segunda-feira, 9 de julho de 2012

Antes do dilúvio


Quase um século de ambientalismo depois, mundo segue clivado entre os oásis dos 1% mais ricos e imundas cidades para o resto

17 de junho de 2012 | 3h 06
Juliana Sayuri e Ivan Marsiglia - O Estado de S.Paulo

Florescem cenários apocalípticos nas críticas do urbanista norte-americano Mike Davis, para quem o futuro está sendo gestado em megalópoles convulsionadas. E será um futuro noir, solapado por catástrofes superlativas, guerras e pandemias de toda sorte. "A Rio+20 tem tanta chance de salvar o mundo como uma convenção de entusiastas do esperanto", ironiza o também historiador e fundador da New Left Review.
Autor de Cidades Mortas, Ecologia do Medo e Holocaustos Coloniais (Editora Record), Apologia dos Bárbaros, Cidade de Quartzo e Planeta Favela (Boitempo Editorial), Michael Ryan Davis cresceu no deserto californiano de El Cajon, foi aprendiz de açougueiro, caminhoneiro e militante estudantil. Atualmente, leciona na Universidade da Califórnia, em Riverside, de onde concedeu esta entrevista exclusiva ao Aliás.
Qual é sua expectativa para a Rio+20?
A Conferência tem tanta chance de salvar o mundo como uma convenção de entusiastas do esperanto ou um encontro de seguidores de Zoroastro. Há sérios pontos para discutir na Rio+20, mas a épica batalha sobre a mudança climática e o desenvolvimento sustentável foi irremediavelmente perdida na esfera da política internacional. Para os futuros historiadores não será difícil aquinhoar a responsabilidade. Mesmo que todos os países ricos compartilhem alguma culpa, alguém apertou o gatilho. O Protocolo de Kyoto foi assassinado no berço pelo Texas - isto é, pelo Partido Republicano norte-americano e os bilionários do petróleo de Houston que o financiam. Os democratas, por sua vez, lamentaram brevemente a morte de Kyoto e, em seguida, discretamente enterraram o aquecimento global como uma questão de campanha. A ausência do presidente Barack Obama no Rio é um sinal de que a mudança climática - questão de vida e morte para grande parte da humanidade - tornou-se órfã.
Anfitrião do encontro, o Brasil tomou posições ambivalentes e criticadas em questões como o novo Código Florestal e a usina de Belo Monte. Como o sr. as analisa?
De perto, o sistema político do Brasil parece muito disfuncional. De longe, porém, lembra o New Deal americano: a bem-sucedida manipulação de mobilizações populares (sobre questões como a pobreza, a terra, os direitos dos trabalhadores e a Amazônia) para forçar o capitalismo brasileiro a se modernizar e competir na pista rápida dos novos países industrializados. As conquistas da era PT são incontestáveis, como as políticas de regulamentação ambiental, que mesmo inconsistentes, abrandaram as formas mais destrutivas de explorar o paraíso de vocês. A tripulação da Estação Espacial Internacional não mais orbita sobre uma Amazônia em chamas. Mas alguns dos limites do novo modelo brasileiro parecem óbvios. O projeto verde inevitavelmente colide com a realidade de uma grande economia que continua dependente das exportações de produtos primários.
Como está a questão verde hoje, após quase um século de movimento ambiental?
Como estamos à beira de uma recessão mundial sincronizada, é difícil até para os Chicago boys (grupo de intelectuais formados na Universidade de Chicago, pioneiros do pensamento neoliberal) argumentarem que as gigantescas corporações e bancos tenham interesse ou poder para criar empregos para nossos filhos, garantir segurança alimentar para os 3 bilhões ainda por nascer nos próximos 40 anos ou adaptar cidades e campos para os desafios da sobrevivência em um clima mais extremo. Empregos, alimentos e meio ambiente são fatores intrinsecamente unidos - mas o movimento verde, com poucas honrosas exceções, não conseguiu ver essa interligação. Assim, muitos pobres ainda consideram o ambientalismo como um luxo que eles não podem pagar. Em países como os EUA, a degeneração da política ambiental é terrível. Os ativistas verdes de outrora agora são lobistas institucionais em Washington, dispostos a apertar a mão do diabo, mesmo a da indústria do petróleo. Enquanto isso, o breve flerte do presidente Obama com o "crescimento verde" - a promessa de centenas de milhares de bons empregos ao redor da energia renovável - tornou-se uma miragem cruel. O único notável boom do trabalho está na produção de combustíveis fósseis: os campos de petróleo de Dakota do Sul e as instalações para extração de gás na Pensilvânia. Acredito que cada questão ambiental deva ser enquadrada em termos de criação de empregos e futuro para a juventude. O mundo precisa imensamente de reparo, e uma humanidade desacorrentada dos balanços corporativos deveria urgentemente construir uma arca antes de o dilúvio chegar. O que realmente precisamos são centenas de milhões de empregos low tech: legiões de jardineiros, pedreiros, professores. Um programa de trabalho global. Diante da austeridade crescente, tal proposta parece politicamente absurda, mas precisamos de partidos que defendam políticas necessárias - e não só realistas. Não tenho certeza se os atuais partidos verdes se encaixam nessa job description.
