segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Como Rio Branco inventou o Brasil

MARCOS GUTERMAN - O Estado de S.Paulo
Em tempos de ufanismo revisitado, que a propaganda estatal reduz ao "orgulho de ser brasileiro" em relação ao resto do mundo, o livro recém-lançado O Dia em Que Adiaram o Carnaval (Unesp), do diplomata e historiador Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos, revela-se um ensaio precioso, ao reconstituir a invenção da nacionalidade brasileira.
O título da obra diz respeito à curiosa ordem do governo republicano de adiar o carnaval em respeito à morte de José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco, em 10 de fevereiro de 1912. Rio Branco tinha status de astro, porque lhe era atribuído o feito de ter desenhado as fronteiras do País - isto é, de ter dado um "corpo" à pátria que estava sendo criada.
Villafañe faz uma reflexão sobre o mito do Barão como construtor da nacionalidade e sua identificação com uma "certa ideia de Brasil" quase um século depois da independência. Trata-se de uma "paralisadora herança", como comentou o embaixador Rubens Ricupero a propósito da persistente imagem de um país que atua no exterior tendo como lastro o genoma da "tolerância natural do brasileiro", descrito por Stefan Zweig em Brasil, País do Futuro (1941).
O modo como o Brasil se enxerga no mundo, traduzido em sua política externa, é portanto o eixo em torno do qual Villafañe trabalha. A construção política dessa entidade, mostra o autor, começa como afirmação antilusitana e, ao mesmo tempo, como contraponto monárquico "ordeiro" ao "caos" republicano dos vizinhos latino-americanos. A "nação brasileira" que surge daí é formada por brancos europeus ricos. A escravidão criará o desconforto de uma imensa massa de pessoas que estão em toda parte, mas não integram a nação.
O sentido nacional só se completará no período republicano, mas a desigualdade social dificultou drasticamente a legitimidade do Estado. A "invenção" do Brasil, naquela oportunidade, dividia-se entre o passado português e a afirmação do mundo americano, sem lugar, contudo, para os brasileiros comuns.
Mesmo a república, porém, não ofereceu à massa, de imediato, um lugar na construção da identidade nacional brasileira. Foi preciso que houvesse a difusão das culturas ditas "subalternas", contaminando a atmosfera da elite com o carnaval e o futebol como elos da nacionalidade. Foi necessário ainda criar "heróis" para representar o evangelho republicano - e Tiradentes foi o primeiro deles, embora tenha sido representante de um movimento que nem de longe era nacionalista; mas o alferes (ou a imagem que foi criada para ele) era alguém construído para simbolizar a união dos cidadãos, a participação popular e a luta autêntica pela independência.
A identidade internacional do Brasil, diz o autor, tem como referência fundamental, desde seu início como país independente, a América - entendida primeiramente como os EUA e depois como as repúblicas latino-americanas. O Brasil foi o único país americano que, em sua independência, não desenvolveu proximidade com a ideia de ruptura com o modo de vida europeu. Com a república, o antiamericanismo monárquico foi substituído pela defesa do "espírito americano". É justamente com Rio Branco que a aliança com os EUA se consolida, sob a perspectiva de domínio geral estadunidense nas Américas e na hegemonia brasileira no nível sul-americano.
A partir de Getúlio Vargas, e desde então com esporádicos intervalos, a política externa brasileira se fundaria na dimensão do desenvolvimento econômico nacional em contraponto ao Hemisfério Norte, num apenas aparente afastamento do evangelho de Rio Branco. No início da Guerra Fria, o Brasil viu-se em condições de invocar o americanismo do Barão para cobrar tratamento preferencial dos EUA. A frustração com a resposta vaga de Washington a esse pleito - e também à promessa de um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, feita pelo presidente Franklin Roosevelt a Vargas - empurrou o Brasil para uma aproximação maior com os demais países latino-americanos e para a ideia de que havia um bloco regional de subdesenvolvidos, entre os quais os brasileiros passaram a se incluir, que precisavam ser ouvidos.
Esse bloco se considerava moralmente superior às potências globais, porque seria vítima da corrida armamentista e das guerras imperialistas. Tal movimento rompeu a bipolaridade Leste-Oeste da Guerra Fria e estabeleceu a complexidade do debate Norte-Sul, com a defesa de um modelo de desenvolvimento fortemente estatal, em contraponto à doutrina democrático-liberal que se consideraria vitoriosa na queda do Muro de Berlim e que se fazia representar pelos EUA, justamente o "outro" na relação com a América Latina ao longo do século 20.
A identificação latino-americana, de tão importante para a nova etapa da ideia de nação brasileira, foi inscrita na Constituição de 1988. O discurso do Brasil hoje, sobre seu lugar no mundo, é fincado essencialmente na afirmação da liderança continental, ainda tendo como referência os EUA, numa inequívoca demonstração da resistência, mesmo controversa, da herança do Barão do Rio Branco - o nosso "Founding Father". 


