As pedras do cais já sabiam que o caso Americanas foi a maior fraude corporativa já registrada no Brasil. O esqueleto financeiro exumado chega perto de R$ 50 bilhões.
Em seu livro "Double Entry" (Partidas dobradas: como os mercadores de Veneza criaram as finanças modernas), Jane Gleeson-White conta como o método veneziano de gestão comercial —codificado em 1494 pelo frade florentino Luca Pacioli— liberou as forças produtivas do capitalismo, mas também alavancou as fraudes e manipulações. É difícil, portanto, dissociar o avanço do capitalismo da corrupção corporativa.
Adam Smith já desconfiava das sociedades anônimas por separarem propriedade e gestão. No celebrado livro "A Riqueza das Nações", Smith destacava a "negligência e exuberância" que prevaleciam na gestão destas empresas.
Segundo ele, tais custos de agência cresceriam em linha com a expansão do poder de mercado das grandes corporações. A desconfiança de Smith tinha fundamento.
A governança corporativa se desenvolveu no século 20 para mitigar tais custos, por meio de maior transparência e a definição de incentivos que alinhassem os interesses de gestores e acionistas e, mais tarde, destes com a sociedade.
Como qualquer instituição humana, a governança empresarial está sujeita a erros de desenho e à manipulação oportunista. Apesar dos avanços, o resultado geral está longe de satisfatório.
Estudo recente de Dyck, Morse e Zingales (2023) sugere que, apesar de ser disseminada a prática de fraudes corporativas, apenas um terço delas é descoberto; e mais: cerca de 40% das empresas com capital em bolsa cometem violações contábeis sistematicamente, destruindo 1,6% de seu valor de mercado a cada ano —US$ 830 bilhões (R$ 4 trilhões) em 2021.
O estudo se baseia nos EUA, em que há mais transparência e controle. No Brasil, suspeito que o problema seja ainda maior.
O órgão responsável por supervisionar o mercado de capitais no Brasil, a CVM (Comissão de Valores Mobiliários) teve seu orçamento reduzido, em 2022, ao menor patamar em 13 anos, e não faz concurso de reposição de quadros desde 2010.
O órgão custa aos cofres públicos cerca de R$ 250 milhões anualmente para monitorar cerca de R$ 25 trilhões em valores de mercado: beira o apagão da fiscalização sobre as condutas corporativas. Onde passa boi...
A corrupção privada raramente galvaniza a fúria do público e da imprensa como a que se dá na esfera do Estado.
Como provocou J.K. Galbraith, em "A economia das fraudes inocentes", corporações não existem no vácuo: suas ações afetam a esfera pública e, portanto, precisam de regulação estatal. Afinal, o mecanismo privado de auditoria é falho e facilmente distorcido por conflitos de interesse.
Dentre os vários escândalos, relembro como a Enron sepultou a empresa de auditoria Arthur Andersen, que fez vista grossa para o histórico de fraudes financeiras e contábeis.
No caso das Lojas Americanas, há fortes indícios de omissão motivada por parte do conselho de administração, das auditorias PwC e KPMG e dos bancos envolvidos. O esquema furtou milhões de seus acionistas minoritários, funcionários, fornecedores e credores.
Sabendo da insolvência da empresa, a antiga diretoria e os acionistas controladores foram agraciados com a isenção de IR (imposto de renda) sobre dividendos distribuídos muito acima da média do mercado, bem como pela venda antecipada de sua participação acionária com os preços em alta.
O efeito vai além: a desarticulação da vasta cadeia de fornecedores produziu desemprego, difundiu a desconfiança que congelou o mercado de crédito privado e reduziu a arrecadação tributária.
Não há meritocracia quando vícios privados se tornam custos socializados de forma reincidente, como é prática reconhecida do trio Lemann-Telles-Sicupira da 3G Capital. Parafraseando o Fabiano, personagem de "Vidas Secas": o nome disso é safadeza.
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