quinta-feira, 4 de julho de 2024

Freio de arrumação, Opinião OESP

 É estranha a rapidez com que foi tratado pela Câmara Municipal de São Paulo o Projeto de Lei (PL) 691/22, que proibiu o uso de animais em atividades esportivas na cidade. Proposto pelo vereador Xexéu Tripoli (União) em 13 de dezembro de 2022, o PL 691/22 foi aprovado pela Casa no dia 26 de junho passado e sancionado pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB) no dia seguinte. Nesse ano e meio de tramitação, só há registro de duas audiências públicas obrigatórias.

Na superfície, o projeto parece bem intencionado. Mas de boas intenções, como se sabe, o inferno está cheio. Desde o início, ficou claro que o grande alvo da Câmara Municipal era a proibição do turfe na cidade, a pretexto de coibir a “prática de jogos de azar” e, principalmente, os “maus-tratos” contra os cavalos. O projeto, porém, também serve a um interesse não escrito. No limite, pode culminar na desapropriação da valiosíssima área de 600 mil m2 do Hipódromo de Cidade Jardim, de propriedade do Jockey Club de São Paulo.

A bem da verdade, o Jockey Club deve R$ 856 milhões de IPTU à municipalidade, de acordo com os cálculos da Prefeitura. A desapropriação, portanto, é uma das cartas sobre a mesa. Mas o clube decerto não é o único devedor do Fisco municipal. Ademais, há sempre a possibilidade de negociação.

Sensível a essas nuances, a Justiça paulista acolheu um pedido do Jockey Club e suspendeu, na terça-feira passada, a validade da Lei n.º 18.147/24. Assim, a Prefeitura fica proibida de punir o clube por manter suas atividades até o julgamento do mérito da ação, ainda sem data marcada.

Não se pode condenar quem veja nessa correria para aprovar a lei a exploração eleitoreira da situação periclitante do Jockey Club, no melhor cenário, ou a abertura do poder público à especulação imobiliária, no pior. Em exposição de motivos, Tripoli argumentou que “a aversão à ideia de apostas em contenda com animais vem aos poucos se consolidando”, sem apresentar dados objetivos que corroborassem a asserção. Parece uma justificativa frágil.

Além disso, em que pese a opinião dos que não veem o turfe como um esporte, mas sim “uma prática extenuante” para os cavalos, como defende o vereador, parece haver uma deliberada confusão entre o que acontece no Hipódromo e o que acontece na clandestinidade das apostas em rinhas de galo, corridas de cães ou lutas entre pit bulls – estas sim, práticas que quase sempre levam à morte os animais.

Os cavalos do Jockey Club decerto são mais bem tratados do que muitos dos moradores sem-teto na capital paulista. E com estes o Legislativo municipal não parece estar tão preocupado, haja vista que passou em primeira votação um projeto de lei que multa quem doar comida aos sem-teto, impedindo, na prática, o exercício da caridade.

Igualmente estranha nessa história toda é a intenção do prefeito Ricardo Nunes de instalar um parque no lugar do Hipódromo de Cidade Jardim. Há três anos, estudos da própria Prefeitura revelaram que seria inviável criar um parque no local dadas as condições do terreno, entre outros fatores.

O privatismo sem critério de Tarcísio de Freitas, André Roncaglia, FSP

 Depois do escândalo da privatização da Eletrobras, a Sabesp é a bola da vez.

A venda de participação acionária da empresa teve a ampla concorrência... de uma empresa interessada. Indagado a este respeito, o governo Tarcísio reagiu com a novilíngua privatista: "Não é falta de concorrência, é uma aderência ao que a gente vem colocando desde o início".

Estações de tratamento de esgoto modulares da Sabesp no Rio Pinheiros, próximo à usina de Traição, na Vila Olímpia
Estações de tratamento de esgoto modulares da Sabesp no Rio Pinheiros, próximo à usina de Traição, na Vila Olímpia - Gabriel Cabral/Gabriel Cabral/Folhapress

Especializada em energia elétrica, a Equatorial conta com uma "vasta experiência" de dois anos no setor de saneamento, "conquistada" com a privatização do serviço no Amapá, feita pelo governo Bolsonaro em 2021, sob a batuta do atual governador carioca de São Paulo.

