sexta-feira, 7 de março de 2025

Mulheres superam estereótipo de 'boazinhas' à frente de ONGs de sucesso, FSP

 Gabriela Caseff

São Paulo

Fundadoras de algumas das ONGs mais importantes do Brasil enumeram três desafios que enfrentam por simplesmente serem mulheres: ter acesso ao mesmo dinheiro que homens têm, superar o medo de não serem suficientes e equilibrar carreira com cuidado da família.

Lidam ainda com um "bônus" que existe no terceiro setor: o estereótipo de "boazinhas".

Uma mulher está sentada em um parque, sorrindo para a câmera. Ela usa uma blusa branca com estampas de morangos e tem cabelo solto. Ao fundo, há casas com telhados de barro e árvores, criando um ambiente natural e tranquilo.
Carolina Videira é fundadora da Turma do Jiló, ONG que defende educação inclusiva para pessoas com deficiência - Renato Stockler

"Tive que me provar capaz de ser uma profissional respeitada e não alguém que precisava ocupar seu tempo com um capricho", diz Suzana Padua, 74, que fundou o IPÊ (Instituto de Pesquisas Ecológicas) em 1992 e é referência internacional em educação ambiental.

Para isso, conta ela, mergulhou em formação diferenciada. "Eu tinha um mestrado pela Universidade da Flórida que não era suficiente para conquistar a credibilidade dos demais colegas quando defendia meus pontos de vista. Foram anos e anos de investimento."

O IPÊ tem hoje 70% de mulheres ocupando diversos cargos e duas mulheres na presidência, incluindo Padua, mãe e avó de três.

A imagem mostra uma mulher com óculos e um chapéu claro, que possui o logotipo de uma organização. Ela está em um ambiente natural, com árvores ao fundo. A mulher parece estar falando ou explicando algo, com uma expressão séria.
Suzana Padua fundou o IPÊ (Instituto de Pesquisas Ecológicas) há 40 anos em torno de programa de conservação do mico-leão-preto - Bruno Santos/Folhapress

"No Brasil e no mundo, mulheres são culturalmente reconhecidas como menos competentes do que homens, mesmo sendo mais numerosas em universidades e obtendo notas superiores", avalia ela.

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Ana Fontes, 58, está à frente da maior plataforma de empoderamento feminino do país, a Rede Mulher Empreendedora, além de fazer parte de diversas organizações dentro e fora do país. A alagoana detesta o carimbo de ‘mulher guerreira’.

"Não gosto do modelo de mulher maravilha. Esses estereótipos criam uma cobrança. Eu digo que sou uma mulher possível, porque é isso que dá com duas filhas, um marido e uma mãe de 82 anos. Uma mãe possível, uma esposa possível, uma irmã possível, uma filha possível", afirma ela.

O trabalho da Rede Mulher Empreendedora impactou a vida de 10 milhões de mulheres e se tornou um negócio social, que equilibra lucro e impacto na ponta.

"As pessoas me olham e pensam ‘ela está fazendo uma coisa legalzinha, uma coisa bacaninha, uma coisa com propósito’, como se isso não tivesse importância e relevância."

Para enfrentar esses estereótipos em ambientes dominados por homens, Carolina Videira, 46, fundadora da Turma do Jiló, buscou equilíbrio entre coragem e autocuidado.

Como, por exemplo, quando trabalhava na indústria farmacêutica, pouco antes de fundar a ONG, e sentia a pressão do machismo enquanto buscava aperfeiçoamento intelectual.

"Sofri assédios de todos os lados. Assim que voltei da licença-maternidade, foi colocado que eu deveria escolher que rumo tomar, se mãe ou gerente, cargo em que eu era única entre um monte de homens."

Dez anos depois de vestir o chapéu de empreendedora social, Videira acredita que é necessário desmistificar o empreendedorismo como algo exclusivamente masculino.

"O Brasil precisa investir em políticas públicas que promovam a equidade de gênero, oferecer acesso a crédito, fortalecer redes de apoio para mulheres e garantir maior representatividade feminina nos espaços de tomada de decisão", avalia.

