domingo, 3 de março de 2024

Muniz Sodré - Semeando fogo, FSP

 "Deus conta as lágrimas das mulheres", registra o Talmude, belo livro da tradição judaica. A espessura enigmática da frase suscita várias interpretações, mas o sentido conflui para o pensamento da sensibilidade feminina como acréscimo de sabedoria e advertência para que se redobre o respeito à geração da espécie humana. Num poema sobre a tragédia nuclear ("A Rosa de Hiroshima"), Vinícius de Moraes exorta a que "pensem nas mulheres, rotas alteradas", assim como "pensem nas crianças, mudas telepáticas".

Imagem divulgada pelo Exército de Israel mostra palestinos se aglomerando ao redor de caminhões de ajuda humanitária em Gaza
Imagem divulgada pelo Exército de Israel mostra palestinos se aglomerando ao redor de caminhões de ajuda humanitária em Gaza - Aline Manoukian - 29.fev.2024/AFP/Exército de Israel

Os textos, de procedências tão diversas, vêm aos olhos junto com as notícias tenebrosas de Gaza, onde uma força militar poderosa faz terra arrasada de residências, edifícios e hospitais, até mesmo de filas de ajuda humanitária. As maiores vítimas, milhares, são mulheres e seus filhos, corpos despedaçados ou estripados como nas horripilantes incitações de divina vingança a Davi, o senhor da espada, no Velho Testamento. As crianças que sobrevivem aos escombros tornam-se mudas, sem lágrimas, mas telepáticas no sofrimento.

Isso é holocausto? Não. O arquiconservador presidente Reagan se confundiu num encontro com Menaghen Begin, assim como o presidente Lula. Um conselheiro oportuno poderia tê-lo avisado de que o "schibboleth" (palavra-chave hebraica para conduta no Antigo Testamento) do governante é a cautela da língua. Em atual encenação teatral na Noruega, "Hamlet" é infectado pelos corpos apodrecidos dos antecessores. O Holocausto, capítulo único, foi uma infecção do corpo nacional da Alemanha pela degeneração nazifascista. As vítimas foram judeus, ciganos, gays e deficientes.

Mas, assim como Lenin podia sugerir uma separação interna da política (há boa e má), é possível pontuar quando a pessoa do político se contrapõe ao cargo. Em Adis Adeba, Lula reprovou tanto a desproporção dos ataques israelenses quanto o terrorismo do Hamas, que não poupou mulheres e crianças. Depois, coração na boca, incorreu na comparação imprópria. Não ultrapassou limite, e sim o limiar ambíguo da linguagem de quem improvisa em história.

O presidente Lula discursa em cúpula da União Africana, na Etiópia
O presidente Lula discursa em cúpula da União Africana, na Etiópia - Ricardo Stuckert - 17.fev.24/Divulgação Presidência da República via AFP

Mas Lula agiu no interior da política que parte de onde se está, da vida e do pensamento das pessoas. Política como prática de pensar desde o senso comum e não do cercadinho da mídia corporativa ou do vácuo representativo do parlamento. Não a cega "Realpolitik", pois a degeneração fascista continua infectando e fazendo escola. Por coerência moral, entretanto, deverá indignar-se com os assassinatos de Putin, com a migração forçada na Venezuela, com a desfaçatez ditatorial de Ortega e, claro, com a carnificina de Netanyahu. Holocausto não, certo, infanticídio massivo: esqueceram o Talmude. Já o cristão Salmo 104, que compara fiéis a "chamas de fogo", isto é, a intensidades emocionais, lembra a fagulha do deslize retórico de Lula

Ruy Castro- Títulos rutilantes FSP

 2.mar.2024 às 8h00

Outro dia, em conversa, citei um verso não me lembro de quem a respeito de não me lembro o quê, e um amigo, desses que vivem às vésperas do Apocalipse, me repreendeu: "Poxa, poesia numa hora dessas?". De fato ---vacilei. Com toda a melhora dos últimos tempos, com uma tentativa de golpe de estado sendo investigada pelos parâmetros de uma democracia, quem garante que os agentes das trevas tenham sido derrotados? E, no caso, por que não usar a poesia como lanterna? Então me lembrei de como muitos livros dos nossos poetas, com as imagens luminosas de seus títulos, já nos ajudaram a levar a vida.