Se efetivada a operação, a Equatorial deterá 15% das ações da Sabesp, adquiridas a preços abaixo dos vigentes no mercado (R$ 67 contra R$ 75). Sim, a privatização do ativo público, subsidiada com o dinheiro do contribuinte, é vista com naturalidade pela patrulha liberal.

Reportagens da Folha fizeram uma radiografia picotada da privataria tarcisiana. Deixe-me organizar os dados para o leitor. Ao se tornar "acionista de referência", a empresa terá participação acionária de 15% e o poder desproporcional de indicar o CEO da Sabesp, o presidente e três membros do conselho de administração.

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Os principais acionistas da Equatorial são "o Opportunity, do banqueiro Daniel Dantas, as gestoras Atmos, Capital World Investors, Squadra Capital e o fundo americano de investimentos Blackrock". Com efeito, o "futuro plano de eficiência" da Sabesp prevê "redefinir a relação com sindicatos, otimizar benefícios e políticas de remuneração". E, claro, a governança da Sabesp seguirá a "cultura de dono", isto é, o "alinhamento de incentivos por performance". Traduzindo: corte no quadro de funcionários e elevação da remuneração da diretoria executiva. Este arranjo tem dado certo com a Enel em São Paulo, não?

A otimização de custos operacionais e da estrutura de capital da Sabesp visa aumentar o endividamento da empresa para fazer caixa e, assim, aumentar a distribuição de lucros aos acionistas. Com este nível da taxa de juros brasileira, o acionista ganha o retorno hoje e o usuário paulista paga os juros com tarifa mais alta no futuro.

Neste ponto, a racionalidade técnica do exterminador de estatais tem uma solução: utilizar os ganhos com a privatização para subsidiar, nos primeiros anos, as tarifas pagas pelo consumidor paulista. Sim, o governo vai usar o ganho com a venda da casa para financiar o aluguel da casa. "Imprecionante"!

Diferentemente do Amapá, onde a cobertura de serviços de saneamento é muito baixa —apenas metade da população tinha acesso a água tratada e meros 4,5% da população contava com coleta de esgoto—, a situação da cobertura no estado de São Paulo é próxima de total. Em 2022, os índices de cobertura de água (98%), de esgoto (92%) e de tratamento de esgoto coletado (85%) deixam nítido que o contribuinte paulistano já amortizou o investimento na estatal paulista desde 1973, quando foi fundada.

A Sabesp é uma empresa altamente lucrativa e com capital aberto em Bolsa. Mesmo assim, o governo Tarcísio não conseguiu gerar concorrência para privatizar a maior empresa de saneamento do país. É um feito e tanto!

Com controle da Sabesp, a Equatorial se consolidará como "empresa multiutilidades"; em 2023, sua margem de lucro foi de 77%. A ironia desta história é que um governo bolsonarista está subsidiando, à custa do contribuinte paulista, uma nova campeã nacional.

A reestatização do saneamento em Paris e Berlim —dentre dezenas de cidades mundo afora— questiona a fé inabalável na gestão privada dos recursos hídricos. É imperativo evitar este retrocesso no estado mais rico do Brasil.


quarta-feira, 3 de julho de 2024

Drauzio Varella - Flavorizantes tóxicos, FSP

 Cada geração de adolescentes vive seus tormentos. Na minha foram os cigarros, moda que nos aprisionou na dependência de nicotina, para tirar a vida dos que não conseguiram se livrar dela. Os adolescentes de hoje caem na armadilha defumar cigarros eletrônicos.

Apresentados como forma de reduzir danos para fumantes de tabaco, os eletrônicos trazem um dispositivo que contém uma solução de nicotina, a droga que provoca a mais feroz das dependências químicas.

