Yascha Mounk
O ex-líder de uma grande democracia que usou seus bilhões para adquirir vasta influência política, possuía capacidade surpreendente para utilizar a mídia em busca de mudar sua cultura, era infame por uma sequência de casos sexuais sórdidos, foi processado múltiplas vezes e enfraqueceu o Estado de Direito por não respeitar os limites constitucionais de seu próprio poder, personalizando o conflito político até que o país pareceu ficar dividido entre apoiadores e adversários, morreu nesta segunda-feira (12).
Não, o nome do falecido não é Donald Trump –é Silvio Berlusconi.
Quando Berlusconi ingressou na política italiana, na esteira de um grande escândalo de corrupção que no início da década de 1990 pulverizou os partidos políticos italianos que duravam havia anos, observadores externos o encararam com um misto de preocupação e perplexidade. Com atitude machista e piadas sexistas, passado de crooner em navios de cruzeiro e presente de mulherengo inveterado, ele parecia um personagem anacrônico: um membro do elenco de uma ópera-bufa do século 18 que se transportara de alguma maneira para o final do século 20 e agora estava representando um ato extenso de arte cênica.
Durante a primeira década de sua ascensão política, a cobertura de Berlusconi pela mídia internacional tendeu a tratá-lo como uma figura ao mesmo tempo retrógrada e especificamente italiana. A ideia de que ele pudesse ser o precursor de coisas que viriam a acontecer fora da Itália parece nunca ter passado pela cabeça de correspondentes estrangeiros que descreviam os escândalos do então primeiro-ministro em despachos espirituosos em jornais como Le Monde ou The New York Times.
Mas, apesar da influência profunda que o passado da Itália continua a exercer sobre o país, e não obstante todas as formas que sua cultura pode parecer antiquada no dia a dia, o país possui um longo histórico de prever o futuro político. As cidades-Estado da Itália medieval mostraram ser a ponte crucial entre as tradições democráticas do mundo antigo e as novas tentativas de autonomia coletiva lançadas por alguns rebeldes intrépidos nas distantes colônias britânicas da América do Norte no final do século 18.
Depois, os discursos incendiários e cheios de ódio de um homem baixo e robusto chamado Benito Mussolini –que também pareceram, num primeiro momento, algo saído de uma ópera-bufa— serviram de inspiração para emuladores ainda mais perigosos na Alemanha e além. A Itália com frequência mostrou ser um laboratório político imprevisto, e isso voltou a ocorrer após a ascensão de Berlusconi.
Em retrospectiva, o efeito que Berlusconi teve sobre a política italiana parece algo que já conhecemos bem. Ele chegou ao poder explorando uma reação popular contra as falhas de instituições existentes, profundas e genuínas. Seus inimigos sempre o subestimaram devido a seu caráter tosco e grosseiro.
Ao evidenciar o desdém que sentiam por seus seguidores, eles levaram um grande número de eleitores a apostar nele. Berlusconi personalizou conflitos políticos de maneira magistral, caracterizando-se como mártir político e se comparando a Jesus Cristo. E, embora tenha constantemente descumprido suas promessas exageradas, dominando a política italiana por duas décadas de estagnação econômica e declínio político, conseguiu conservar a lealdade de um grande segmento da população.
Berlusconi chamou a atenção do mundo como uma curiosidade bizarra. Seu maior triunfo não foi ter sido premiê da Itália em três períodos; ter continuado senador até seu último dia de vida ou ter morrido em liberdade e como uma das pessoas mais ricas do país, apesar de todos os processos e condenações. É o fato de ter deixado este mundo como um dos cofundadores de uma tradição política que, nas últimas décadas, acabou por dominar o discurso político na Turquia, no Brasil, na Índia e nos EUA.
A influência de Berlusconi de fato começou a diminuir em seus últimos dez anos de vida, primeiro lentamente e depois de uma só vez. Sua última passagem como premiê chegou ao fim há pouco mais de uma década, quando sua administração catastrófica das finanças públicas do país e a falta de confiança dos mercados em sua capacidade de implementar reformas sérias o levaram a perder o apoio majoritário no Parlamento. Seu partido, o Força Itália –assim chamado, num gesto caracteristicamente descarado e astuto, devido ao grito com que os torcedores de futebol italiano saudavam a seleção nacional—, foi encolhendo continuamente, passando de 47% dos votos em 2008 para 8% em 2022.
Essa é a boa notícia: mesmo figuras tremendamente influentes podem perder o domínio que exercem. Durante duas décadas, o show de Berlusconi dominou a política e a sociedade da Itália. Então o país se cansou de suas manobras. Hoje, ele era o líder de uma legenda que é parceiro minoritário de um governo que, na maior parte do tempo, respondia às suas exigências destemperadas com sorrisos insinceros.
Mas há más notícias também. Os últimos dez anos, mais ou menos, sugerem que o fim de populistas como Berlusconi raramente assinala a salvação pela qual anseiam seus detratores. A influência corrosiva que ele exerceu é evidente; o fato de sua morte não deve levar comentaristas a ceder à tentação de minimizar os danos que ele causou. Mas não significa que sua morte vá ajudar a sanar a política italiana.
Os líderes remanescentes da direita italiana, Giorgia Meloni e Matteo Salvini, podem ter menos conflitos de interesses econômicos ou menos razões pessoais para serem favoráveis a um Judiciário fraco. Mas também têm um compromisso ideológico muito mais profundo com a extrema direita e uma apreciação pessoal ainda mais profunda por líderes como Viktor Orbán ou, no caso de Salvini, Vladimir Putin.
E isso faz parte de uma tendência mais ampla. Berlusconi mostrou que, mesmo em democracias supostamente consolidadas, os gradis que as protegem são muito mais fracos do que políticos e cientistas políticos supunham. Ele continuou a ser um político profundamente personalista cuja base de apoio vinha de seu carisma e que se preocupava sobretudo com seus interesses pessoais.
Seus sucessores estão tão dispostos quanto ele a manipular as regras ou a explorar seu carisma, mas muitos deles também estão imersos em uma ideologia de extrema direita que lhes confere a aparência de estar trabalhando para um propósito maior e que, se fosse implementada, causaria danos ainda mais profundos. Berlusconi quebrou um modelo. É duvidoso que as pessoas que estão no poder hoje poderiam reconstruir esse modelo, mesmo que tivessem interesse em fazê-lo –coisa que decididamente não têm.
Na noite deste domingo, quando os rumores da morte de Berlusconi começaram a circular nas redes sociais, eu jantava com amigos italianos de longa data que há quase duas décadas se queixam da influência de Berlusconi sobre seu país. "Diga o que quiser, será o fim de uma era", disse um deles, soando surpreendentemente melancólico. "Pode ser que a gente ainda acabe sentindo saudades dele", disse outra. Fiquei espantado. "Vocês acham realmente que as coisas poderiam piorar?", perguntei.
"As coisas sempre podem piorar", respondeu ela alegremente, tomando outro gole de vinho.
Tradução de Clara Allain
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