um processo articulado onde aquisição de conhecimentos e a sua aplicação produtiva devem enriquecer-se permanentemente. Isto se organiza.
Sentir-se inútil numa fase da vida em que o jovem chega disposto a fazer e acontecer, gera sem dúvida um sentimento de profunda frustração. Poder fazer uma coisa útil parece constituir um favor, alguém “deu” um emprego. Uma pesquisa nos Estados Unidos mostrou que no conjunto, o who you know (quem você conhece) tornou-se um fator mais importante de avanço profissional do que o what you know (o quê você conhece, as suas competências). O mundo para o jovem passa a ser visto como um universo opaco e fechado, gerando desânimo e passividade, e frequentemente revolta e violência.
Esta tendência tem de ser colocada numa perspectiva mais ampla. As nossas crianças e os nossos jovens são criados num referencial de família muito frágil: com os dois pais no trabalho, o trabalho distante da casa, casais frequentemente separados, o silêncio no binômio sofá-televisão: constrói-se assim muito pouco balizamento entre o bem e o mal, muito pouco sentido de vida. Nos Estados Unidos apenas 25% dos domicílios têm pai, mãe e filhos. O joy-stick basta? A grande solução apresentada seria o tempo integral da criança na escola, em nome da educação, mas liberando os pais no horário completo.
Um outro universo que contribuía muito para a construção de valores era a rua, a vizinhança. Ali, não era ainda o mundo¸ mas também já não era a família, ali a criança e o jovem testavam a sua presença social, delimitavam gradualmente os valores da amizade, o peso das rivalidades, construíam os seus espaços de sociabilidade. Hoje, nenhuma mãe em sã consciência diz à criança que vá brincar na rua. Fica sossegada quando as crianças estão sentadas no sofá, comendo salgadinho, e vendo “vale tudo por dinheiro”. Porque na rua é o perigo, são as drogas, as gangues, os acidentes de carro, o medo. Não inserimos mais as crianças no mundo, buscamos apenas protegê-las. E quando chega o momento inevitável de sua inserção, desabam sobre elas desafios difíceis de suportar.
Os pais perdidos entram em intermináveis discussões sobre se devem ser mais permissivos, ou colocar mais limites, sorrir ou gritar, e terminam, quando têm dinheiro, lamentando-se com o analista. O analista pode sem dúvida ajudar quando os problemas são individuais, mas não resolverão grande coisa quando se trata de um processo socialmente desestruturante.
A escola pequena, de bairro, frequentada por pessoas que convivem de uma maneira na escola, e de outra nas ruas da vizinhança, mas pertencendo ao mesmo tecido de relações sociais, era outro espaço de construção de referências. Boa parte disto subsiste no interior. Nas grandes cidades, e frente a uma construção escolar onde se buscam absurdas economias de escala (quanto maior, mais barato), gera-se um universo de gente que só se encontra na escola. Os universos sociais do local de residência e do local de estudo só se cruzam eventualmente. Na própria classe média, é patético ver mães que passam horas no trânsito para levar uma criança a brincar com outra no outro lado da cidade, porque já não aguenta a solidão em casa. E no outro lado da cidade, o coleguinha terá os mesmos videogames, o mesmo “vale tudo por dinheiro” na televisão. Se juntarmos os efeitos de desestruturação do referencial familiar, da ausência do referencial de vizinhança, e da perda da presença social local da escola, e acrescentarmos o cinismo dos valores martelados horas a fio na televisão, que valores queremos que eles tenham?
Os pais ficam indignados: eles bebem, eles fumam, eles se drogam, eles transformam o sexo numa aeróbica banalizada, eles não vêm sentido nas coisas…O que é que nos fizemos para dar sentida às suas vidas? Todos nós estamos ocupados em ganhar a vida, em subir nos degraus absurdos do sucesso¸ como é que as crianças vão entender o nosso sacrifício como útil?
A compreensão de que se matar de trabalho para construir uma vida sem sentido, ainda que com a garagem que ostenta um belo carro, e entulhada de esteiras de ginástica e outras relíquias de entusiasmos consumistas passageiros, sem tempo para fazer as diversas coisas que poderiam ser agradáveis, ou belas, – filtra gradualmente para dentro das nossas consciências, ainda que continuemos todos a correr sem rumo. Será que os nossos filhos realmente não vêm o absurdo das nossas próprias vidas? E que rumo isto aponta para elas? A verdade é que a vida reduzida a uma corrida individual pelo sucesso econômico, com a ilusão de que tendo sucesso, e por tanto dinheiro, compraremos o resto, é uma absurda ilusão que nos levou à civilização de guetos de riqueza e miséria que hoje vivemos.
