Primeiro documentário filmado na mítica Aman (Academia Militar das Agulhas Negras), o berço do oficialato do Exército, "Irmãos por Escolha" parte de uma premissa pouco original, mas nunca tratada decentemente por aqui: as motivações e laços que unem jovens forjados na caserna.
É tema maiúsculo, que atraiu de Stanley Kubrick ("Nascido para Matar", 1986) aos ensaios finais de Susan Sontag. O bode do majoritariamente esquerdista establishment cultural com tudo que cheire a verde-oliva, decorrência natural dos anos pós-ditadura que foi renovada pela aventura dos fardados que aderiram a Jair Bolsonaro (PL), é central para tal desinteresse.
Nesse sentido, a produção do filme de Gabriel Mattar, que estreia neste domingo (11) no streaming da Netflix, prometia um olhar fresco sobre a instituição mais capilarizada do Estado brasileiro e talvez iluminar por que alguém quer fazer carreira no Exército fugindo dos estereótipos ("filho de militar", "arrimo de família", "fissurado em guerra").
O resultado, contudo, resulta vago. As imagens inéditas são, sim, bastante interessantes e mostram treinamentos duros a que os cadetes são submetidos, embora um tom "Tropa de Elite" só se insinue discretamente no final da obra —a civilidade dos instrutores ao longo da peça tem mais a ver com a presença de uma câmera.
As tomadas são tão boas que dificilmente o Exército faria melhor para seus filmes de propaganda divulgados no site da instituição. Fossem empregadas numa ficção, estariam no campo consagrado de um certo cinema americano ("Top Gun", para começar), de elegia ao militarismo e ao ambiente de masculinidade exacerbada dessas academias.
Mas a pretensão é documental, logo o arranjo não funciona. O diretor, com intervenções mínimas em "off", busca um naturalismo que carece de roteiro. Logo de saída, ele tenta explicar sua missão de escrutinar o companheirismo militar porque perdeu um irmão na infância, algo que soa artificial. Mas o problema é que a postulação fica no anúncio.
O que se vê a seguir são fragmentos, uma mãe aflita telefonando, uma jovem dizendo que o pai estranhou sua escolha. Não há coesão narrativa, fio condutor a guiar o espectador por sequências de imagens que sugerem superação. Explicações sobre o processo seletivo e sobre os ramos (armas, no jargão) a que os recrutas têm de aderir passam meio batidas.
Um bom exemplo disso é a misteriosa prova Aspirante Mega, em homenagem a um soldado com esse sobrenome que se sacrificou em combate na Segunda Guerra Mundial. Ela é mostrada de forma entrecortada, com insistentes lembretes de que os soldados que irão passar por ela nada sabem sobre as dificuldades, das 60 horas sem dormir etc. Ao fim, nem o espectador saberá.
As turmas retratadas foram filmadas de 2019 a 2020, incluindo a primeira (2018) que aceitou mulheres na Aman. De forma propagandística, é dado na tela um destaque às meninas que a vida militar, ao fim, ainda não proporciona —formadas em 2021, elas eram 26 entre cerca de 400 cadetes.
Mesmo o segmento em que os alunos escolhem a arma que seguirão traz algum machismo: nenhuma moça é mostrada optando pela supostamente mais dura infantaria; todas as retratadas vão para a intendência ou para a gestão de material bélico.
Quando o documentário chega perto do fim, as coisas se aclaram um pouco sobre o "éthos" local. O instrutor de operações especiais soa como um misto de capitão Nascimento e "coach" de autoajuda, recitando conceitos atribuídos à neurociência sobre como ativar seu córtex pré-frontal em situações de estresse e afins.
Mais reveladora, contudo, é uma longa fala anônima aos alunos, na qual é dito que "enganam-se os pacifistas" ao acusar os militares de, bem, serem militaristas. Segundo o talvez capelão, quem faz a guerra é o Tinhoso —ele mesmo, o Demônio com inicial maiúscula.
"Todas as lutas nesse mundo passageiro não passam de uma reedição daquela primeira guerra estrondosíssima, metafísica, eternal, liderada por são Miguel, príncipe dos exércitos do Senhor contra Lúcifer e seu diabos sequazes", completa, desassombrado, isentando líderes políticos, generais e aqueles que apertam gatilhos de responsabilidade. O recruta falando que matar é do jogo logo antes é mais convincente.
Politicamente, as coisas se complicam com o que não é dito. O filme não pode ser acusado de bolsonarismo explícito, até porque se esforça em não dizer muito, ainda que o acesso aos produtores tenha ocorrido nos dois primeiros anos do capitão reformado do Exército no poder. Sobre o ambiente escolar em que o golpe de 1964 ainda é tratado como uma revolução democrática, nada se fala, nem para mostrar o lado dos fardados.
A ausência de contexto, ainda que sob pretexto frustrado de contar histórias humanas, é fatal, em especial quando pontifica a cena o então comandante da Aman, general Gustavo Dutra —que chefiava o Comando Militar do Planalto no fatídico 8 de janeiro deste ano e tem a conduta de suas tropas no episódio sob investigação.
Ao fim, Mattar desperdiça o bom material que tem à mão, talvez preso aos termos de seu acesso a ele. De boas intenções, como deve saber o militar apocalíptico do filme, o inferno está cheio.
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