De acordo com o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), 65% das pessoas empregadas em organizações da sociedade civil no Brasil são mulheres —e elas estão em 43% dos cargos de alta gestão nessas entidades, segundo o Idis (Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social).

"Boa parte das iniciativas de impacto são lideradas por mulheres. O ponto é que elas recebem menos dinheiro do que homens nessa mesma posição", diz Ana Fontes.

Mesma avaliação de Alcione Albanesi, 62, idealizadora da ONG Amigos do Bem, que atua no sertão nordestino desde 1993.

"Existem muitas mulheres que, de forma silenciosa e genuína, desenvolvem ações de impacto no país. Infelizmente, várias dessas iniciativas não se desenvolvem por falta de recursos e de apoio público e privado", afirma ela, que tem quatro filhos.

A paulistana conta que trabalhava 15 horas por dia para dar conta dos projetos e que chegou a passar dez dias no sertão todos os meses. Mesmo assim, conseguiu dedicar tempo de qualidade a suas crianças.

"Nosso trabalho tem uma operação complexa que acontece a 3.000 km de São Paulo, onde tudo começa. Para chegar até aqui foi preciso abdicar do conforto do lar e de celebrações em família. O tempo é um só, mas nunca me arrependi", diz Albanesi.

No Carnaval do Oscar, a ocupação dos espaços públicos e o temor pelo futuro da cidade, Mauro Calliari - FSP

 É bonito andar pela cidade durante o Carnaval. Na calçada da av. Paulista, vejo mais de dez pessoas com suas máscaras de Fernanda Torres. No metrô, as escadas rolantes se colorem com adereços, fantasias e risadas. Nos bloquinhos, se juntam grupos de jovens, famílias com crianças e foliões solitários.

A beleza das ruas ganha mais brilho quando se lembra que São Paulo era o refúgio silencioso para quem não gostava de Carnaval até bem pouco tempo. Em 2016, escrevi o livro "Espaço Público e Urbanidade em São Paulo", sobre a retomada das ruas a partir de meados da década de 2000. Havia esperança de que a ocupação do espaço público trouxesse mais vitalidade econômica, mais segurança e mais fruição e até um aprendizado em resolução de conflitos.

A imagem mostra uma grande multidão reunida em uma rua urbana, cercada por prédios altos. No centro, uma pessoa se destaca, levantando os braços e interagindo com a multidão. A atmosfera parece festiva, com muitas pessoas sorrindo e se divertindo. A iluminação é natural, sugerindo que a cena ocorre durante o dia.
Foliões participam do bloco Espetacular Charanga do França, que abre o pré-Carnaval de São Paulo - Rafaela Araújo - 12.jan.2025/Folhapress

De lá para cá, andamos de lado. O transporte individual aumentou e o coletivo perdeu espaço. Enquanto os foliões descem do Uber para beber a primeira cerveja do dia, o garçom que os serve pegou o ônibus às 6h da manhã. A pandemia bateu forte no comércio de rua. O trânsito está mais agressivo. O número de moradores em situação de rua explodiu. O Plano Diretor se tornou um alvará para construções sem relação com a calçada. A insegurança e o barulho levam paulistanos a quererem se mudar da cidade.

No meio disso tudo, sobreviveu o desejo de ocupação da rua, do qual o Carnaval ainda é um eloquente manifesto, mas mesmo a festa carrega suas idiossincrasias e expõe nossos conflitos.

Um bloquinho é uma coisa. Já um mega bloco com milhares de pessoas traz um rastro de xixi, carros de som, vendedores de bebidas, bloqueios no trânsito, grades nos edifícios e até esquema especial de segurança. A imagem de policiais fantasiados de Chapolin Colorado prendendo ladrões de celular dentro dos blocos é surpreendente e icônica.

As ruas se abrem para as pessoas, mas praças e parques como o Ibirapuera, o Largo da Batata e a Roosevelt estão fechados com tapumes. O Anhangabaú é tão árido que nem os caros esguichos d'água salvam (se fossem usados de verdade).

