sábado, 1 de março de 2025

Muniz Sodré - Hipermalvadeza acima da razão social, FSP

 Talvez sem relevância sociológica, é de interesse analítico uma curta frase em entrevista recente do ator Robert De Niro: Donald Trump não é um homem mau, e sim um malvado. A distinção fica mais clara em inglês, onde "bad character", mau, tem conotação diversa de "perverse person", "mean", "wicked", malvado, cruel. Faz sentido prático estabelecer diferenças dessa ordem, como quando se diz que a droga mata, mas o narcotráfico assassina. Por igual que seja o efeito danoso, na avaliação dos riscos sociais muda a estratégia preventiva.

A imagem mostra a silhueta de uma pessoa dentro de um veículo preto, visível através da janela. A pessoa está usando um chapéu e parece estar sentada no banco do carro. A luz do sol reflete na janela, criando um efeito brilhante.
O presidente dos EUA, Donald Trump, viaja na traseira do carro presidencial ao deixar sua casa no sul da Flórida - Roberto Schmidt/AFP

De Niro já interpretou vários homens maus no cinema e bem sabe que a morfologia desse personagem comporta alguma coragem, capaz de ser aferida como virtude. Para enfrentar adversários, o mau precisa de um caráter, que pode oscilar entre o negativo e o positivo na percepção do público. Já o malvado está mergulhado em si mesmo, sem alteridade possível, como o Drácula lendário desprovido de reflexo no espelho, atuando como máquina humana tipo "idiot savant", o autista que incorpora um mecanismo computacional. Mas diferente deste, o malvado, agente ativo do caos, apenas destrói.

Essa não é perspectiva comum ao campo habituado a pautar análises por disciplinas sociais que sobrepõem o coletivo ao individual, centradas em condições concretas como classes, produção e Estado. No entanto, a personalização do poder é tendência própria a sistemas em que o titular da autoridade é alguém carismático que simboliza o Estado e assume responsabilidade pelas ações. A performance individual é então maior do que a impessoalidade burocrática da coerção.

A essa linha crítica se adequa a tese da maior responsabilidade de Hitler com seu círculo imediato na biopolítica de extermínio do Terceiro Reich. Embora o antissemitismo deite raízes seculares no cristianismo europeu, a obsessão pessoal de Hitler foi decisiva para a implantação dos campos de concentração e para a extensão do ódio a ciganos e outras minorias. Himmler, o organizador dos campos, seguia o impulso, mas como derivação da potência infecciosa do Führer.

É que o malvado infecta. Diferente do homem mau, não vê na vítima um oponente direto, como o inimigo na guerra, mas um alvo de aniquilação programada, contagiosa ao ponto que crie um consenso. Isso fez o hitlerismo por meio do rádio e das marchas triunfais. É também o que as redes sociais fazem pelo trumpismo. Entre nós, calcula-se que deepweb e fundamentalismo religioso sejam correias de ativação infecciosa do vírus extremista.

Razão não falta aos observadores que descartam a "teoria do louco" aplicada ao comportamento caótico de lideranças ultradireitistas. Hitler não era louco, mas um incubador de novos paradigmas pelo caos. Musk exibe uma motoserra após demitir funcionários públicos e, segundo a CNN, os alvos não são de iniciantes, e sim dos mais competentes. Pelo caos, ele e Trump perseguem a ruptura entre Estado e povo para consolidar o modelo de superprodução das elites e empobrecimento das massas. Um percurso lógico e perverso. Para bem figurá-lo, impõe-se esquecer categorias como bem e mal, palhaço e estadista. O estupor puro e simples inaugura a era da hipermalvadeza no poder.

Nenhum comentário: