quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Rui Tavares - Trump, o garoto mais forte do recreio, não está mais interessado em fingir, FSP

 Gostando ou odiando, todo mundo concorda que Donald Trump faz as coisas de maneira diferente. A partir daí a doutrina se divide. Para uns, aquilo que parece absurdo só pode ser explicado pelo gênio. Eu estou no campo oposto: ao impor tarifas punitivas sobre os seus principais vizinhos e aliados, por exemplo, Trump não joga xadrez tridimensional. Aquilo que parece um absurdo e um disparate é, simplesmente, um disparate e um absurdo.

Não é por isso, porém, a decisão do presidente dos Estados Unidos deixa de ser reveladora. É que existe em Trump um paradoxo: ele reforça pelos atos aquilo que nega pela retórica.

O presidente dos EUA, Donald Trump, conversa com a imprensa ao lado do premiê de Israel, Binyamin Netanyahu, na Casa Branca, em Washington - Leah Millis - 4.fev.25/Reuters

Exemplo número um: Trump é um conhecido negacionista das mudanças climáticas; no entanto, as suas ambições de expansão territorial sobre a Groenlândia só fazem sentido com as mudanças climáticas, porque só aí o degelo permitirá a extração dos minérios de que dispõe a ilha e o acesso às novas rotas no Ártico. Trump não rejeita as medidas de combate às mudanças climáticas porque elas são desnecessárias, mas porque deseja acelerar as mudanças climáticas e permitir o acesso a novas riquezas e oportunidades.

Exemplo maior, posto a nu nesta semana: Trump diz que a melhor era dos Estados Unidos está para chegar e que vai "tornar a América grandiosa novamente". Mas os primeiros atos de sua Presidência mostram que o seu pressuposto é exatamente o contrário: Trump aceita a ideia de um mundo multipolar e retira os EUA do papel central de garantidor do sistema internacional e da Pax Americana de que têm beneficiado há 75 anos.

Só isso permite explicar por que motivo as tarifas com que ameaçou Canadá e México eram mais draconianas do que aquelas com as quais ameaçou a China —e também porque trata os ditadores Nicolás Maduro (Venezuela) e Kim Jong-un (Coreia do Norte) com mais deferência do que a arrogância e desdém com que se refere ao primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau.

A razão é simples: quando se é árbitro de um determinado sistema e há benefícios por esse papel central, há coisas que se pode fazer em interesse próprio (por isso a atuação dos Estados Unidos nunca foi pura nem desinteressada) mas é essencial saber manter as aparências. Mas quando a superpotência age despudoradamente em interesse próprio e trata com mais brutalidade os amigos do que os inimigos, o jogo acabou.

Toda a gente percebe que o garoto mais forte do recreio não está mais interessado em fingir; ele vai tomar o que quiser, quando quiser —porque pode. A partir de agora, os únicos limites da ação predadora de Trump não são as regras do sistema internacional, mas o poder material dos seus concorrentes como Xi Jinping (China) e Vladimir Putin (Rússia). Se essas potências chegarem a um acordo sobre as suas esferas de influência (eu quero a Groenlândia, tu queres a Crimeia e ele quer Taiwan), tudo bem.

Acontece que os restantes países do mundo —incluindo os da Europa e da América Latina— ainda precisam de uma ordem internacional baseada em regras, desde que regras melhores, mais consistentes e menos hipócritas do que as que tivemos até agora. O que faz sentido para nós não é aceitar viver sob uma área de influência à escolha, mas recriar o melhor do sistema internacional, sem potência hegemônica.


Paradoxo de Abilene: o problema das decisões em grupo, FSP

 Numa tarde quente em Coleman, Texas, a família está jogando dominó, quando o sogro sugere irem jantar em Abilene, a 80 km. A filha diz que é ótima ideia. O genro, apesar de achar a viagem desconfortável, vai com o grupo: "Sim, só espero que a tua mãe tope". E a sogra: "Claro, há muito tempo não vou a Abilene".

A viagem é quente, poeirenta e longa. E o jantar é igualmente ruim. Voltam a casa quatro horas depois, exaustos. Um deles diz, desonestamente: "Foi ótimo, não foi?". Mas a sogra confessa que preferia ter ficado em casa, só foi porque os outros três estavam a fim. O genro: "Eu não, eu só concordei para agradar a todos". A filha: "Eu não estava louca de querer sair naquele calor, só topei para deixar vocês felizes". E o sogro revela que só propôs a ida por achar que os outros estavam entediados.

O grupo senta-se, perplexo com o ocorrido: todos teriam preferido ficar em casa e, no entanto, decidiram coletivamente fazer uma viagem que ninguém queria.

Pessoas participam de um jantar familiar no Distrito de Hanjiang, em Yangzhou, na província de Jiangsu, leste da China
Muitas vezes, uma decisão em conjunto pode contrariar a preferência da maioria ou totalidade dos seus membros; na foto, pessoas participam de um jantar familiar no Distrito de Hanjiang, em Yangzhou, na província de Jiangsu, leste da China - Qi Liguang - 9.fev.2024/Xinhua

Esta histórinha apareceu no artigo "Paradoxo de Abilene: a gestão do acordo", publicado em 1974 pelo especialista em gestão norte-americano Jerry Harvey (n. 1935). Ela ilustra um tipo de dinâmica comum em decisões coletivas, que leva o conjunto a fazer escolhas que contrariam a preferência da maioria ou totalidade dos seus membros.

