terça-feira, 6 de junho de 2023

Mercadores de órgãos, Helio Schwartsman, FSP

 Alimentação, fluidos corporais e órgãos internos são repositórios quase naturais de nossas intuições religiosas e morais. É sobre eles que recaem grande parte dos tabus sem muita base racional, como o veto à carne de porco por judeus e muçulmanos ou a proibição de tocar mulheres menstruadas verificada em várias culturas. Uma versão "high tech" dessa tendência se materializa na alocação de órgãos e tecidos para transplante e outras finalidades médicas e científicas.

Exceto pelo Irã, todos os países proíbem o comércio de órgãos. A venda de sangue, plasma, óvulos e esperma está em território mais ambíguo, sendo liberada em algumas nações e vetada em outras. O Brasil é uma das que proíbe geral. Por aqui, tudo só poderia ocorrer em caráter filantrópico.

braço de doador
Doador de sangue em hospital particular de São Paulo - Caio Guatelli - 6.fev.22/Folhapress - Caio Guatelli

Já desisti de ver um mundo em que todas as leis sejam feitas com base em razão e evidências, mas ainda cobro coerência. Se é o altruísmo que deve marcar o setor, por que só os doadores são privados de pagamento, mas profissionais de saúde e empresas que atuam nessa cadeia, não?

E mesmo isso é relativo. Israel proíbe a venda de órgãos, mas autoriza o doador a ser indenizado pelos dias que ficou sem trabalhar por causa da cirurgia. Até no Brasil doadores podem receber prebendas, como o auxílio funeral, que têm valor monetário. São jeitos de pagar fingindo que não o fazemos, uma forma de hipocrisia.

A essa altura, o leitor deve estar imaginando que eu apoio a PEC do Plasma. Não é o caso. A proposta me parece mal desenhada. Ao permitir pagamento para a doação de plasma, mas não a de sangue (os dois procedimentos são parecidos), ela bagunçaria o coreto. Há mais: uma das lições da economia comportamental é que mudanças de registro do gratuito para o pago frequentemente produzem efeitos paradoxais. É preciso testar muito bem essas coisas antes de implementá-las.

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