Alvares de Azevedo escreveu a "Lira dos Vinte Anos" (1852), como se adivinhasse que morreria com esta idade. Outros viveram mais para celebrar: Casimiro de Abreu, com "Primaveras" (59); Castro Alves, com "Espumas Flutuantes" (70); Machado de Assis, com "Falenas" (70) —falenas são mariposas, que nascem lagartas e se transformam em belos seres alados. Augusto dos Anjos, com "Eu" (1912), de modo a não restar a menor dúvida; e Olavo Bilac, com "Tarde" (19), quando, para ele, já era quase noite.

Adoro "Mulher Nua" (22) e "Meu Glorioso Pecado" (28), de Gilka Machado, "Gritos Bárbaros" (25), de Moacyr de Almeida, e "Jogos Pueris" (26), de Ronald de Carvalho. "La Divina Increnca" (24), de Juó Bananere, e "Caldo Berde" (30), de Furnandes Albaralhão.

E vibro com "Carnaval" (19) e "Libertinagem" (30), de Manuel Bandeira; "Losango Cáqui" (26), de Mário de Andrade (que já ouvi citado como "Losango Caqui", referente à fruta); "A Túnica Inconsútil" (38), de Jorge de Lima; "Vaga Música" (42), de Cecília Meirelles; "Fazendeiro do Ar" (54), de Carlos Drummond; "A Luta Corporal" (54), de Ferreira Gullar; "Uma Faca Só Lâmina" (56) e "A Educação pela Pedra" (66), de João Cabral. Títulos fortes, não?

E, por favor, não me diga que faltou este ou aquele. Faça a sua lista.

Bruno Boghossian- Câmara prepara uma blindagem dos tempos do imperador, FSP

 Não são muitos os admiradores de Carlos Jordy no alto clero da Câmara. O deputado é visto como um político barulhento e um agitador do golpe bolsonarista. Nenhuma restrição impediu que os chefes da Casa explorassem uma operação contra o parlamentar em benefício próprio.

PEC da blindagem ganhou corpo depois que a PF vasculhou o gabinete de Jordy em busca de provas de seu envolvimento com atos golpistas. Líderes de vários partidos trabalham para votar uma proposta que, na prática, poderia deixar deputados e senadores fora do alcance de qualquer investigação.

A operação contra o parlamentar foi baseada em migalhas. Jordy trocava mensagens com um sujeito que pretendia fechar estradas para causar o tumulto que seria a faísca do golpe. O deputado era chamado de "meu líder". Se a investigação pareceu amadora, a reação dos políticos mostrou onde estão os profissionais.

O texto em discussão na Câmara proíbe operações de busca contra parlamentares nas dependências do Congresso. A medida protegeria a honra de políticos que não devem nada. Os demais teriam um santuário para esconder o que quisessem.

Polícia Federal faz operação de busca e apreensão no gabinete do deputado Carlos Jordy (PL-RJ), em janeiro - Gabriela Biló/Folhapress

O projeto ainda determina que apurações contra deputados e senadores só podem ser abertas com autorização do Congresso. Considerando o espírito de corpo da turma, o problema estaria cortado pela raiz.

Também está na proposta o fim do foro especial —que tiraria os processos do STF e os mandaria para tribunais dos estados, onde os políticos costumam ter grande influência. Para completar, deputados e senadores teriam acesso a trechos sigilosos de investigações em andamento.

Constituição de 1824 dava uma condição "inviolável e sagrada" ao imperador, que não estaria "sujeito a responsabilidade alguma". Depois de distorcer uma discussão séria sobre invasão de competências pelo STF, os deputados e senadores já podem escolher um título de nobreza.