domingo, 21 de agosto de 2011

O encolhimento do sonho americano

Classe média dos Estados Unidos vê se distanciarem dela dois de seus maiores ícones: o emprego estável e a casa própria
14 de agosto de 2011 | 0h 17
Kenneth Serbin - O Estado de S.Paulo
Num episódio da novela Insensato Coração que foi ao ar recentemente, o jovem casal André e Carol atua numa cena que resume uma faceta importante da emergente economia brasileira: avaliando suas possibilidades para dar o grande salto com a compra do apartamento, eles se sentem mais confiantes ao concluir que poderão dar uma entrada e financiar o restante do valor do imóvel - sem que André precise vender outro apartamento adquirido antes do início do relacionamento dos dois.
Como André e Carol, milhões de brasileiros estão conseguindo os meios para comprar, pela primeira vez, um apartamento ou uma casa própria, porque o governo e o setor privado criaram as condições para a realização do seu projeto.
Já vão longe os dias em que financiar um imóvel era raro e complicado. Os brasileiros vivem atualmente o "sonho americano".
E os americanos estão a par disso. A confirmação do auge do Brasil como provedor de habitação tanto privado quanto público foi divulgada no dia 11 na paraestatal National Public Radio, um dos melhores e mais prestigiosos veículos de comunicação dos Estados Unidos. O noticiário econômico da manhã falou do sucesso de um novo bilionário brasileiro, Rubens Menin Teixeira de Souza, um dos principais parceiros do governo no programa da habitação conhecido como Minha casa, Minha Vida.
Rubens Menin também será focado no artigo de capa sobre os "bilionários ocultos" da edição de setembro da revista Bloomberg Markets. Como todos sabem, a empresa de Rubens Menin está prestes a se tornar a maior construtora do mundo.
O inverso dessas salutares tendências econômicas ocorre nos EUA, onde, no dia 5, a sombria perspectiva financeira de longo prazo levou a agência de avaliação de risco Standard & Poor"s a rebaixar o rating de crédito do país de AAA para AA+. A decisão histórica fez despencar as bolsas do mundo inteiro. Mas, na realidade, é apenas um dos vários indicadores do declínio dos EUA.
Os americanos estão sendo cada vez mais excluídos do patamar econômico da classe média e de seus dois atributos mais importantes: um emprego estável bem remunerado e uma casa.
Os grandes símbolos do sonho americano estão desaparecendo.
O desemprego oficial continua em 9% ou mesmo acima disso. Entretanto, a taxa real, que inclui os subempregados e os que já não constam das estatísticas porque desistiram de procurar trabalho, seria superior a 16%.
Isso significa que um em cada seis trabalhadores americanos se encontra em situação muito difícil. Essas estatísticas não abrangem os pobres que trabalham ou uma boa parcela da população empregada no amplo setor do comércio varejista, em companhias como a Wal-Mart, que ganha muito pouco e recebe poucos benefícios.
Na tentativa de estimular a economia, o governo injetou trilhões de dólares. Uma boa parte desse dinheiro foi emprestada por outros países. Entretanto, os números assustadores do desemprego continuam virtualmente os mesmos.
São poucos os líderes políticos e os especialistas que têm a visão e a coragem de admitir o fato de que a economia não pode gerar novos empregos porque muitas empresas americanas transferiram suas atividades de produção e serviços para o exterior, principalmente China, mas também Índia, Filipinas e outros.
Não há mais o que espremer aqui.
O outro lado da moeda do desemprego é a violenta queda no número de proprietários de imóveis residenciais, exacerbada pela crise financeira. A execução de milhões de hipotecas ainda não terminou.
A concessão de alvarás de construção de imóveis residenciais, em termos mensais, numa economia americana saudável deveria ser algo entre 1,2 e 1,7 milhão. Em abril de 2009, o número caiu para o nível baixíssimo de 478 mil. Dois anos mais tarde, mal superava os 600 mil. Alguns estudos indicam que o aumento maior da concessão de novos alvarás acontece na área da construção de prédios de apartamentos.
