sexta-feira, 4 de junho de 2021

CPI da Covid é retrato do deboche do Brasil de hoje, diz Zuenir Ventura, aos 90 anos, FSP

Úrsula Passos

SÃO PAULO

Prestes a fazer 90 anos, Zuenir Ventura se contenta com o terraço de seu apartamento no Rio de Janeiro para suas caminhadas diárias. “Se tive alguma ideia, foi andando no calçadão”, diz ele, sobre seus passeios antes da pandemia.


Exercícios frequentes e alimentação saudável são os ingredientes para chegar aos cem, segundo um livro que tem em sua cabeceira. O jornalista, escritor e imortal da Academia Brasileira de Letras faz aniversário nesta terça-feira e se diz dividido.


Não tem do que reclamar no aspecto pessoal, está melhor agora do que na juventude, mas não pode dizer que é feliz. “Não se pode ser totalmente feliz num país que é hoje um cemitério.”


retrato de homem calvo de cabelos brancos de lado com a cabeça levemente inclinada para baixo, ele veste camisa branca mas só vemos até seus ombros

O jornalista Zuenir Ventura, no Rio de Janeiro, em dezembro de 2017 - Daryan Dornelles/Folhapress

Ele acaba de lançar uma edição ampliada de “Minhas Histórias dos Outros”, pela Objetiva, no qual escreve sobre personalidades com as quais conviveu, como Manuel Bandeira, ainda na faculdade, e narra sua relação com Genésio Ferreira da Silva, a testemunha do assassinato de Chico Mendes que ele acolheu em sua casa dos 13 aos 21 anos depois de o conhecer durante a cobertura do caso, no Acre.


Em entrevista por telefone, Zuenir Ventura fala sobre a defesa da floresta hoje, a CPI da pandemia, velhice e 1968, o ano utópico ao qual ele dedicou seu já clássico “1968: O Ano que não Terminou”.





O senhor tem acompanhado a CPI da pandemia? O que tem achado?


Sim. A CPI é um retrato dos tempos de hoje. Eu vivi os tempos dourados, de Juscelino, rebeldes, os anos de chumbo e agora são os anos descarados, do cinismo e do deboche. Não por acaso está tendo uma grande audiência.


Na ditadura, você tinha a hipocrisia, e agora você tem o cinismo. Debocha-se da saúde, da vida. A CPI é o retrato desta época em que se mente tranquilamente.


É uma época muito difícil. Estamos vivendo um acúmulo de crises –ética, econômica, na saúde.


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Zuenir Ventura completa 90 anos


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É possível ver um lado positivo deste momento?


Pessoalmente, não posso reclamar da vida. Vou fazer 90 anos feliz, sem doença, cercado de amigos, de netos, de uma família maravilhosa. Mas não se pode ser totalmente feliz num país que é hoje um cemitério.


Você abre o jornal e só tem acréscimo de morte. Aqui no Rio são mais de 50 mil cadáveres. No plano pessoal, não tenho do que reclamar, mas não posso beijar, não posso abraçar. Não vejo nada positivo, a não ser a solidariedade, as pessoas fazendo doações. Esses gestos me dão, eu não digo alegria, mas um conforto.


Não se pode dizer “ótimo, maravilha, estou salvo”. Estou perdendo amigos, pessoas conhecidas. É um momento distópico, para falar o mínimo.


Como o senhor chega aos 90 anos?


Estou dividido. Sou mais feliz na velhice do que era na juventude. Eu era muito feio, magro, pobre, inseguro, não arranjava namorada.


Todos estão deprimidos, eu também. Estou vivendo uma contradição. Estou feliz, mas ninguém pode estar completamente feliz agora. Passei por várias crises, por vários momentos difíceis, suicídio de presidente, renúncia, deposição, fui preso na ditadura —não fui torturado, mas amigos foram.


Mas estamos vivendo todas as crises num momento só. Durante a ditadura, o Chico Buarque cantava que “amanhã vai ser outro dia”, mas hoje não se sabe quando vai ser outro dia, nem se vai ser. Esse vírus é traiçoeiro. E olha que sou acusado de ser otimista pelos meus amigos. O brasileiro é um ser esperançoso. Eu espero, torço. Esperança a gente tem; é a última que morre, citando o lugar-comum.