Vemos uma figura insólita. Uma jovem de perfil fuma um cigarro eletrônico. Junto ao cigarro vemos uma quantidade grande de frutas e flores que deveriam perfumar o ambiente, porém logo por traz dessa barreira perfumada, vemos que as frutas estão podres e estão junto de vermes, moscas e outras coisas pútridas. A jovem também não está bem. Ela tem apenas a face encarnada como uma máscara e o resto de seu corpo está descarnado. Ela já é um esqueleto fumante, porém a expressão da máscara é indiferente
Líbero - Líbero/Folhapress

Com a experiência da queda nas vendas do cigarro comum, a indústria aprendeu que precisava vencer os obstáculos do hálito repulsivo causado por ele e o mau cheiro que deixa no corpo, nas roupas e no ambiente.

Para não reincidir no erro, lançaram mão dos flavorizantes que, adicionados ao reservatório em mistura com a nicotina, têm cheiro e sabor de frutas, chocolate, balas, sorvete de creme e outros tão ao gosto da criançada.

Os fabricantes falam que esses compostos já provaram ser seguros para uso em seres humanos. É mentira. Eles esquecem de dizer que a segurança foi testada para uso na indústria alimentícia e na cosmética, jamais para irem parar nos pulmões.

Resultantes da decomposição pelo aquecimento —pirólise— no interior do dispositivo eletrônico, os subprodutos desses flavorizantes são menos conhecidos ainda.

Milhões de pessoas tomam vitamina E, com efeitos colaterais insignificantes. Quando adicionada aos eletrônicos, entretanto, os mais de dez compostos químicos resultantes de sua degradação pelo calor foram responsáveis pelos casos de Evali, uma inflamação pulmonar, que levaram à hospitalização de 2.087 americanos e a 68 mortes por insuficiência respiratória. Prezada leitora, você imaginaria que uma vitamina seria capaz de provocar um desastre dessas dimensões?

Na composição original dos eletrônicos, havia em seus reservatórios apenas quatro componentes: nicotina, água e dois compostos químicos. Quando foram lançados comercialmente em meados do ano 2000, entretanto, o número de substâncias acrescentadas aumentou de forma dramática. Atualmente, há pelo menos 180 substâncias combinadas em diversas proporções para obter o sabor desejado.

Um estudo europeu mostrou que a média é de seis flavorizantes por reservatório. Pesquisa semelhante conduzida nos Estados Unidos revelou que esse número variava de 22 a 47. Nesses dois estudos, e em diversos outros, a proporção de flavorizantes foi maior do que a de nicotina.

Já fiz reflexões semelhantes nesta coluna diversasvezes. Volto a elas motivado pelos dados obtidos num estudo científico de alta qualidade, publicado em maio pela revista Nature, uma das mais respeitadas pela comunidade científica internacional.

O grupo de Akira Kishimoto, do Royal College of Surgeons, da Irlanda, se propôs a avaliar a toxicidade dos produtos de degradação térmica desses flavorizantes adicionados aos cigarros eletrônicos.

A metodologia empregada foi altamente tecnológica e envolveu métodos como construção de redes neurais, espectrometria de impacto eletrônico, estudos computacionais e acesso às bases de dados que relacionam os principais problemas de saúde associados aos compostos químicos empregados. Os dados obtidos foram tabulados por inteligência artificial.

Os estudos se concentraram nos 180 flavorizantes presentes nas principais marcas encontradas no mercado. Entre eles, há ésteres, aldeídos, cetonas, hidrocarbonetos aromáticos, álcoois e acetatos.

Como o cigarro eletrônico funciona por aquecimento da solução contida no reservatório, a pirólise quebra essas moléculas em subprodutos mal conhecidos. Os bancos de dados permitiram identificar 127 compostos químicos capazes de provocar toxicidade aguda, 153 causadores de outros agravos à saúde e 225 irritantes para os pulmões e demais órgãos do trato respiratório.

Modelos de inteligência artificial identificaram 500 compostos químicos tóxicos. O principal problema para avaliar os efeitos dessa nova forma de administrar nicotina que se dissemina entre crianças e adolescentes é que os piores efeitos do fumo surgem após décadas de uso.

Quanto tempo levamos para demonstrar que o cigarro comum era causa de câncer, doenças cardiovasculares e enfisema? Desta vez não podemos esperar as mortes para agir. Temos de educar os mais jovens e a sociedade, mostrar os malefícios que essa praga representa.