Nada melhorou desde a Eco-92?
Centenas de livros foram escritos sobre bons experimentos verdes em escala local. As cidades brasileiras, em particular, ganharam reconhecimento mundial por suas inovações. Mas olhe ao redor. Comparadas às deduções para as guerras do Pentágono e da indústria de carvão na China, para não falar na crescente miséria urbana na África e da deterioração das cidades ex-soviéticas, as contribuições verdes marcam um progresso insignificante. De fato, se a crise econômica de 2008 foi apenas um prelúdio para uma depressão abrangente nos anos seguintes, estamos construindo castelos de areia. Há muita ousadia na concepção de soluções técnicas e pouca na política. Fico feliz que Berkeley seja bike-friendly e Julia Roberts viva em uma casa de carbono zero, mas o que é mais importante para nosso ecofuturo: maravilhosos oásis verdes em cidades ricas ou banheiros e salários mínimos em cidades pobres? Aí é onde um Brasil progressista poderia ser a vanguarda.
Então a crise financeira de 2008 selou o destino da causa ambiental?
No caso dos EUA, os resultados foram perversos. Inicialmente, os preços astronômicos do petróleo e a necessidade de um estímulo keynesiano parecia apontar para um boom na energia renovável e tecnologias ambientalmente eficientes. Mas foi o combustível fóssil que se renovou com o boom de tar sands (a mais suja fonte de petróleo) de Alberta e os depósitos de gás nas rochas de Pensilvânia. Ao mesmo tempo, o maior empreendimento da administração de Obama em parcerias público-privadas para a indústria de energia alternativa, uma concessão de US$ 500 milhões para energia solar, foi um fiasco por causa da competição chinesa. A depressão americana deu ao lobby "negador" - a campanha de relações públicas com falsos experts para negar a ideia de aquecimento global - e ao lobby antiambientalista, nova vida no Partido Republicano. Romney é um "cético" renascido na mudança climática enquanto alguns de seus oponentes, como Michelle Bachmann, de Minnesota, são oponentes diretos da ciência moderna per se. Assim, a opinião pública dos EUA mudou drasticamente em direção ao ceticismo sobre o aquecimento global.
Ambientalistas defendem a redução dos padrões de consumo para salvar o planeta. Como uma transformação dessas no comportamento humano seria possível?
Padrões de consumo doméstico obviamente não significam qualidade de vida, uma vez que muitas de nossas mais importantes necessidades só podem ser preenchidas em comunidade com os outros. No entanto, parte dos ambientalistas tem pouquíssimo compromisso com a justiça social. Proporcionar uma vida decente para as massas e preservar a vida animal são vistos como objetivos quase excludentes. Na verdade, acredito que a única forma de salvar o planeta é fazer todo mundo rico. Rico no sentido da desfrutar de maneira completa e equânime de um espaço público luxuoso e de utopias digitais comuns. A melhor maneira de equacionar uma democracia de alta qualidade de vida com uma biosfera sustentável é investindo no espaço público e no consumo comunitário. Para salvar o meio ambiente precisamos salvar a própria humanidade, e salvá-la é criar uma distribuição equânime de bens públicos. Fazendo isso, vamos criar centenas de milhões de empregos. As verdadeiras qualidades urbanas das cidades - construídas com estrutura de transporte público eficaz e interação entre florestas e diversidades sociais e culturais - são a forma mais eficiente de uso da energia e do espaço. Como o grande urbanista utópico Patrick Gedders apontava já no século 19, o lixo produzido por uma cidade pode tanto se transformar em toxina mortal como parte do ciclo ecológico para sustentação de jardins e cinturões verdes. Para repensar esse esquecido, porém essencial, diálogo sobre uma visão socialista e moderna do urbanismo sustentável, discussão que floresceu entre 1880 e 1920 até ser brutalmente assassinada por Hitler e Stalin, eu preferiria pensar no Brasil. Nenhum outro país no mundo tem semelhante expertise para a vida urbana nem tanto potencial, apesar de toda a desigualdade, para abrir as portas do paraíso.