O ministro da Economia reclama que todos querem chegar aos cem anos. A alternativa é não chegar. Para os economistas e tecnocratas, a velhice é um peso morto, como se não servíssemos para nada. Somos imprestáveis.


O problema da velhice não é a idade, é a saúde. Sem saúde, você é infeliz até aos 20 anos. Não se pode estigmatizar a velhice, depende muito do estado em que se chega. É mais fácil elogiar a primavera do que o outono, mas vejo muita beleza no pôr-do-sol. Quando se está com a vista boa, né?


O senhor cobriu extensivamente o caso Chico Mendes. Mais de 30 anos depois, como avalia a causa da defesa da floresta?


Regredimos. Um dos dramas deste governo é esse ministério [do Meio Ambiente]. Para mim, não é surpresa. Na primeira entrevista que vi com ele [Ricardo Salles], ele dizia que Chico Mendes não tinha a menor importância.


O Chico inscreveu na agenda planetária a importância da Amazônia, e morreu por ela. Mas ele [Salles] está ali porque o presidente acha que isso é uma frescura. Se ele não for punido pela Justiça, ele não vai ser pelo governo, porque ele representa a vontade do presidente.


A cada momento se descobre mais derrubada da floresta, os números se superam. A situação é péssima. Não mataram ninguém como Chico Mendes até agora, mas a situação não melhorou.


Que ideias restam de 1968?


O ano de 1968 deixou dois legados que eu exalto, o da paixão pela causa pública e a ética. O movimento foi planetário, mas a geração brasileira foi a que mais sofreu. Uma geração muito especial. Eles tinham uma certa prepotência, achavam que quem sabe faz a hora, não espera acontecer. E a história não é feita com a sua vontade.


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Ditadura no mapa


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E como avalia a geração jovem de hoje?


Antes havia “a” geração; hoje cada grupo é uma geração. A geração da internet é uma coisa, a geração da favela é outra. A sociedade é muito segmentada. O jovem da favela é muito diferente em relação às dificuldades, ao estudo, ao trabalho, do jovem da zona sul. Temos uma cidade, o Rio de Janeiro, que é uma metonímia do país, em que há uma divisão social muito grande.


A distância entre as classes sociais aumentou. Não melhorou a cidade partida [título do livro de Zuenir de 1994]. E com um agravante, a milícia, que foi celebrada de início porque achavam que acabaria com a violência, com o tráfico. A milícia hoje está infiltrada em todas as instâncias do poder.


Há semelhanças entre a chacina de Vigário Geral, que deu origem ao 'Cidade Partida', e o massacre recente do Jacarezinho?


Quando cobri o pós-chacina de Vigário Geral, tinha esperança de ser a última. Mas tivemos mais e vai ter mais, porque a política de segurança do Rio é ultrapassada. Acham que combate às drogas tem que ser uma guerra, como o Nixon achava.


Com essa política retrógrada, de tempos em tempos vai ter chacina. A polícia entra, recolhe meia dúzia de armas, mata um monte de gente. E não existe bala perdida, ela atinge, em geral, inocentes.


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Jacarezinho depois do massacre


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O senhor faz parte da Academia Brasileira de Letras desde 2015. Há três cadeiras vazias na instituição. O senhor tem palpites para essas vagas?


Até disse isso para um candidato outro dia. Na ABL, antiguidade é posto e sou um dos mais recentes ali. Então vou primeiro conversar com a diretoria para saber o que é melhor para a academia, do que ela precisa. Já ouvi falar que ela precisa de mais um filólogo, ou de um médico. E há muitos candidatos.


Acho que a Fernanda Montenegro é um consenso. Só não vai se não quiser. Se ela estiver dividida em se candidatar. Porque as pessoas têm que se candidatar.


Os que me procuraram se decepcionaram, porque não têm que falar comigo. Vou primeiro conversar com a academia, diante dos candidatos. Mas eu não tenho candidato.


Qual sua relação com sua posição de imortal da ABL?


De fora há essa imagem de que é uma chatice, são 40 velhinhos que se reúnem toda semana para tomar chá, mas é muito divertido. É agradável e tem muito humor. Nós velhinhos temos muito humor. Estou sentindo muita falta, porque a academia fechou e não sabemos quando vai abrir.


O Ferreira Gullar, que resistiu muito à academia, era o primeiro a chegar às reuniões, e disse, antes de morrer, que o programa cultural dele era a academia.