É significativo que em muitos lugares jovens, e até crianças, às vezes com apoio dos professores – outra classe á procura do sentido do que ensina – estão arregaçando as mangas e começando a tomar iniciativas organizadas. Vimos na Itália um movimento de crianças pela recuperação das praças. Um filme-reportagem feito pelas próprias crianças mostra a passeata, a negociação com a prefeitura, e o resgate progressivo de praças transformadas em estacionamento, para que voltem a ter água, árvores, espaço para brinquedos e jogos, uma dimensão de estética, de lazer, de convívio. Em muitas cidades já há câmaras-mirins, e não se podem aprovar projetos de espaços públicos sem o aporte do interesse organizado das crianças. Em muitos lugares, foram organizados trajetos seguros, acompanhando as principais rotas das crianças entre as escolas e lugares de lazer, parar melhorar a sua mobilidade e sentimento de liberdade na sua cidade: a tecnologia é simples, são aqueles passinhos pintados na calçada, semáforos, algum reforço de policiamento. O que estas experiências têm em comum, é o sentimento, por parte das crianças, de estarem recuperando o seu direito à cidade, à cidadania.
Em Valparaíso, vimos uma experiência de crianças de rua que, com o apoio de uma ONG, passaram a resgatar os espaços vazios de um bairro, a organizar as suas próprias bandas de música, eventos culturais, a ponto que hoje as seis escolas formais do bairro se associaram ao projeto, e desenvolvem atividades de resgate dos espaços públicos, fazem aulas sobre meio-ambiente melhorando o próprio entorno, estudam ciências sociais melhorando o ambiente social do bairro. Aqui também, a cidade é deles, e fazer uma coisa útil e prazerosa não é o resultado de um emprego que lhes “dão”, mas de uma iniciativa que lhes pertence.
O que isto aponta, na realidade, é a necessidade de evoluirmos de uma visão em que a organização social se resume a um Estado que faz coisas para nós, e de empresas que produzem coisas para nós, para uma visão em que a sociedade organizada volta a ser dona dos processos sociais, e articula as atividades do Estado e das empresas em função da qualidade de vida que procuramos. A expansão das organizações da sociedade civil, a força do terceiro setor, as políticas de desenvolvimento local e em particular do bairro, o resgate das funções sociais do Estado, o surgimento da responsabilidade social e ambiental das empresas, a crítica às grandes corporações da especulação financeira, do monopólio de produtos farmacêuticos, de comercialização de armas, o próprio surgimento muito mais amplo da noção de que um outro mundo é possível, pertencem todos a um deslocamento profundo de valores que estamos começando a sentir na sociedade em geral.
Como indivíduos, podemos melhorar a nossa casa, batalhar o estudo para os nossos filhos, comprar um carro melhor. Mas as mudanças sociais dependem de organização social. O sentimento de desorientação é sentido como sofrimento individual, mas as raízes e as soluções são mais amplas.

sábado, 22 de junho de 2013

Nenhum partido vai ganhar com protestos, afirma FHC, na FSP

22/06/2013 - 03h00


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CASSIANO ELEK MACHADO
DE SÃO PAULO
A trilha sonora na sala do apartamento do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, no final da tarde de quinta-feira, era composta por sirenes de carros e pelo barulho dos helicópteros que passavam a caminho dos protestos na avenida Paulista.
"As passeatas vão ser grandes?", perguntou à Folha. Aos 82 anos, completados na semana passada, o presidente está lançando o livro "Pensadores Que Inventaram o Brasil" (Companhia das Letras), sobre intelectuais que elaboraram grandes teorias sobre o país. Mas ele diz que nenhum teórico do passado poderia entender o que acontece hoje nas ruas.
Mais do que isso, ele acredita que os políticos não têm condições de compreender a "insatisfação genérica" da população e nem de capitalizá-la. "Tenho dúvidas se os partidos vão ter capacidade de captar tudo isso e transformar ao menos sua mensagem", diz Cardoso. Leia a seguir trechos da entrevista.
*
O sr. acaba de lançar um livro sobre intelectuais que fizeram grandes interpretações do Brasil. Como estes pensadores podem ajudar a entender o que está acontecendo no país?