"Os Estados Unidos estão se tornando rapidamente uma nação de inquilinos", afirmou na edição de 5 de agosto o Chicago Tribune em um artigo que discutia um relatório sobre o setor da habitação divulgado pela empresa de serviços financeiros Morgan Stanley. Em 2004, 69,2% dos americanos tinham casa própria. Segundo a Morgan Stanley, agora a porcentagem caiu para 59,2% - o menor patamar desde meados da década de 60, quando o governo começou a elaborar estatísticas anuais.
"Pela primeira vez na história recente, o governo deixou de promover a compra de casa própria para todos os americanos, o que levou a uma revisão da política da habitação", disse o relatório da Morgan Stanley.
O governo do presidente Barack Obama confirmou essa mudança. Em um relatório de fevereiro citado pelo Tribune, o governo afirmou que seu objetivo é "garantir que os americanos tenham acesso a várias opções de habitação a seu alcance. O que não significa que o nosso objetivo seja tornar todos os americanos proprietários de um imóvel".
Não faz muito tempo, essa afirmação teria constituído suicídio político para um presidente dos Estados Unidos. Mas hoje reflete a dura realidade - aliás, para muitos, uma triste realidade - da nova economia americana.
Se os líderes do país não reverterem essas tendências, a classe média americana encolherá. O sonho americano - ou o que resta dele - se tornará privilégio de uma minoria e não mais a esperança de todo um povo.
KENNETH SERBIN É CHEFE DE DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DA UNIVERSIDADE DE SAN DIEGO. FOI PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO DE ESTUDOS BRASILEIROS (BRASA) DE 2006 A 2008 

Emprego em alta não freia ações trabalhistas

Apesar da queda do desemprego, Justiça recebeu 3 milhões de processos em 2010
15 de agosto de 2011 | 0h 00
Marcelo Rehder - O Estado de S.Paulo
Apesar da queda do desemprego para um dos níveis mais baixos da história, o número de reclamações trabalhistas na Justiça brasileira já chega perto de 3 milhões de ações por ano - média que não se compara a nenhum país.
Wilson Pedrosa/AE
Wilson Pedrosa/AE
Estoque. Inexistência de penalidade para ação indevida incentiva aumento do número de processos, dizem especialistas
Em 2010, foram abertos mais de 2,8 milhões de processos em todo o País, segundo o Tribunal Superior do Trabalho (TST). É mais que o total de postos de trabalho formais abertos no período, que atingiu o recorde de 2,5 milhões de novas vagas, de acordo com o Ministério do Trabalho.
São múltiplos os fatores que contribuem para essa sobrecarga de processos, a começar pela alta rotatividade da mão de obra no mercado brasileiro, o que gera milhares de ações de empregados demitidos.
Só no ano passado, o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) registrou quase 17,9 milhões de demissões. Contudo, o ritmo de contratações foi maior, de 20,4 milhões, resultando no saldo positivo de 2,5 milhões de vagas.
Entre os problemas, os especialistas apontam a legislação trabalhista, considerada anacrônica, detalhista e protetora do empregado. "O sujeito que já perdeu o emprego sabe que não vai sofrer consequência alguma se entrar com um processo na Justiça, ainda que reclame de má-fé, sabendo que não são devidos alguns pedidos", diz o advogado Márcio Magano, sócio da Bueno Magano Advocacia.
É diferente do que acontece, por exemplo, nos Estados Unidos. Lá, se o trabalhador perde a ação, tem de pagar todas as despesas da outra parte. "As pessoas pensam duas, três, dez vezes antes de entrar com uma ação", compara o advogado.
"Ninguém entra com processo trabalhista porque gosta ou porque não tem ônus", afirma o presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Artur Henrique. "O ônus já aconteceu, na medida em que o trabalhador não recebeu seus direitos."
O sindicalista avalia que cerca de 70% dos processos que sobrecarregam a Justiça do Trabalho dizem respeito a direitos trabalhistas não pagos pelas empresas. "Estamos falando de horas extras, de salário igual para uma mesma função e de um conjunto de direitos que estão garantidos em acordos coletivos ou na própria lei, mas as empresas não cumprem."
O advogado Almir Pazzianotto Pinto, ex-ministro do Trabalho e do TST, diz que não é bem assim. "Existe o bom empregador e o mau empregador, mas não acredito que haja um número tão grande de violações como as que estão nesses processos." Ele argumenta que, diferentemente do que ocorre em ações civis, o pedido trabalhista nunca é único. "Ninguém entra na Justiça para pedir só aviso prévio."
