Quando hoje ouvimos Hyldon cantando "E eu vou/ Esquecer de tudo/ Das dores do mundo", refrão do seu clássico do soul "As Dores do Mundo", de 1975, a poesia da letra corre o risco de ser contaminada por recentes evoluções semânticas no mundo das nevralgias.
O fato é que, para um grupo de falantes de grande influência nos rumos da língua contemporânea, as dores do mundo já não devem ser esquecidas —doa a quem doer. Pelo contrário!
Nas palavras que eles mesmos costumam usar, é crucial focar na dor para entregar no fim do dia um design de produto ou serviço que proporcione ao cliente em potencial, esse torturado, algum alívio. Se não for uma cura, que seja ao menos um analgésico.
Como se vê, não estamos falando de medicina, mas de marketing. Caso você tenha a sorte de não se expor a esse tipo de jargão, parabéns: uma dor a menos.
Mesmo assim, pode ser útil saber que a dor —do cliente, do setor, do mercado— é o último grito (de dor?) em termos de modismo vocabular nos ambientes corporativos. "No fim do dia" tem sabor de anteontem. "Endereçar", qualquer profissional medíocre endereça. O "diferencial" hoje é a dor.
Dor, no caso, é um sinônimo de problema, necessidade, carência, exigência, dificuldade. A palavra-fetiche foi importada —para surpresa de ninguém— do inglês. "Pain point" (ponto de dor) costuma ser definido mais ou menos assim nos manuais de marketing: "Problemas específicos que clientes em potencial enfrentam no mercado".
Caso ainda não tenha ficado claro como a dor do marketing funciona, seguem alguns exemplos colhidos a esmo na internet.
"Aprenda a utilizar o Value Proposition Canvas, identifique seu cliente ideal e torne seu produto mais compatível com as dores do mercado."
"Definir o plano sem analisar a dor e os comportamentos do público-alvo não irá te levar muito longe."
"Segundo fulano, a dor do setor é pequena, mas existe."
"Utilizar as necessidades, ou como chamamos dentro do Marketing, a DOR do público-alvo, como fonte de nossa comunicação é um atrativo PODEROSO."
"Explorando a dor do público-alvo, justifica-se o diferencial do produto para os clientes, em prol do objetivo macro do método."
"Nessa etapa a empresa pode desenvolver e-books, blog posts, carrosséis e outros conteúdos que sanam a dor do público."
Sim, estamos diante de uma metáfora. A dor em questão não é literal, não se situa no corpo de ninguém, no máximo pode ser localizada no corpo social entendido em sua dimensão econômica —o que também é uma metáfora.
Mais interessante, no caso, é refletir sobre as razões do sucesso da expressão neste momento da história em que os pontos lancinantes do mundo são tantos —no meio ambiente, na geopolítica, na saúde mental coletiva— que levam muita gente a ansiar pela anestesia final do apocalipse.
Em seu livro "Mitologias" (Difel), que faz uma crítica aguda de diversos aspectos da paisagem cultural dos anos 1950, o semiólogo francês Roland Barthes confessa sua impaciência com o modo como "a imprensa, a arte, o senso comum mascaram continuamente uma realidade" criada historicamente ao lhe dar tratamento de coisa natural.
Barthes ia se divertir à beça com as dores do marketing, que ilustram com perfeição tudo o que o impacientava ao tingir de natureza o que é histórico, ou seja, de desvio fisiológico o que é oportunidade de negócio em determinados mercados de sociedades capitalistas do século 21.
Nenhum comentário:
Postar um comentário