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FHC na Academia Brasileira de Letras


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Qual a relevância da imprensa nestes tempos de notícias falsas por todo canto?


Nesses últimos anos, a imprensa é culpada de tudo. Mas desde a época dos reis madava-se matar o emissário de más notícias. De certa maneira, nós somos esse emissário. Sempre que pode, o presidente diz que é culpa da imprensa. Todo poder tem implicância com a imprensa.


O leitor acha que a gente só publica notícia ruim. Na ditadura, diziam que só publicávamos notícia boa, e era verdade, porque tinha censura.


Certas coisas que se fazem na internet em nome do jornalismo não são jornalismo. O jornalista apura o que vai publicar, e, em muito do que está na internet, a apuração não existe. Apuração é a coisa mais importante da tarefa do repórter.


Não reivindico censura na internet, porque já vimos a censura e sabemos que não serve de nada, mas alguma regulamentação precisava ser feita contra a impunidade. A notícia falsa é uma praga.


The Economist: Bolsonaro não é única razão de o Brasil estar no buraco, OESP

 The Economist, O Estado de S.Paulo

04 de junho de 2021 | 05h00

Os hospitais estão lotados, as favelas ecoam tiros e um recorde de 14,7% dos trabalhadores estão desempregados. Inacreditavelmente, a economia do Brasil está menor agora do que era em 2011 – e serão necessários muitos trimestres fortes como o relatado em 1.º de junho para reparar sua reputação. O número de mortos no Brasil pela covid-19 é um dos piores do mundo. Mas o presidente Jair Bolsonaro faz piada dizendo que as vacinas podem transformar as pessoas em jacarés.

O declínio do Brasil foi chocantemente rápido. Após a ditadura militar de 1964-85, o país conseguiu uma nova Constituição que devolvia o Exército aos quartéis, uma nova moeda que acabou com a hiperinflação e programas sociais que, com um boom de commodities, começaram a reduzir a pobreza e a desigualdade. Uma década atrás, o País estava cheio de dinheiro do petróleo e tinha sido escolhido para sediar a Copa do Mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016. Parecia destinado a florescer.

Mas o Brasil não aproveitou a oportunidade. Como argumenta nossa reportagem especial desta semana, governos consecutivos cometeram três erros. Primeiro, eles cederam à visão de curto prazo e adiaram as reformas econômicas liberais. A culpa por isso pertence principalmente ao Partido dos Trabalhadores (PT), que ocupou a Presidência entre 2003-16. Ele alcançou um crescimento de 4% ao ano, mas não investiu para aumentar a produtividade. Quando os preços das commodities caíram, o Brasil enfrentou uma das piores recessões de sua história. Os governos de Michel Temer e Bolsonaro fizeram algum progresso nas reformas, mas pararam muito aquém do que é necessário.

Bolsonaro
Jair Bolsonaro, presidente da República Foto: Evaristo Sá/ AFP

Em segundo lugar, em seus esforços para se protegerem das consequências da Lava Jato, os políticos têm resistido às reformas que impediriam a corrupção. Os promotores e juízes por trás da Lava Jato são parcialmente culpados. Depois que alguns demonstraram ter uma agenda política, os inquéritos dos quais eram responsáveis ficaram estagnados no Congresso e nos tribunais.

Por último, o sistema político do Brasil é um fardo. Distritos estaduais e 30 partidos no Congresso tornam as eleições caras. Mais ainda do que em outros países, os políticos no Brasil tendem a apoiar projetos extravagantes para ganhar votos, em vez de reformas valiosas de longo prazo. Uma vez no cargo, eles seguem as regras erradas que os elegeram. Eles desfrutam de privilégios legais que os tornam difíceis de serem processados e de uma grande quantidade de dinheiro para ajudá-los a manter o poder. Como resultado, os brasileiros os desprezam. Em 2018, apenas 3% disseram confiar “muito” no Congresso.

A desilusão abriu o caminho para Bolsonaro. Ex-capitão do Exército com uma queda pela ditadura, ele convenceu os eleitores a verem seu jeito politicamente incorreto como um sinal de autenticidade. Ele prometeu eliminar políticos corruptos, reprimir o crime e turbinar a economia. E tem fracassado em todas as três tarefas.