Fernando Henrique Cardoso - Eles não entenderiam e nem poderiam entender. Vivíamos num mundo das classes organizadas, ou desorganizadas querendo se organizar. Estas são manifestações que não são expressões de camadas organizadas. A primeira manifestação disso que eu vi foi em Paris em 1968. E isso ainda sem a internet.
Qual a maior mudança?
Muda muito. Aquele era um movimento a favor da autonomia e da liberdade. Na França, em 1968, eles não tinham linguagem para expressar o sentimento que tinham. Ou era foice e martelo, ou bandeira negra, e cantavam a "Internacional Socialista", que diz "De pé, ó famintos da terra". Não tinha faminto nenhum ali. Mas a França tinha sindicatos, partidos, organização. Agora, com a internet, e com a fragmentação maior de classes, é diferente. O comando é quase inexistente, vai se formar na rua. As demandas são muitas, o pretexto pode ser qualquer um. Esta situação me lembra um ensaio meu dos anos 1970 chamado "A teoria do curto-circuito".
Vivemos um curto-circuito?
Sim. O preço de ônibus foi um estopim. Ali está desencapado um fio. Mas aí pega fogo em outros. Não foi a classe dominada. Foram os jovens. São eles que estão gritando aí. Não foram os que não podem pagar. Estão gritando contra a injustiça em geral, vagamente. Juntam tudo: PEC 37, a corrupção, o custo dos estádios, dos transporte.
Qual o papel dos últimos governos nisso?
Nesses últimos anos, com a ascensão do Lula, o que ele propôs como ideologia? Vamos consumir o que é bom. Não é por que eu uso um macacão que não posso ter um automóvel. Criou um estilo de crescimento que é o oposto da China. Lá fazem poupança e investem. Aqui, consome-se sem investir. A rua está dizendo: não basta o consumo, quero mais. Não há razão objetiva. Não tem desemprego, ditadura ou opressão. Não é mundo árabe, Espanha ou Itália.
A Espanha e a Itália estão vivendo uma grande crise de representação política...
Aqui também. As pessoas não identificam nas instituições os canais que as levem ao que eles querem. Nenhum destes movimentos recentes gerou novas institucionalidades. O apelo do movimento aqui não é a ninguém. No mundo árabe querem derrubar o governo. Aqui não.
Vivemos algo próximo do que passou nas periferias de Paris em 2005?
Lá teve segregação racial e religiosa. Aqui não é isso. Quem está na rua não é a periferia. Aqui está todo mundo na rua. Não são sindicatos, não são grupos de trabalhadores organizados. Há uma insatisfação genérica.
Por que a insatisfação?
Porque a vida é pesada nas grandes cidades. Há sofrimento com o transporte, a poluição, a segurança. São problemas que afetam a todas as classes. O pobre leva duas horas no ônibus sofrendo. O rico fica irritado porque fica uma hora no carro. O rico está cercado de guardas. O pobre não tem guarda nenhum, mas os dois estão com medo.
Os governos recentes agravaram muito isso ao estimularem o consumo de carro. E deixaram a bomba na mão dos prefeitos. Mais carro e crédito. Talvez tenha aí também o começo da inflação e do esgotamento do crédito, agindo por baixo disso tudo. Mas o foco é um mal estar inespecífico. Não acho que qualquer partido possa, deva ou consiga capitalizar o movimento.
O sr. acredita que este movimento vai mudar a maneira de fazer política?
Alguma mudança ocasiona, mas não sei se os partidos vão ter capilaridade para sentir tudo isso e transformar ao menos sua mensagem e a ligação com fenômenos como as mídias sociais.
O sr. mencionou em entrevista recente que tinha dúvidas se as interações em mídias sociais poderiam ser concretizadas em ações políticas. Como avalia isso agora?
Não estamos vendo ações propriamente políticas. O grande teórico disso é o sociólogo espanhol Manuel Castells. Diz que a conexão entre redes e vida institucional não se processou, e ele tem dúvidas se vai se processar. Nenhum partido no Brasil tem ligação com isso. Os manifestantes não se sentem representados pelos partidos e nem sei se querem.
Como o sr. viu a imagem do Fernando Haddad junto com Geraldo Alckmin?
Acho compreensível. São símbolos do que está aí. É como a vaia da Dilma.
Lula também foi vaiado na abertura dos Jogos Pan-Americanos...
