Uma jornalista portuguesa fez uma pergunta a Jair Bolsonaro durante a campanha. Ele respondeu com sua simpatia e elegância habituais: não falo espanhol nem portunhol.
Não tem problema, presidente. Nos próximos anos tenho a certeza de que o senhor terá bastante tempo para fazer um curso de espanhol ou portunhol nas excelentes escolas de Espanha ou Portunhal.
Aliás, por falar em estudo, por que não alargar horizontes e mergulhar a fundo nas virtudes da democracia liberal?
A direita reacionária, que apareceu no mundo sem disfarces desde a vitória de Donald Trump nos Estados Unidos, acha que esse produto deveria ser suplantado por um artigo novo. Exatamente como sucedeu na Europa depois de 1918 e que deu resultados tão encantadores para a humanidade.
Havia bons modelos: a China, por exemplo, conseguia conciliar crescimento econômico e ordem interna. Não fosse seu marxismo anacrônico, seria peça pronta a usar.
A Rússia, do másculo Vladimir, era outro modelo de nacionalismo e cristandade contra a devassidão do Ocidente.
Em qualquer dos casos, a mensagem era óbvia: há alternativas decentes a essa coisa decadente que dá pelo nome de democracia liberal.
Mas há mesmo?
Francis Fukuyama, o mais insultado e ridicularizado cientista político das últimas décadas, escreveu em 1989 que a história chegara ao fim.
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Lógico, Fukuyama não disse exatamente isso, exceto para quem não o leu com atenção. O que ele pretendeu questionar era se existia algum sistema de governo que fosse superior à democracia liberal na sua capacidade de respeitar direitos e liberdades.
Em 1989, Fukuyama respondia que não. E, em 2022, continua respondendo que não: em artigo para a revista Atlantic, o autor descarta as fantasias pró-russas ou pró-chinesas.
Começando por Putin, como é patética e criminosa essa guerra na Ucrânia! Em nome de concepção imperialista de Estado, o ditador inicia invasão às cegas e provoca o êxodo de 700 mil compatriotas.
Acossado pelos seus fracassos, opta pelo terrorismo contra civis ucranianos e rebenta com todos os tabus nucleares, ameaçando diretamente o mundo com o uso de armas de destruição maciça. Que admirável líder!
A China não está em melhor estado, apesar das aparências. Perseguindo a mesma concepção de poder total, Xi Jinping enterra a tradição do PCC e consegue um novo mandato de cinco anos para, suspeita minha, tratar da invasão de Taiwan.
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Enquanto esse dia não chega, Xi vai fechando cidades inteiras para esmagar a Covid-19 —as vacinas chinesas foram um flop—, ao mesmo tempo em que aumenta o controle estatal sobre a economia privada —o verdadeiro motor da prosperidade desde Deng Xiaoping. Outro gênio!
Um e outro, argumenta Fukuyama, são vítimas das fraquezas dos modelos autoritários: excessiva concentração de poder nas mãos de um só homem e ausência de debate crítico sobre as opções de governo.
A rigidez do modelo autoritário é, no fundo, seu calcanhar de Aquiles. Como se vê na Venezuela arruinada ou no Irã dos aiatolás, onde as mulheres são mortas por não usarem um farrapo qualquer sobre os cabelos. E como se poderá ver nos Estados Unidos se o trumpismo regressar nas eleições intercalares de novembro e nas presidenciais de 2024.
Concordo com Fukuyama, embora seja menos otimista do que ele: não tenho dúvidas sobre a superioridade das democracias sobre as alternativas rivais. Como ele afirma, é exatamente por isso que não vemos fluxos migratórios para a Venezuela ou para a Rússia. As pessoas sabem que viver em liberdade é preferível a viver em ditadura.
Mas também sei que a história da democracia tem vagas, como diria o saudoso Samuel Huntington, e que ainda é cedo para dizer se o mundo vai repetir o florescimento democrático de 1820, 1945 ou 1974.
O mesmo Huntington relembrava que existem condições para que isso aconteça: adesão aos valores democráticos pela elite e pelo povo; crescimento econômico; diminuição da pobreza, da desigualdade e dos correspondentes conflitos sociais; menos polarização; integração das preocupações "populistas" no discurso e na prática dos governos.
É esse o caderno de encargos do novo governo brasileiro para que a democracia ganhe raízes ainda mais fortes no país.
Se isso não acontecer, a história não terá chegado ao fim. Em 2026, teremos de volta um velho conhecido nosso, ou alguém por ele, falando na perfeição espanhol ou portunhol.