terça-feira, 11 de março de 2025

Brasil e Argentina venceram Oscar com filmes sobre ditaduras, mas só nossos vizinhos puniram crimes, OESP

 

Provavelmente foi uma dessas coincidências da vida e da história que, 60 anos após o golpe militar, e é claro, o talento de cada um dos participantes, premiassem o filme “Ainda Estou Aqui” com o Oscar de melhor filme estrangeiro. Seguiu a trilha de outro filme, o argentino “A história Oficial”, de 1985. Um dramático e brutal retrato da ditadura militar argentina (1976-1983), sob a qual estima-se que possam ter morrido ou desaparecido 30 mil pessoas, e que também ganhou o Oscar na mesma categoria, em 1986.

Mas o regime do nosso vizinho, quando caiu em 1983, julgou e condenou os agentes do Estado que o perpetuaram. O ditador, general Jorge Rafael Videla (1925-2013), que morreu cumprindo a sentença de prisão perpétua, em uma de suas frases mais célebres, disse em 1985:

“Os desaparecidos são isso, desaparecidos; não estão nem vivos nem mortos, estão desaparecidos”.

Cena de 'Ainda Estou Aqui', que venceu o Oscar de melhor filme estrangeiro com a história de Eunice Paiva e sua família
Cena de 'Ainda Estou Aqui', que venceu o Oscar de melhor filme estrangeiro com a história de Eunice Paiva e sua família Foto: Alile Dara Onawale/Divulgação

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Se é possível dizer algo minimamente positivo que tenha nascido do macabro regime é que seu fim acabou com a presença de militares na política, na vida dos civis. Mães, pais, irmãos ainda buscam e têm esperança de encontrar os seus, ainda que mortos, para dar-lhes um enterro digno e eles mesmos conseguirem colocar um ponto final nesse período de suas vidas.

Aqui no Brasil, isso não aconteceu. Não estou aqui defendendo o revanchismo, as perseguições. Seria apenas uma questão de justiça. Certa vez um graduado oficial do Exército Brasileiro, das novas gerações, essas que entraram na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) das décadas de 70 em diante, e eram garotos quando o golpe de 64 já andava a passos largos e a ditadura militar com sua censura, torturas e sequestros corria solta, me disse: “Se hoje Eunice Paiva estivesse viva e eu a encontrasse, lhe daria um forte abraço.

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Ele repetiria, assim, o gesto do general Alberto Cardoso, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) no governo de Fernando Henrique Cardoso. Viúva do deputado Rubens Paiva, Eunice fora ao Palácio do Planalto para participar da assinatura do projeto de lei que propunha o reconhecimento da morte de 136 desaparecidos políticos, entre eles, seu marido. Na ocasião, Fernando Henrique conclamou a Nação a “virar esta página da história e olhar para o futuro”.

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Política
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O Brasil, provou o 8 de janeiro, não virou essa página da história. Eis que, em pleno século XXI, no ano da graça de 2019, subiu a rampa do Palácio do Planalto Jair Messias Bolsonaro. Admirador e seguidor dos torturadores identificados, mas não punidos, Bolsonaro criou aquela que passaria a se chamar a “República dos Generais”, alguns sabedores das entranhas do que se passava naqueles tempos e que, como o presidente achavam que o Brasil, deveria dar uma guinada à direita, e estavam dispostos a despender todos seus esforços para que isso acontecesse.

A trama toda já é conhecida no País. O papel de cada um dos envolvidos também. Todos entregaram suas defesas e o destino de cada um dos 34 denunciados pelo Ministério Público Federal (MPF) - sob a acusação de ter participado da tentativa de golpe de estado e de abolição do estado democrático de direito - está nas mãos da primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF). Entre os denunciados está Bolsonaro que muitos têm certeza de que passará uma temporada na cadeia.

A fartura de provas coletadas pela Polícia Federal (PF) deixa poucas dúvidas sobre a intenção do grupo de impedir a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, perpetuando o governo Bolsonaro. E traz também a certeza de que se a maioria do Alto Comando do Exército não tivesse se levantado, isso poderia ter acontecido.

Entretanto, paira sobre nosso país a dúvida se toda essa trama e a tentativa de atingir a democracia teria acontecido novamente se, aqui, como aconteceu na Argentina e no Chile, por exemplo, os algozes da ditadura tivessem sido julgados e punidos. A anistia, por aqui, passou a mão na cabeça dessas pessoas que torturaram e mataram sem punição. Por quê? Porque não tivemos condições de julgar essas pessoas?. Fiz essa pergunta a dois dos mais respeitados pesquisadores, estudiosos em profundidade dos militares. Pedi uma resposta curta e resumida, dentro de possível para um tema tão complexo:

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“Porque a maioria da classe política tinha medo dos militares e achava que essa seria a única forma de viabilizar uma transição democrática”, disse Celso Castro.

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“O ministro do Exército durante a Constituinte, Leônidas Pires Gonçalves, estava disposto a bancar uma reviravolta, caso as Forças Armadas fossem desprestigiadas. Ou seja, a anistia e toda a legislação militar da ditadura tinham que ser acatadas com o novo arcabouço legal. A anistia passou a ser constitucional. Achaque contra os civis que sempre se acovardaram diante da farda. Legalizaram-se todas as prerrogativas militares por medo de um retrocesso. Em que pese a ação do ministro Alexandre de Moraes, Lula não ousa contrariar”, Maria Celina d’Araújo.

Desprestígio, no caso, seria à submissão aos tribunais tal qual aconteceu nos outros países. Já em 2012, no governo de Dilma Rousseff, ela mesma presa e torturada na ditadura, que, 50 anos depois do golpe, identificou os agentes do Estado que mataram e torturaram para consolidar o projeto político do golpe. Mas quase nada mudou. Agora, 15 anos depois de ter barrado a revisão da Lei da Anistia, o Supremo Tribunal Federal (STF) sinaliza que desta vez pode mudar, que o grito “sem anistia”, que ecoa na porta do prédio do general José Antônio Belham, indiciado pelo Ministério Público Federal pelo homicídio e desaparecimento de Rubens Paiva, pouco a pouco está sendo ouvido na Corte.

Foto do autor
Opinião por Monica Gugliano

É repórter de Política do Estadão. Escreve às terças-feiras

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