Brics não aceitam proposta de países ricos no G-20

Andrei Netto - O Estado de S.Paulo
Os maiores países emergentes participarão da reunião ministerial do G-20, hoje, em Paris, com propostas conjuntas para três temas controversos: a definição dos indicadores de desequilíbrio e os vetos ao controle de fluxos de capitais e à limitação do acúmulo de reservas internacionais.
A posição coletiva foi definida na tarde de ontem, na capital francesa, em encontro de ministros da Economia e presidentes de bancos centrais do Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul - o grupo dos Brics, acrescido do parceiro africano. Já sobre "guerra cambial", não há acordo.
Na prática, a postura conjunta deve representar um freio nas ambições do G-20 ministerial de Paris. As divergências começam pela prioridade n.º 1 do evento: a definição dos indicadores de desequilíbrio macroeconômico. Pela proposta franco-alemã, aceita por países desenvolvidos, seriam cinco: saldo de contas correntes, taxa de câmbio real, reservas de câmbio, déficit e dívida públicos e poupança privada.
Já os Brics não aceitam o saldo de contas correntes. "No que diz respeito ao comércio e à conta corrente, há divergências", afirmou o ministro da Fazenda, Guido Mantega. "Nós concordamos em não tomar a conta corrente como indicador, mas a conta de bens de serviços, senão acrescentaria às aplicações financeiras no exterior, que não são bem um indicador de desequilíbrio."
Outro ponto de acordo entre os emergentes é a rejeição de parâmetros (guidelines) para restringir as políticas de controle de fluxo de capitais externos.
No entender dos Brics, cada país que aplicou a iniciativa tem perfil de investimentos estrangeiros e de ativos diferente, o que justificaria a total liberdade na criação ou adoção das medidas. "Cada país tem suas peculiaridades e fará o controle de capitais da forma que achar mais adequado", argumentou Mantega.
O ministro brasileiro ainda ironizou, em linguagem cifrada, a proposta de controle, ressuscitada pela França, depois de ter sido recusada pelo G-20 de Seul, em novembro. "Parece que agora alguém se arrependeu", disse. "Não dá para concordar."
O terceiro ponto que une Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul - contra as propostas postas à mesa de negociações pela França - diz respeito ao acúmulo de reservas internacionais. "Discordamos de estabelecer limites para o acúmulo de reservas enquanto não houver um sistema financeiro mais seguro", disse Mantega. "Se houver uma crise, quem vai nos socorrer? São as nossas reservas."
Os grandes pontos de convergência entre os emergentes, entretanto, não se estendem a uma proposta conjunta para reduzir os efeitos da "guerra cambial". Isso porque Brasil e China têm visões diferentes sobre o yuan, cujo câmbio é administrado pelo Banco Central chinês. Ainda assim, Mantega também criticou os EUA. "Não é só um ou outro país asiático que está administrando o câmbio. Ele está sendo administrado por vários países", reclamou o brasileiro.
As posições dos Brics confrontarão hoje as propostas da França. Christine Lagarde, ministra da Economia do país anfitrião, defende a imposição de limites à acumulação de reservas e o enquadramento das políticas de controle de fluxos de capital. O governo de Nicolas Sarkozy tenta obter neste G-20 ministerial pelo menos um "acordo de princípios" sobre os indicadores de desequilíbrio, o que impediria o fracasso do evento.
As chances de avançar nas negociações, entretanto, não se limitam a hoje. Em Washington, em abril, e novamente em Paris, em outubro, haverá encontros ministeriais antes da reunião de chefes de Estado e de governo do G-20 em novembro, em Cannes. 