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A Prefeitura, que no dia a dia deixa pedestres à míngua, no Carnaval vai à luta pelo patrocínio da Brahma, contrata 30 mil banheiros químicos, monta estratégias para o trânsito, negocia horários estendidos com o metrô e compra 2 milhões de garrafas de água. A distribuição de tanto plástico parece não ofender ninguém, mas a ação não esconde o fato de vivermos numa bolha de calor, onde não se plantam árvores e onde o futuro hídrico está ameaçado. Já li que, mesmo tendo chegado 34ºC, esse terá sido o Carnaval mais fresquinho do resto de nossas vidas.

Nos últimos anos, a escala da festa aumentou. Agora, temos também semanas de pré-Carnaval e o pós-Carnaval, num excesso dionisíaco explicável apenas pelo negócio vultoso que movimenta hotéis, bares e patrocinadores. Entre o calor, a alegria individual, a coordenação da gestão pública, o dinheiro dos entes privados e a ilegalidade, há toda uma miríade de interesses que vão entrar em conflito, se e quando o Carnaval acabar.

O novo normal não vai ser fácil para ninguém.

O monstro-de-gila, lagarto de digestão lenta que foi essencial na criação do Ozempic, FSP

 É uma pequena criatura, de pele brilhante e escamosa, que vagueia pelos desertos da América do Norte com passos lentos e que, indiretamente, serviu para promover uma revolução farmacológica.

Seu nome científico é Heloderma suspectum, mas a maioria das pessoas conhece este réptil como monstro-de-gila.

E embora sua mordida venenosa possa causar sérias complicações para um ser humano —em novembro de 2024, um homem morreu no Estado do Colorado, nos EUA, após ser mordido por seu monstro-de-gila de estimação—, este pequeno animal um tanto desajeitado está por trás de uma das descobertas médicas que mais prometem salvar vidas no futuro.

A imagem mostra um lagarto com uma pele escamosa, apresentando padrões de cores que variam entre o preto e o marrom. O lagarto está com a boca aberta, revelando a língua. O fundo é desfocado, sugerindo um ambiente natural.
Um hormônio presente no veneno do monstro-de-gila é a base da semaglutida, princípio ativo do Ozempic - Getty Images

Em seu veneno, pesquisadores descobriram uma enzima que inspiraria os cientistas a desenvolver medicamentos que aumentam a atividade do receptor GLP-1, que hoje são vendidos nas farmácias com os nomes Ozempic, Wegovy e Mounjaro —e prometem ser uma revolução no combate ao diabetes tipo 2 e à obesidade.

Assim como o monstro-de-gila foi a espécie-chave para o desenvolvimento desses medicamentos, o estudo do veneno de outros animais também já rendeu avanços importantes, como o desenvolvimento de medicamentos para controle da pressão arterial e anticoagulantes.

Mas, afinal, o que há de tão especial neste lagarto? E como é possível obter a partir de uma de suas toxinas, um dos medicamentos mais promissores das últimas décadas?

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O veneno do monstro

"As toxinas evoluem para desempenhar funções muito específicas, como se defender contra predadores ou incapacitar suas presas", explica à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, o professor Kini, que dedicou sua vida a explorar diferentes tipos de toxinas para encontrar usos alternativos para elas.

No caso do monstro-de-gila —uma das duas espécies de lagartos venenosos nativos da América do Norte— seu veneno evoluiu para imobilizar pequenas presas, devido à sua falta de agilidade.

O que os cientistas descobriram é que, além de ter um efeito sobre a presa, um hormônio presente no veneno do monstro-de-gila parecia ajudar o metabolismo do lagarto a desacelerar a tal ponto que ele é capaz de sobreviver por até um ano com apenas seis refeições, de acordo com a Universidade de Queensland, na Austrália.

Ao isolá-lo, os pesquisadores descobriram que esse hormônio, que chamaram de exendina-4, era muito semelhante ao GLP-1, uma substância que o ser humano produz naturalmente para regular os níveis de açúcar no sangue após as refeições.