Mas foi diferente. No caso da Dilma, o que surpreende não é a vaia, mas a duração dela. Ao citar nome de autoridade em estádio é normal que haja vaia. Mas vaiaram muito tempo. Não sei se é contra a Dilma, em si, mas é contra o que está aí.
Há um desencantamento?
Sim. As pessoas melhoraram de vida, mas o governo é tão propagandista de uma maravilha virtual que há desencantamento. Este governo é tão favorável à propaganda que todos os nomes de programas de governo são "marketagem": "Minha Casa, Minha Vida", "Minha Casa Melhor". Criaram uma camada virtual de bem-estar que agora o pessoal questiona. Não sei se há desencantamento, mas há um descolamento. O dia a dia é mais duro do que o que o governo diz. Não há desemprego, mas não houve melhoria na qualidade do emprego, então a renda, mesmo com as melhorias, é pequena, insuficiente para fazer frente ao consumismo propagado. Por isso as pessoas entram no crédito. O governo está dando mais crédito, mais crédito, e endividando os bancos públicos. O que foi correto na crise virou política permanente.
E a crise de crédito vai estourar antes ou depois da eleição de 2014?
Quem sabe. Quem sabe...
Alguns cientistas políticos defendem que quando a oposição é fraca a saída é ir para as ruas. O sr. concorda que há um vazio na oposição?
Não há vazio. Basta assistir a TV Senado. A oposição é violenta o tempo todo. Só que morre ali. Não passa para a sociedade, não tem eco. Houve uma "parlamentarização" da vida política. Além disso, o governo fechou o debate. A Lei da Reforma do Petróleo não foi discutida por ninguém. A Dilma mudou a Lei da Mineração e ninguém sabe disso. E como este Congresso ficou fechado em si mesmo não temos mais regime de coalização. Agora é República Velha: governo e oposição. Não foi a oposição que diminuiu, foi tudo junto. A rua, nisso, pode ser que tenha ganho.
Mas existe uma possibilidade dos próprios partidos se reinventarem ou surgirão novos atores?
Espero que se reinventem. Mas os partidos precisam reestabelecer vínculos com a população. Para começar, têm de falar o que a população fala. Falei sobre drogas. Nenhum partido fala. Este é um tema real. O que são os temas reais? Um é o transporte. Outro é o direito do consumidor. Eu preferiria, talvez porque sou antigo, que existissem partidos capazes de captar e dialogar com estes problemas. Onde é que está o debate no Brasil? Na mídia, e só. E o governo ataca quem? A mídia.
E a mídia social cumpre um papel importante para o debate?
Para o debate, eu não sei. Para a mobilização, não tenho dúvida.
O sr. acompanha o Twitter, o Facebook e outras mídias sociais?
Twitter não. Facebook, um pouco. E alguns blogs. Não tenho tempo para acompanhar.
O sr. brinca em seu livro que desistiu de escrever o livro "Grande Indústria & Favela". Ao que pretende se dedicar agora?
Desde que saí da presidência publiquei seis livros em dez anos. Um deles, escrevi em inglês, o "The Accidental President of Brazil", que agora vou traduzir e lançar aqui no fim do ano. Mas o que ainda tenho de fazer? Ter, não tenho que fazer mais nada. Tenho 82 anos. Sendo generoso comigo mesmo terei mais cinco anos úteis. Depois, cansa. Anotei, quando estava na Presidência, quase todos os dias as coisas que achava. Tenho de deixar isso preparado para uma edição post-mortem. São umas 15 mil páginas. O único projeto que tenho no momento é este, que já retomei. Não penso em fazer outros livros.
Em seu livro recente, "Pensadores Que Inventaram o Brasil", o sr. trata de grandes retratos do Brasil. Por que não se faz mais interpretações gerais do país?
Como disse um rapaz que não conheço pessoalmente, o Marcos Nobre, este tipo de interpretação não cabe mais. Por trás destes livros, havia um projeto de nação. Estavam todos tentando ver como se fazia disso aqui uma nação. Hoje ninguém duvida: isto aqui é uma nação. Já não tem tanto uma obsessão sobre quem somos, por que somos. Nós somos. Estamos nas ruas, mas somos.
Já se sabe que no Brasil o Estado vai ser sempre importante, que o mercado vai ser sempre importante e que a sociedade civil é crescentemente importante. Já não tem dúvidas sobre quem será o propulsor.
Mas em um dos textos incluídos no livro o sr. fala que faz falta este tipo de livro panorâmico sobre o país...