Seu livro Evil Paradises fala de 'utopias' bem diversas dessa que acaba de descrever.
Vivemos uma separação sem precedentes entre muito ricos e o restante da humanidade. Seja encastelados em arranha-céus militarizados, metidos em murados subúrbios de luxo ou em paraísos artificiais como Dubai, os 1% mais ricos desistiram de qualquer pretensão de existência compartilhada com o resto de nós. Mas no fim das contas a segurança desses "off worlds", como são chamados no filme Bladerunner, é puramente ilusória. Vírus e bactérias encubadas nas imundas e superlotadas metrópoles viajam de primeira classe nos aviões...
A globalização reduziu as possibilidades de ação de Parlamentos e chefes de Estado na administração da economia mundial?
A crise europeia transformou-se em uma autópsia pública da globalização em sua forma mais radical. Ela mostrou a dificuldade de se superar desequilíbrios estruturais entre grandes economias - mesmo com as mais ousadas tentativas de regulação supranacional da crise. Doutores do FMI, da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu (BCE) alertaram que a prosperidade europeia só pode ser salva por uma integração fiscal e política drástica, pela criação de um genuíno "Estados Unidos da Europa". Mas a atual vantagem comparativa econômica alemã em produtividade e custos do trabalho inviabilizam isso. De um lado, os contribuintes alemães não aceitam sustentar o bem-estar social de gregos e espanhóis. De outro, seria uma humilhação e rendição das soberanias nacionais em troca de benefícios hipotéticos após longos ajustes de austeridade. Os chamados fundos de resgate oferecidos são basicamente um programa para evitar prejuízos aos bancos do norte. Na Grécia, por exemplo, os empréstimos do BCE foram basicamente usados para transferir o risco de bancos estrangeiros para a Grécia e contribuintes europeus. Na Irlanda e na Espanha, transformaram perdas bancárias em dívida pública. Uma vez que os grandes bancos têm sempre prioridade nos botes salva-vidas - enquanto mulheres e crianças ficam por último -, austeridade e dívida vão continuar em uma espiral fora de controle. Essa política está condenando os EUA e a Europa a uma estagnação que já faz lembrar a "década perdida" da América Latina nos anos 1980. Poderão a China e os outros Brics continuarem a crescer em meio a essa depressão? Pergunte aos bancos chineses...
Seus livros são conhecidos pela visão pessimista do futuro. O britânico James Lovelock recentemente reviu suas piores previsões sobre o aquecimento global. Quais são os riscos reais que a humanidade enfrenta?
Os seres humanos obviamente não podem destruir o ambiente per se, apenas os recursos naturais dos quais a civilização depende. A Terra sempre resistirá, embora por um longo tempo com um drasticamente simplificado bioma. A atual taxa de espécies em extinção equivale ao impacto de um asteroide. A ciência climática pode prover contornos brutos dos impactos do aquecimento na agricultura. Parece claro, por exemplo, que uma enorme faixa do norte dos subtrópicos, incluindo o México e o Caribe, a costa do Mediterrâneo, o Oriente Médio e, acima de todos, o Indus Valley (o maior sistema de irrigação do mundo, com 100 milhões de pessoas) enfrentem um futuro de épica seca. Mas não há tecnologia que possa estimar o impacto social das crescentes perdas na complexidade ecológica através da extinção e da invasão de espécies daninhas. Ninguém imagina o que estamos desencadeando no nível microscópico ao reduzir a diversidade ecológica ou ao criar superconcentrações de uma espécie (os seres humanos nas cidades, por exemplo) em fétidas condições. No livro Cidades Mortas, discuto a assustadora pesquisa conduzida após a 2ª Guerra por botânicos nas cidades bombardeadas da Europa. A expectativa científica era o rápido retorno aos ecossistemas complexos. Ao contrário, os pesquisadores ficaram perplexos ao descobrir que um punhado de espécies daninhas, algumas exóticas, estabeleceram uma imediata ditadura. Eles denominaram essa inesperada ecologia de plantas piratas uma "segunda natureza", um sinistro ecossistema florescendo em solo bombardeado e envenenado. Hoje, com o sangramento dos combustíveis fosseis, a simplificação das colheitas e o derramamento de tóxicos, estamos acelerando a criação de uma segunda natureza em escala global. Se ainda haverá espaço para nossa espécie nessa nova ecologia é, claro, a questão final.