No entanto, a exendina-4 é diferente do GLP-1 em uma característica fundamental: enquanto o GLP-1 humano deixa o corpo rapidamente por meio de mecanismos de excreção natural, a exendina-4 permanece por mais tempo no organismo, o que faz com que seu efeito na regulação da glicose seja mais duradouro.

Isso fornece a base para o desenvolvimento de medicamentos que atuam como agonistas do receptor de GLP-1.

De tóxico a terapêutico

A primeira grande aplicação prática da exendina-4 foi no desenvolvimento de um medicamento chamado Byetta (exenatida), especificamente para tratar diabetes tipo 2.

Esse tratamento ajuda a reduzir os níveis de glicose e, com pequenas modificações, lançou as bases para outros compostos mais resistentes e duradouros, como a semaglutida (princípio ativo do Ozempic e Wegovy).

"É impressionante como uma mudança em um ou dois aminoácidos pode fazer com que a molécula dure mais tempo na corrente sanguínea, mantendo ou até mesmo aumentando sua eficácia terapêutica", diz Kini à BBC News Mundo.

No caso da semaglutida, ele explicou, o que foi feito foi adicionar uma cadeia de ácidos graxos que a liga à albumina sérica —a proteína no sangue que ajuda a transportar hormônios, vitaminas e enzimas pelo corpo—, o que faz com que ela permaneça na circulação por mais tempo.

Kini afirma, no entanto, que a semaglutida não é o único caso em que as toxinas serviram de base para o desenvolvimento de um medicamento.

Imitando a natureza

Como destacou Kini, pesquisadores do mundo todo analisam venenos de diferentes espécies há décadas, revelando compostos que depois são transformados em medicamentos para uso em massa.

Segundo ele, "já na década de 1970, foi isolado um peptídeo do veneno da cobra brasileira Bothrops jararaca, que deu origem aos inibidores da ECA (enzima conversora da angiotensina)", medicamentos que hoje são essenciais para o controle da pressão arterial e da insuficiência cardíaca.

Com o tempo, foram sintetizados produtos como o captopril e o enalapril, que ainda são receitados para milhões de pacientes ao redor do mundo.

Os exemplos são muitos: desde caracóis marinhos, cujas neurotoxinas permitem tratar a dor crônica quando modificadas em laboratório, até sanguessugas medicinais, cujo anticoagulante natural deu origem a medicamentos que reduzem o risco de embolias.

O princípio é sempre o mesmo: "As toxinas evoluem para causar efeitos muito precisos no organismo de suas presas ou predadores. Se conseguirmos isolar e compreender esses mecanismos, podemos transformar o veneno em um aliado terapêutico", explica Kini.

O próprio Kini estuda o veneno de cobras e a saliva de mosquitos com o objetivo de desenvolver medicamentos que previnam danos ao coração após um ataque cardíaco e controlem problemas de diurese.

Em sua experiência, muitas destas toxinas apresentam pequenas variações em um ou dois aminoácidos que desencadeiam efeitos fisiológicos altamente específicos, sendo uma questão de isolá-las e modificá-las para criação de novas terapias.

Um futuro com toxinas

A experiência com o monstro-de-gila demonstra o potencial de combinar a biologia molecular, a farmacologia e o estudo detalhado de venenos.

Para Kini, o fato de um réptil relativamente lento e inofensivo à primeira vista —capaz de sobreviver com poucas refeições e portar um veneno estável—, ter fornecido a base para medicamentos revolucionários é uma amostra do que poderia ser encontrado em outras criaturas.

"Vivemos em uma era em que novas ferramentas nos permitem avançar mais rápido do que nunca. Ainda assim, o maior desafio costuma ser o financiamento: transformar uma descoberta de laboratório em um medicamento disponível comercialmente leva anos de ensaios clínicos e grandes investimentos", ele adverte.

No entanto, ele diz acreditar que os resultados mais do que justificam o esforço, especialmente considerando o profundo impacto de doenças como diabetes, obesidade e hipertensão.

"As próximas décadas podem nos reservar novas surpresas", diz Kini.

"Podemos encontrar compostos ainda mais eficazes no veneno de algum outro animal, ou criar versões sintéticas que ataquem doenças por novos ângulos."