Volatilidade dos preços e segurança alimentar



No momento em que muitas ideias falsas vêm sendo difundidas a respeito das propostas da França relativas às commodities no âmbito do G-20, parece-me útil esclarecer nossas intenções.
Ao assumir a presidência do G-20, a França definiu, dentre suas prioridades, a questão da excessiva volatilidade dos preços das commodities. Esse trabalho não é uma iniciativa isolada da França, mas sim parte integrante de um trabalho coletivo sobre segurança alimentar iniciado há mais de dez anos com os "Objetivos do Milênio para o Desenvolvimento", na FAO, no Banco Mundial e no G-20.
Por quê? Porque a volatilidade dos preços é uma realidade: no verão de 2010, enquanto se anunciava uma redução nas estimativas de produção de trigo em 3%, o preço teve aumento de 70% em um mês. Porque ela é uma ameaça para os habitantes dos países mais vulneráveis, quer os preços estejam baixos - quando quem sofre as consequências são os produtores - ou altos - quando quem sofre são os consumidores das cidades (os gastos dos países mais pobres para o abastecimento em produtos agrícolas duplicaram entre 2000 e 2008). Finalmente, porque ela impede os produtores de planejarem suas atividades a longo prazo e, consequentemente, de realizarem os investimentos produtivos necessários se quisermos, coletivamente, alimentar o mundo em 2050.
A proposta de uma melhor regulação dos mercados internacionais não significa, de forma alguma, controlar os preços, nem organizar, em nível internacional, a produção e o abastecimento. Em contrapartida, a agenda a seguir foi definida junto com nossos parceiros do G-20 : o acesso à informação sobre safras, consumo e estoques; a coordenação internacional para enfrentar as crises; a ajuda aos países vulneráveis, com uma reflexão sobre as boas práticas no que diz respeito à constituição de estoques nacionais ou regionais, bem como sobre instrumentos financeiros de cobertura de riscos; a regulação dos mercados derivados de produtos agrícolas (no mercado, troca-se o equivalente a 45 vezes a produção anual mundial de trigo); por fim, a melhoria da produção e a produtividade agrícolas nos países mais pobres.
Vanguarda. O Brasil está na vanguarda da luta contra a insegurança alimentar, tendo demonstrado em programas como o Pronaf, Fome Zero e Bolsa Família, assim como em seus resultados comerciais (com US$ 20,4 bilhões de importações agrícolas brasileiras, a União Europeia é o primeiro cliente agrícola do Brasil, muito à frente da China e dos Estados Unidos), que é possível combater a fome, apoiar a agricultura familiar e desenvolver uma forte agricultura comercial. Agora, o Brasil procura compartilhar sua experiência, como se percebe nos ambiciosos programas de cooperação na África, com a candidatura ao cargo de diretor-geral da FAO do senhor José Graziano que implementou o Fome Zero no Brasil.
Nós, o Brasil e a França, somos duas grandes nações agrícolas, que tiveram e ainda hão de ter debates difíceis, particularmente quando estiverem em jogo nossos respectivos interesses comerciais agrícolas e a concorrência que há entre nós nos mercados francês e europeu. No entanto, existe convergência em matérias essenciais, como o combate à fome, na FAO e em nossa parceria estratégica.
Esse trabalho deve continuar, pois ainda existem muitos assuntos importantes a serem tratados: a luta contra a excessiva volatilidade dos preços agrícolas, tendo como objetivo a segurança alimentar, é um deles.