Informalidade. O Brasil tem um potencial imenso de ações trabalhistas, na medida em que os trabalhadores informais, estimados em 32 milhões, e os chamados "PJ", têm uma relação estreita com empregador só enquanto estão trabalhando. Ao serem dispensados, vão à Justiça,
Ao onerar igualmente empreendedores desiguais, como microempresários e empresas de grande porte, a legislação contribui para a informalidade e o aumento de ações na Justiça.
Uma reforma da CLT que elimine as distorções sempre é lembrada, mas o debate costuma esbarrar nas divergências entre os representantes das empresas e dos trabalhadores. Os empresários querem retirar direitos e os trabalhadores defendem a manutenção da proteção oferecida pela Justiça do Trabalho.
Além disso, a Justiça amplia os direitos dos trabalhadores por meio de suas decisões. Há cerca de duas semanas, um cortador de cana obteve, na Justiça do Trabalho, o reconhecimento do direito ao adicional de insalubridade com base em laudo pericial que comprovou exposição intensa ao calor em níveis acima dos limites previstos na regulamentação da matéria.
Para o TST, a insalubridade não se caracterizou pela simples exposição aos efeitos dos raios solares, mas pelo excesso de calor em ambiente de elevadas temperaturas, em cultura em que sua dissipação torna-se mais difícil que em outras lavouras.
"Imagine se todo cortador de cana começar a abrir processo para adicional de insalubridade", diz um desembargador que pediu para não ser identificado. "Vai obrigar as usinas a acabarem de vez com o corte manual da cana, afetando sobretudo o pequeno agricultor, que não tem condições financeiras para mecanizar a colheita." 

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Praça ou shopping



Por Redação Link
Depois da utopia e do domínio de empresas, ainda é tempo de retomar princípios da web
Por Evgeny Morozov*
Ilustração: Farrell
Muitos avanços aparentemente não relacionados no setor da computação foram de vital importância. A ideia de uma computação descentralizada e personalizada já começava a ser cogitada por empresas como Apple e Microsoft nos anos 1970. Por outro lado, o conceito de computação da IBM era de uma atividade centralizada e cara. Se esta visão tivesse prevalecido, a internet não teria ido além do e-mail. O fato de o seu telefone celular funcionar como um computador não é o resultado de tendências tecnológicas inevitáveis, mas de uma luta profundamente ideológica entre visões diferentes da computação.
Grande parte do mérito pelos avanços da rede cabe a pessoas como Vint Cerf, criador do primeiro protocolo de comunicação intrarredes, que ajudou a unificar as redes pré-internet; e de Tim Berners-Lee, que criou a World Wide Web.
Mas é impossível estudar a história da internet sem conhecer as aspirações de seus primeiros incentivadores, um grupo distinto de engenheiros, entre eles Stewart Brand, Kevin Kelly, John Perry Barlow, e o púbico que se formou em torno da revista Wired, quando lançada em 1993. No geral, homens da Califórnia que tinham ternas lembranças do hedonismo dos anos 1960.
Eles enfatizavam a importância da comunidade e do compartilhamento de experiências. Encaravam o Estado e suas instituições como obstáculos a derrubar. E qual melhor maneira de fazê-lo se não no espaço virtual?
Mas havia também um lado sério. Figuras como Nicholas Negroponte, cofundador do Laboratório de Mídia do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), Bill Gates, da Microsoft e Esther Dyson, comentarista e empreendedora, contribuíram para a internet não virar apenas o refúgio predileto dos hippies da Costa Oeste mas também um lugar para fazer negócios. E à medida que os pontífices do espaço virtual insistiam nas suas promessas, a internet se tornava o lugar para “se ter poder”.
E esse poder supostamente seria conseguido por meio da remoção de intermediários. As empresas de mídia tradicionais seriam substituídas pelos bulletin boards, fanzines eletrônicos e, depois, por fóruns e blogs. Os representantes eleitos seriam substituídos por “comunidades virtuais eletrônicas”, com eleições diretas online.
De um modo geral, a visão de um mundo sem intermediário satisfazia antigos hippies comunitários e especialistas cibernéticos libertários. Ambos queriam que a internet nivelasse o mundo, tornando-o mais justo.