Uma característica do paradoxo de Abilene, como este fenômeno ficou conhecido, é a concordância no grupo de que a situação atual não é satisfatória e algo deve ser feito (mas os membros podem achar as alternativas ainda piores). Outra característica é a falha de comunicação, que leva os membros do grupo a expressarem como suas preferências que, de fato, eles acreditam ser dos demais. Finalmente, o paradoxo também se caracteriza pela vocalização do consenso coletivo, construído a partir das interpretações errôneas dos sinais dados por cada um dos membros.

Este fenômeno ocorre frequentemente em processos de decisão em diferentes tipos de instituições, particularmente aquelas que carecem de diversidade —grupos humanos homogêneos são mais conformistas— ou que não dispõem de uma cultura interna de debate e resolução de conflitos. Um exemplo citado com frequência é o processo que conduziu ao trágico desastre do vaivém espacial Challenger em 1986, em que diversos especialistas da Nasa adotaram decisões que lhes pareciam inadequadas, apenas "para não chacoalhar o barco".

Por vezes o paradoxo de Abilene é confundido com o fenômeno do "pensamento de grupo" (em inglês: "groupthinking"), em que o coletivo toma decisões que não seriam adotadas por seus membros e, portanto, causam insatisfação. Mas são fenômenos distintos: no pensamento de grupo os indivíduos se auto-iludem, permitindo que suas convicções sejam moldadas pela coletividade, enquanto que, no paradoxo de Abilene, os indivíduos fracassam em perceber corretamente as preferências dos demais.

Mas o antídoto para os dois fenômenos é parecido: promover comunicação interna aberta, encorajar a diversidade de opiniões e criar uma cultura de debate em que todos se sintam livres para expressar os seus pontos de vista.


Deirdre Nansen McCloskey - O que sai da boca de um não economista, FSP

 Eu já disse a vocês várias vezes por que não devem acreditar em tudo o que sai da boca de um economista. Frequentemente é um erro do ponto de vista científico —ou ético, ou ambos. Ele apresenta seus erros com grande confiança e demonstra alta competência técnica.

A maioria dos economistas que fazem estudos estatísticos usa testes técnicos de "significância". Mas esses testes são conhecidos há um século como bobagens. A maioria dos economistas que lidam com inflação, desemprego e coisas assim acredita que o banco central dos EUA controla as taxas de juros.

Mas o Fed está num grande mundo de oferta e demanda por fundos, e o controle que ele supostamente tem é exercido por meio de um instrumento extremamente pequeno e fraco chamado taxa de fundos federal. A maioria dos economistas que lidam com mercados e indústrias acredita que a economia desenvolve monopólios importantes e externalidades e consumidores ignorantes e que, portanto, o Estado deve intervir. Mas essencialmente não há evidências disso e das soluções estatais.

O que o leitor deve fazer? Ah, escute-me.

Na seção de uísques norte-americanos de supermercado em Vancouver, placa sugere a consumidores que comprem produtos canadenses - Chris Helgren/Reuters

O que sai da boca de um não economista geralmente está mais errado em termos científicos ou éticos. Donald Trump, como muitas pessoas, de esquerda ou de direita, acredita que entende a economia melhor que os economistas. Por exemplo: ele acredita que o comércio é uma questão de poder e que o lado que vender mais é o vencedor. Portanto, vê o comércio como um instrumento de coerção que países poderosos podem usar contra os menos poderosos.

Trump impôs uma tarifa de "emergência" de 25% sobre as importações do México para coagir o governo mexicano a impedir uma inundação imaginária de imigrantes nos EUA. O México é o segundo maior parceiro comercial dos EUA. Trump quer que o Canadá se torne um estado dos EUA. Talvez não saiba que os EUA tentaram isso em 1812, e que, de todo modo, os canadenses não querem ser estadunidenses. Por alguma razão, ele não propôs que o México também se torne um estado. Pode-se perguntar por quê.

A maioria dos economistas sabe que o comércio entre você e Pedro, ou entre Brasil e EUA, beneficia ambos os lados. Sim, alguns economistas de esquerda, e muitos dos marxistas ou companheiros de viagem em departamentos de economia no Brasil, ainda aderem à linha do argentino Raul Prebisch (1901-1986). Ele argumentou que países em desenvolvimento precisam ter cuidado para não cair na "dependência" de acordos comerciais ruins com países ricos e industrializados. Mas nem mesmo seus seguidores negam que o comércio pode ser bom.

Eles dizem que às vezes as importações são "supérfluas" para a industrialização que o Estado deve incentivar. Mas não adotam a visão mercantilista seguida por Trump e pela maioria dos não economistas de que exportar é o que há de bom no comércio.

Eles não afirmam que todas as importações são ruins, ou que o comércio é só um exercício de poder de um único homem. Dizem que às vezes é um resultado triste, mas não intencional, das "estruturas".
O que fazer? Ah, escute um economista. Qual? Adivinhe.

Tradução Luiz Roberto M. Gonçalves