Falei isso numa de 1993, há 20 anos. Até ali, ainda havia a ideia do projeto da nação. Era uma visão de um alguém iluminado que propõe a nação. Isso é antigo. O país já está aí e ninguém vai propor. Ele se faz e vai se fazendo. Não acho que seja cabível mais este tipo de grandes interpretações. A nação se diversificou muito e a universidade hoje estuda muito mais do que no passado muitas coisas.
O sr. está às vésperas de voltar a disputar uma eleição, depois de muito tempo. Vai concorrer na semana que vem a uma cadeira da Academia Brasileira de Letras. Por que o sr. decidiu concorrer?
Há muito tempo eu resistia aos convites. Primeiro porque não sou literato, até que me convenceram que a Academia não era só para escritores. Ainda assim não queria, para não politizar. Agora estou longe do poder há tanto tempo, e todo mundo sabe que não quero mais o poder, que resolvi aceitar concorrer.
O sr. vai participar hoje nas manifestações?
Não (risos). Talvez eu vá até a rua. Mas não dá mais para ir a manifestações. Seria mal interpretado imediatamente.

Formação do Brasil, por FHC no Estadão


Fernando Henrique Cardoso mostra a importância que ainda tem a obra dos grandes intelectuais nacionais

22 de junho de 2013 | 2h 16

O Estado de S.Paulo
Fernando Henrique Cardoso conversou com o Estado na tarde de quinta-feira, em seu apartamento, em São Paulo. Ele acabara de chegar de um evento promovido pelo governo da Dinamarca. O cansaço logo se dissipou quando começou a falar sobre seus mestres.
'Processo saturou', diz Fernando Henrique Cardoso sobre o lulismo - Evelson de Freitas/Estadão
Evelson de Freitas/Estadão
'Processo saturou', diz Fernando Henrique Cardoso sobre o lulismo
Qual característica mais forte de cada um desses pensadores que marcou sua carreira?
Fernando Henrique Cardoso - 
Começo por Joaquim Nabuco. Era um sujeito capaz de combinar um estilo aristocrático com forte preocupação social. Ele era um sociólogo de fato, o que era raro na época. Apesar de ter um certo pendor pela monarquia e esteticamente ser conservador, Nabuco era um democrata. Por isso que o comparo a Tocqueville, que era um reacionário mas compreendia as mudanças de tempo. Também gosto de Nabuco por considerar a democracia inglesa superior à americana por causa da noção da igualdade perante à lei.
O senhor vê alguma semelhança com a sua trajetória?
Fernando Henrique Cardoso - 
Em alguns pontos, sim, pois ele, como eu, conciliou uma vida intelectual com outra política, e também porque enfrentou todo o drama envolvido (risos).
É curiosa a diferença apontada pelo senhor entre a visão que Nabuco tinha do Império comparada com a de Sergio Buarque de Holanda.
Fernando Henrique Cardoso - 
A análise do Sergio é brilhante e tem menos repercussão que merece - Raízes do Brasil é o livro que o fez entrar para história. É um belo ensaio, mas o outro também é genial. E, na contraposição entre o democrata Sérgio Buarque e o aristocrata Joaquim Nabuco, esse se deixava enrolar pelos meandros do Império, enquanto Sérgio via nesse Império a dominação escravocrata. Ele desmistifica a tradição de que aquele governo era civilizador. Acho que, entre todos os pensadores, é o mais explicitamente democrático. Afinal, Sérgio escreve Raízes do Brasil nos anos 1930, marcados pela ascensão do comunismo e do integralismo. Assim, a aposta que ele fez era rara, pois, na época, comunista é que era democrata e ele era basicamente liberal, acreditava que a ascensão das classes populares resultaria na democracia. E seu livro foi lido ao contrário, como se portasse uma visão tradicional, uma outra maneira de ser Gilberto Freyre. Algumas de suas frases ainda são atualíssimas, como "só existe democracia com a lei da universal". O Sérgio seria um analista ideal para o que está acontecendo hoje.
Como assim?
Fernando Henrique Cardoso - 
Ele veria que a ascensão do sindicalismo não resultou necessariamente em democracia - ao contrário, vem reforçando a matriz tradicional, corporativista, patrimonialista, da discricionariedade. O instinto democrático tornou-se clientelista. Foi absorvido pela cultura tradicional brasileira.