Por que os investidores viram-se tão atraídos pela internet é um mistério: o mercado da publicidade online na época era minúsculo e o número de usuários da rede era desprezível. Em 1995, eram apenas 15 milhões, de acordo com o Internet World Stats.
Novas empresas pipocavam, mas, no caso da maioria, as apostas eram promessas de um futuro brilhante e não em serviços reais. A despreocupação dos investidores com os métodos tradicionais de avaliar o desempenho financeiro indica que o seu julgamento foi eclipsado por uma combinação tóxica: a retórica dos incentivadores New Age da internet e as promessas neoliberais de novas maneiras de fazer bons negócios.
Muitas empresas de internet concentraram sua atividade na publicidade e, assim, ficaram à mercê das tendências daquele setor – a personalização é a mais importante delas. Os anúncios online eram ajustados aos interesses de um dado usuário. Quanto mais o website conhece do usuário, mais eficaz é a promoção feita.
Como fim lógico dessa crescente personalização, cada usuário acabou tendo sua própria experiência online. Algo muito distante da visão inicial da internet como espaço coletivo. Em vez de internet, podemos começar a falar de um bilhão de “internets”: uma para cada usuário.
O poder sonhado se revelou uma ilusão. Os usuários da rede podem achar que desfrutam de livre acesso a serviços interessantes, mas estão pagando por esse acesso com sua privacidade. Grande parte do nosso compartilhamento de informações parece banal. Mas quando a informação é analisada com dados de outros serviços similares, ela pode gerar insights sobre indivíduos e grupos profundamente interessantes para marqueteiros e agências de inteligência.
Se sabem o que você come, podem também descobrir o que você lê; a partir daí, não é difícil conhecer suas preferências políticas e manipulá-lo. Estamos rumando a um futuro onde a privacidade vai virar um bem caro. Já há empresas, criadas recentemente, oferecendo privacidade mediante a cobrança de “uma taxa”.
Embora estejam nos delegando poder como consumidores, estamos perdendo essa capacidade como cidadãos, algo que os profetas digitais que pregavam a libertação por meio do espaço virtual não previram. As “reuniões comunitárias eletrônicas a nível de governo ” jamais decolaram. Quando o presidente Barack Obama tentou realizar uma logo após ser eleito, a pergunta mais frequente foi sobre a legalização da maconha. A internet não substitui a política – ela a aumenta e amplifica.
Talvez a incompatibilidade entre ideais digitais e a realidade possa ser atribuída à ingenuidade dos pontífices da tecnologia. Mas o problema real é que os primeiros visionários da internet jamais conseguiram traduzir suas aspirações de um espaço virtual compartilhado num conjunto de princípios concretos com base nos quais seriam criadas regras de uso da internet.
Quem tira o lixo? Algumas questões fundamentais envolvendo os aspectos coletivos da internet foram abandonadas. Quem se encarrega de tirar o lixo? Ou seja, quem deve lidar com os spams e fraudes online? Quem é o responsável pela preservação da memória histórica, ou seja, os efêmeros tweets e postagens de blogs que tendem a desaparecer no vazio digital? Quem vai proteger a dignidade dos cidadãos? Quem vai se encarregar da proteção da privacidade contra a difamação e a calúnia?
Os fundadores da internet tinham intenções louváveis. A visão utópica da internet como um espaço compartilhado de modo a aumentar ao máximo o bem-estar coletivo é um bom modelo para se trabalhar. Mas eles foram atraídos pela possibilidade de “grandes lucros” e viram-se apanhados na armadilha do discurso da “autonomia e poder pessoal”, simplesmente um ardil ideológico para ocultar os interesses das grandes companhias e reduzir a intervenção do governo.
A situação como está hoje não é irreversível. Ainda temos alguma privacidade e as empresas ainda podem ser controladas por meio de regulamentos inteligentes. Mas precisamos parar de pensar na internet em primeiro lugar como um mercado e depois como um fórum público. O que falta, há muito tempo, é um reexame fundamental da primazia das dimensões cívicas da internet. Está na hora de decidir se o que queremos da internet é que seja um shopping privado ou uma praça pública. /TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
*Evgeny Morozov é jornalista e autor do livro The Net Delusion: The Dark Side of Internet Freedom (A Desilusão da Rede: O Lado Obscuro da Liberdade na Internet).