Depois de aprovar a reforma da previdência em 2019, ele abandonou a agenda de seu ministro da Economia liberal, temendo que ela lhe custasse votos. A reforma tributária e do setor público e as privatizações estagnaram. O auxílio emergencial ajudou a evitar a pobreza no início da pandemia, mas foi reduzido no final de 2020 em razão do aumento da dívida. A taxa de desmatamento na Amazônia aumentou mais de 40% desde que Bolsonaro assumiu o cargo. Ele levou uma motosserra para o Ministério do Meio Ambiente, cortando seu orçamento e forçando a saída de funcionários. Seu ministro do Meio Ambiente está sob investigação por tráfico de madeira.

Em relação à covid-19, Bolsonaro apoiou manifestações contra os bloqueios totais e curas de charlatões. Ele enviou aviões carregados de hidroxicloroquina para povos indígenas. Por seis meses ele ignorou ofertas de vacinas. Um estudo descobriu que o atraso pode ter custado 95 mil vidas.

Em vez de lidar com a corrupção, ele protegeu seus aliados. Em abril de 2020, demitiu o chefe da Polícia Federal, que investiga os filhos dele por corrupção. Seu ministro da Justiça pediu demissão, acusando-o de obstrução da justiça. Dias antes, Bolsonaro havia ameaçado a independência do Supremo Tribunal Federal (STF). Em fevereiro, seu procurador-geral acabou com a força-tarefa da Lava Jato.

A democracia brasileira está mais frágil do que em qualquer momento desde o fim da ditadura. Em março, Bolsonaro demitiu o ministro da Defesa, que se recusou a enviar o Exército às ruas para forçar a reabertura de empresas. Se ele perder a reeleição em 2022, alguns acham que ele pode não aceitar o resultado. Ele lançou dúvidas em relação ao voto eletrônico, aprovou decretos para “armar a população” e se gabou de que “só Deus” o tirará da cadeira presidencial.

Impeachment

Na verdade, o Congresso brasileiro poderia fazer o trabalho sem a intervenção divina. Sua conduta provavelmente se qualifica como passível de impeachment, incluindo “crimes de responsabilidade”, como encorajar as pessoas a desafiar os bloqueios totais, ignorar ofertas de vacinas e demitir funcionários para proteger seus filhos. O Congresso recebeu 118 petições de impeachment. Dezenas de milhares de pessoas foram às ruas em 29 de maio para exigir sua expulsão do cargo.

Por enquanto, ele tem apoio suficiente no Congresso para impedir o impeachment. Além disso, o vice-presidente, que assumiria, é um general também nostálgico do regime militar. A última vez que o Congresso votou pelo impeachment de um presidente no Brasil – Dilma Rousseff em 2016 por esconder o tamanho do déficit orçamentário – isso dividiu o País. Bolsonaro se apresentaria como um mártir. Muitos de seus apoiadores estão armados.

No longo prazo, além de substituir Bolsonaro, o Brasil deve lidar com o cinismo e o desespero que o elegeu, enfrentando o baixo crescimento crônico e a desigualdade. Isso exigirá uma reforma dramática. No entanto, a própria resiliência que protegeu as instituições brasileiras das predações de um populista também as torna resistentes a mudanças benéficas.

As ações necessárias são difíceis. Acima de tudo, o governo precisa servir ao público e não a si mesmo. Isso significa reduzir os privilégios dos trabalhadores do setor público, que consomem uma parcela insustentável dos gastos do governo. Os políticos também não devem poupar a si mesmos. Os titulares de cargos devem ter menos proteções legais. Eles deveriam reorganizar os sistemas eleitoral e partidário para deixar sangue novo entrar no Congresso.

O próximo governo deve combater a corrupção sem preconceitos, conter gastos desnecessários e aumentar a competitividade. A aplicação de medidas severas na Amazônia deve ser acompanhada de alternativas econômicas ao desmatamento. Caso contrário, mais cedo ou mais tarde, novos Bolsonaros surgirão.

Há um longo caminho pela frente.