Por falar em Gilberto Freyre, um dos destaque do livro é a forma como o senhor reavalia sua obra, dando-lhe mais importância.
Fernando Henrique Cardoso - 
Tive pouca convivência com ele, mas, quando li sua obra pela primeira vez, desenvolvi um horror pela sua posição política. Eu tinha muita resistência por dois motivos - a primeira porque, em São Paulo, tentávamos fazer uma sociologia empírica, científica, e a visão que se tinha dele (precipitada, na verdade) era de que se tratava mais um ensaísta (e conservador) que um analista. Quando reli sua obra, descobri um grande intelectual, a despeito de ser conservador.
O senhor deixou nomes de fora?
Fernando Henrique Cardoso - 
Sim. José Bonifácio, por exemplo, primeiro pensou o Brasil. Cito muito sua importância, mas não me aprofundo. Também não falo de Rui Barbosa, ícone do liberalismo, mas que não me influenciou. Nunca li sua obra, embora merecesse. Talvez seja um preconceito, pois venho de uma família de militares positivistas. Enquanto meu bisavô era monarquista, meu avô era a favor da abolição e meu pai participou das revoluções de 1922 e 24. Todos tinham horror do Ruy Barbosa, que era mais liberal enquanto eles apoiavam o Estado. E confesso que herdei um pouco dessa aversão.
E como foi a relação com Caio Prado Jr.?
Fernando Henrique Cardoso - 
Era um escritor seco, mas moderno, que notou detalhes importantes na relação do Brasil colonial com a metrópole portuguesa, no latifúndio e na escravidão. Um livro que considero pouco valorizado é A Revolução Brasileira, no qual é revisionista com relação às teses do Partido Comunista. Ao mesmo tempo em que era militante, tinha uma importante formação intelectual. Não se saiu bem na filosofia, na dialética, mas era bom nas análises concretas, além de revelar uma noção sólida de geografia - ele não viajava como turista, mas em busca de aprendizado.
É visível sua admiração por Celso Furtado.
Fernando Henrique Cardoso - 
Porque ele inaugura uma nova tradição. Celso via o Brasil como um país subdesenvolvido em relação aos demais, apontando o crescimento econômico como principal solução para esse problema. Ele introduziu o viés da análise econômica na compreensão do retrato do Brasil. Se Caio tinha uma visão marxista, mas um tanto mecânica, Celso fez análise do processo de formação do mercado interno. Ele explica a dinâmica do processo ao mesmo tempo em que oferecia um projeto nacional com fundamento econômico. A minha geração cresceu lendo Celso Furtado. Nossa paixão, na época, anos 1950 e 60, era o desenvolvimentismo. Só depois, com regime autoritário, veio a paixão pela democracia, movimentos sociais, já nos anos 70.
É nesse momento que acontece uma mudança?
Fernando Henrique Cardoso - 
Sim, pois a ideia da formação do Brasil vai até minha geração. A partir daí, começa a ser diferente, pois começa a integração, a globalização, palavra, aliás, que ainda nem existia. Começávamos a entender que havia algo novo, a periferia do mundo estava se industrializando e buscava caminhos diferentes. Era preciso entender o interesse nacional de cada país em um contexto global. Caio dizia que não se entendia a colônia sem entender o vínculo com o império. Já Celso afirmava que era preciso romper o vínculo e desenvolver o mercado interno. Hoje, sabemos que o certo não é romper, mas refazer.
Esses pensadores funcionam como um farol para o senhor?
Fernando Henrique Cardoso - 
Sim, formataram meu pensamento atual. Mas hoje, com as ruas agitadas, não se sabe para onde ir. Antes, esses pensadores diziam o que fazer. O farol está agora na popa e só vamos para frente porque o mar está empurrando. Não quero personalizar, mas, desde o governo Lula, a visão do futuro está errada. Não se percebeu que a crise terminaria, como deve acontecer. Acreditava-se que os EUA entrariam em decadência e não vão. O Brasil fez o caminho contrário da China, que se concentrou na exportação para acumular capital e investir, enquanto aqui se montou a base a partir do consumo, uma solução trôpega. O consumo cresceu, mas quem consome não está feliz e protesta na rua. Quer outras coisas, sem saber exatamente o quê. Basta ver os cartazes de protesto: tarifa, PEC, saúde, corrupção. Por trás disso, surge uma mensagem poderosa: quero viver melhor e isso não significa apenas consumir. O processo lulista deu o contrário. Saturou rapidamente.