quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Ratzinger esvaziou a igreja progressista, Frederico Vasconcelos, FSP

 O então cardeal Joseph Ratzinger, o Papa Emérito Bento 16 que morreu neste sábado (31), teve papel influente na desarticulação da igreja progressista no Brasil durante o pontificado de Karol Józef Wojtyła, o Papa João Paulo 2º.

O esvaziamento se deu por meio da divisão de arquidioceses e censura.

Foi imposto o "silêncio obsequioso", a proibição de falar em público e de publicar suas ideias.

Era o "sofrimento silencioso", no dizer do padre historiador José Oscar Beozzo.

Quando cardeal, Joseph Ratzinger puniu membros da igreja progressista
Papa Bento 16, entre dom Paulo Evaristo Arns e dom Hélder Câmara - Arquidiocese de São Paulo, Vatican News e Evelson de Freitas/Folhapress

A arquidiocese de São Paulo foi fatiada, para esvaziar a liderança de dom Paulo Evaristo Arns.

Na divisão da arquidiocese de São Paulo, dom Paulo não foi consultado sobre os novos subordinados. Bispos escreveram ao Papa, dizendo-se "estarrecidos", considerando a decisão "desaforada, desrespeitosa e humilhante", "preconcebida, injusta e prematura".

O trabalho de dom Hélder Câmara foi desmantelado. Foram fechados o Instituto Teológico do Recife (Iter) e o Seminário Regional do Nordeste. A Comissão de Justiça e Paz foi dissolvida.

Dom Pedro Casaldáliga, bispo de São Félix do Araguaia (MT), também foi punido com o "silêncio obsequioso", entre outros motivos, por haver celebrado missas "à causa negra e à causa indígena".

"Penas canônicas", destinadas a silenciar figuras expressivas da Teologia da Libertação, foram aplicadas aos irmãos Leonardo Boff e Clodovis Boff.

Muitos ex-padres foram proibidos de dar aula de teologia. Os bispos que não se submetiam à linha dura do Vaticano foram substituídos por outros, contrários ao espírito da Conferência de Medellín (1968) -em que bispos latino-americanos declararam a "opção preferencial pelos pobres".

LINHA DURA NA CÚRIA

Em abril de 2005, conversei, por telefone, com dom Paulo Evaristo Arns e dom Pedro Casaldáliga e com ex-assessores de dom Hélder [que entrevistei no final dos anos 1960].

Pedi a dom Paulo para comentar como "enfrentou a linha dura do regime militar e a linha dura da Cúria Romana".

Ele respondeu:

"Entre os militares, a linha dura era, de fato, uma linha dura no sentido total, enquanto entre os cardeais a linha dura nunca é no sentido total, porque eles ouvem muito a parte dos fiéis que reclamam quando há uma linha dura demais."

Dom Hélder sofreu em silêncio, revelou o beneditino Marcelo Barros, seu secretário para assuntos de ecumenismo entre 1967 e 1976.

"Ele já estava em idade avançada e sua reação foi adoecer", disse Barros. "As veias de suas pernas estouraram", afirmou.

"Por formação, quando se tratava de questões da igreja, ele não protestava. Ele tinha consciência de que, se reagisse contra as ordens de Roma, iriam sofrer as pessoas ainda ligadas a ele".

O espanhol Casaldáliga sofria do mal de Parkinson, doença que afligiu João Paulo 2º. Hipertenso, tinha sobrevivido a várias operações e a 18 ataques de malária.

Disse que era um "cavalo velho, um pouco cansado"... Mas mantinha o bom humor e a crítica vigorosa.

"No pontificado de João Paulo 2º, a Cúria foi dura. Às vezes, com todo o respeito, acho que foi até injusta com os teólogos da libertação", disse.

Ele contou que, na década de 1980, fez uma visita a João Paulo 2º, no Vaticano, depois de ter escrito ao papa uma carta longa.

"Ele teve um gesto. Num momento determinado, ele abriu os braços, como quem quer mostrar o desarme, e falou, em português: "'É para que veja que não sou nenhuma fera'".

Guardei duas lembranças da conversa com dom Paulo.

1. Ele sempre pedia a opinião do jornalista antes de responder às perguntas, concordando ou não com o interlocutor.

2. Ratzinger era forte nome para suceder a João Paulo 2º. Perguntei sobre a hipótese de eleição de um papa latino-americano. Dom Paulo respondeu:

"[A hipótese] é muito pequena, porque nós estamos à margem do mundo, por enquanto. A história do mundo se desenvolve na Europa, na Ásia e na América do Norte. É difícil, então, sair um papa daqui."

E completou: "Pode ser que aconteça, porque o Espírito Santo nunca perguntou para nós... Ele age como quer".

Dom Paulo, quem sabe, anteviu a eleição do Papa Francisco.


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