A não ser que o impeachment de Bolsonaro ocorra, o destino do Brasil provavelmente será decidido pelos eleitores no ano que vem. Seus rivais deveriam oferecer soluções em vez de espalhar nostalgia. Seu sucessor herdará um País deteriorado e dividido. Infelizmente, a podridão vai muito além de um homem só. / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA 

© 2021 THE ECONOMIST NEWSPAPER  LIMITED. DIREITOS RESERVADOS. PUBLICADO SOB LICENÇA. O TEXTO  ORIGINAL EM INGLÊS ESTÁ EM WWW.ECONOMIST.COM

Em mudança histórica, maioria dos novos alunos da USP é de escolas públicas, OESP

 Italo Cosme, especial para o Estado de S.Paulo

04 de junho de 2021 | 14h00
Atualizado 04 de junho de 2021 | 17h16

Em uma mudança histórica, a maioria dos novos alunos matriculados na Universidade de São Paulo (USP) vem de escolas públicas. Depois de anos de discussões e polêmicas sobre reserva de vagas na instituição de ensino mais conceituada do País, foi cumprida este ano a meta ambiciosa estabelecida em 2017 de ter metade de seus novos alunos com esse perfil. É a primeira vez que isso ocorre desde que a instituição passou a registrar o perfil dos ingressantes, em 1995. 

Pela primeira vez na história, maioria dos novos alunos da USP é de escolas públicas
Adriana dos Santos foi aprovada no curso de Medicina no campus de Bauru da USP  Foto: WERTHER SANTANA/ESTADÃO

Das 10.992 vagas preenchidas, 51,7% foram ocupadas pelos alunos que estudaram na rede pública. Há mais de dez anos, o índice geral ficava em cerca de 25%, sendo bem menor nos cursos mais concorridos. 

Apesar disso, chegar aos mais pobres ainda é um desafio: a renda média da maioria dos ingressantes continua acima de cinco salários mínimos e menos de um terço do total dos estudantes é preto, pardo e indígena. 

O especialista em políticas de acesso e permanência da Universidade Federal do ABC (UFABC), Wilson Mesquita de Almeida, avalia positivamente o avanço dos últimos 15 anos para a inclusão de pessoas de baixa renda no ensino superior, mas aponta a necessidade de maior atenção com o corte de renda familiar. Para ele, há um reforço do perfil classe média, que historicamente entra na universidade pública.

Para ampliar o alcance, segundo ele, ainda é necessário combinar políticas estruturais, como maior investimento na escola pública, no professor e democratizar o acesso à informação aos estudantes. “Além disso, é preciso mudar o vestibular: se eu não vi o conteúdo na escola pública, quando for fazer o vestibular fico com desvantagem em relação ao da escola particular”, afirma. Na pandemia, lembra, a desigualdade de aprendizado deve ser ainda maior. 

Entre todos os ingressantes, 25% têm renda familiar acima de 10 salários. Na outra ponta, quase um terço (29,7%) dos discentes dispõe de até três. 

Mesmo assim, o pró-reitor de Graduação da USP, Edmund Chada Baracat, diz que a implantação da reserva de vagas na USP tem mudado o perfil dos estudantes na instituição,  tornando-a mais diversa social, cultural e economicamente. “Esse processo, no entanto, deve ser contínuo e constantemente avaliado. Nas universidades federais, pelo fato de a reserva já ter sido implementada há quase dez anos, o processo está mais adiantado.”

Estudo da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) mostra que 70,2% dos alunos de universidades federais são de famílias de baixa renda. Pouco mais de 26% têm renda de até meio salário mínimo e 26,9%, até um salário mínimo. Outros 16,61% vivem com um salário e meio. 

Em 2019, quando foi feita a pesquisa, a fatia de novos alunos oriundos da rede pública era de 64,7%. A política de cotas oficialmente começou em 2012, mas muitas universidades a adotam desde os anos 2000.

“É muito louvável que a USP tenha chegado a mais de 50% de alunos aprovados serem oriundos da rede pública do Brasil. No entanto, nossa comunidade ficará mais feliz quando esses 50% tiverem dentro da renda de no máximo um e meio salário mínimo”, diz Frei David Santos, diretor executivo da Educafro Brasil, que luta há décadas por mais inclusão na USP. 

Sonho

Aos 18 anos e ex-estudante de escola pública, Natália Malerba chega à USP para cursar Engenharia Química. A felicidade da jovem é ainda maior porque deve permanecer em Lorena, onde mora e há um campus da instituição. Ao contrário dos colegas da turma que vêm em grande quantidade de outras partes do País, não precisará de ajuda para moradia. Segundo a USP, em 2021, foram destinados R$ 250 milhões, 6,7% a mais do que no ano passado, para auxílio estudantil. 

A renda familiar de Natália, como a de 13% dos novos estudantes, está entre dois e três salários mínimos. “Durante todo o ensino médio, a maioria dos alunos sonha com a universidade pública. Porém sabemos o quanto é difícil passar porque são poucas vagas. Especialmente em tempos de pandemia, parece que a gente não vai ter futuro e que está muito longe de conseguir”, diz a jovem. “Infelizmente, muita gente abre mão de fazer uma faculdade porque não consegue conciliar faculdade e a necessidade de trabalhar.”

A proporção de novos estudantes pretos, pardos e indígenas (PPI) oriundos da rede pública, porém, permanece a mesma desde o ano passado, com 44,1%. Isso significa que, em 2021, dos 5.678 alunos de escolas públicas, 2.504 se encaixavam no PPI. Em 2019, o porcentual foi o maior até agora: 45,88%. No ano anterior 39% dos que entraram se encaixavam no grupo. 

Em relação ao total de vagas, o número de candidatos desse grupo representa 27,4%, independente da modalidade de entrada. Os vestibulandos podem entrar na maior universidade do País de duas formas: pela Fuvest e pelo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) por meio do Sistema de Seleção Unificada (Sisu). 

“É triste pensar que muitas pessoas nem vislumbram essa possibilidade (de entrar na USP). Nossa realidade não favorece o cultivo de sonhos. A gente não pode esperar que uma pessoa demore a entender que pode entrar no curso de medicina”, diz Adriana dos Santos, aprovada no curso de Medicina no campus de Bauru. 

Ela tem 37 anos, mora em São Paulo e não pode receber auxílio estudantil por já ter graduação em Psicologia. A universitária vive com a mãe aposentada. A renda da família é de um salário mínimo. Por isso, há indefinição sobre como se manterá em outra cidade quando as aulas presenciais retomarem. 

“O fato de eu ter uma graduação não garante que eu tenha condições. É necessário maior flexibilidade ou ampliação do programa.” A caloura pediu demissão para se dedicar ao pré-vestibular. Agora, pensa em bolsas de iniciação científica, estágios para tentar se manter na faculdade.  

Casado e pai de três filhos, Cassius Jansen, de 43 anos, é calouro no curso de Direito na USP. A única renda da família vem do salário de R$ 1,2 mil da esposa. Há dois anos, o universitário saiu do emprego, decidiu dedicar-se exclusivamente aos estudos para alcançar a vaga e conseguiu bolsa de estudos no curso pré-vestibular. Desde então, sobrevive de bicos e da ajuda da mãe para ajudar em casa. 

Para se manter na universidade, Cassius buscou auxílio nos programas de permanência para moradia, transporte e livros. “Às vezes, muita gente não entende o que é estudar no Brasil. Uma pessoa que estuda precisa de tempo. Isso não é possível se você não tiver algum apoio.”  

Frei David teme ainda que daqui pra frente possa haver fraudes para conseguir uma vaga de cotas na instituição. "Sabemos que nas centenas de municípios pequenos, que não possuem demandas comerciais para ter uma escola particular, o prefeito aparelha uma escola pública e nela coloca seus filhos, os filhos dos vereadores, os filhos dos juízes", diz.

Para entender

Há quatro anos, a Universidade de São Paulo (USP) reserva vagas a estudantes de escolas públicas e pessoas autodeclaradas pretas, pardas e indígenas (PPI). A política foi aprovada em 2017. No ano seguinte, as unidades de ensino e pesquisa tinham a meta de preencher 37% das vagas com o público. 

Desde então, a meta sobe de forma escalonada. Em 2019, foi de 40%. Ano passado, 45%. A partir deste ano e nos subsequentes, a instituição deve chegar a 50% das vagas em cada curso e turno. 

Das 42 unidades de ensino e pesquisa da Universidade, 12 não alcançaram o índice de 50% de alunos ingressantes de escolas públicas, embora a média entre elas tenha ficado na marca dos 49%.

A USP indica que na reserva de 50% também incide o porcentual de 37,5% de cotas para estudantes autodeclarados PPI, índice equivalente à proporção desses grupos no Estado de São Paulo verificada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

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