Brown, PCC e os garotos perdidos


O Estado de S.Paulo
BRUNO PAES MANSO
Captar sensações, como se fosse uma antena humana, para depois traduzi-las em rimas, como faz um poeta, são talentos que transformaram Mano Brown no maior nome do hip-hop em São Paulo. Nos anos 1990, a voz gutural do MC, acompanhada de bases musicais sombrias parecidas a trilhas sonoras de filmes de suspense, revelaram o cotidiano violento de jovens que se matavam, a caminho do autoextermínio, protagonizando carreiras criminais ou sendo vítimas da violência policial.
Nesse período, tempos em que São Paulo alcançava taxas escandalosas de 53 homicídios por 100 mil habitantes, ter atitude era odiar. Sobrava inspiração para cantar e denunciar "a realidade", cabendo aos rappers, na definição deles próprios, o papel de "CNN da periferia" (mais correto seria Al-Jazeera).
Na década que se seguiu, ao mesmo tempo que São Paulo e as periferias viviam processos de mudanças radicais, os Racionais de Mano Brown pareciam ter perdido o discurso. Os homicídios, que dizimaram parte da geração de Brown, hoje com 42 anos, despencaram 80%. Também aumentou o consumo de drogas e foi criada a mística em torno do Primeiro Comando da Capital (PCC), que organizou a distribuição de drogas nas biqueiras das quebradas.
Como se não houvesse muito mais a rimar e declamar, as músicas dos Racionais minguaram e nenhum álbum relevante foi lançado em dez anos. No mesmo período, as periferias foram dominadas pelo funk e pelo pancadão, celebrando o consumo e o prazer em excesso proporcionados pelo sexo casual e pelas drogas. Os anseios da geração de jovens das periferias ficaram mais próximos aos dos jovens da classe média paulistana.
O "sistema", contudo, continuava a produzir camadas sociais que se movimentavam em sentidos opostos, como placas tectônicas na iminência de produzir terremotos. Brown, o cronista, estava atento e conseguiu compreender que era falsa a sensação de paz que a cidade experimentava. O subterrâneo se movimentava e a opção pelo crime crescia. Sem nenhuma gota de hipocrisia, neste ano descreveu em uma nova canção as sensações e o espírito dos jovens que ingressam e seguem a carreira criminal. Trata-se do rap Marighella, em homenagem ao guerrilheiro comunista, líder da Ação Libertadora Nacional (ALN).
Gravado em maio em uma ocupação no centro de São Paulo, o clipe de Mariguella é a metáfora de Brown para explicar o crime e o criminoso. Brown usa trechos do manifesto do guerrilheiro, transmitido em 1969, para convocar os operários e trabalhadores nas favelas a se armar e a aprender a atirar.
Na voz de Brown, não se trata de Marighela, "assaltante nato", nem do comunismo, nem dos operários. Mas da revolta, da raiva contra o sistema, dos "correrias", perseguidos e descriminados, mas com procedimento, devotos do ódio, protagonistas de uma vida sem sentido, que criam meios violentos para suportar a vida na sociedade violenta.
Marighella é a metáfora que revela as aspirações da geração urbana dos garotos perdidos, enrolados na carreira criminal que escolheram. Filhos de migrantes, nascidos nas grandes cidades, onde negaram a cultura rural dos pais para inventar os próprios caminhos.
Parte dessa geração, dizimada nos anos 1980 e 90, forjou sua identidade no crime, usando a violência. Quando escolhem essa carreira, passam a viver um destino sem futuro, em que plantam e colhem violência, como se essa fosse a única forma de serem percebidos. Ainda é muito melhor tentar compreendê-los nas músicas dos Racionais e nas lúcidas metáforas de Mano Brown. Quem sabe sejam encontradas formas para preencher o vazio dessas vidas.

O visionário da província


RENATO LESSA É PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA DA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE; INVESTIGADOR ASSOCIADO DO INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DA UNIVERSIDADE DE LISBOA; DIRETOR-, PRESIDENTE DO INSTITUTO CIÊNCIA HOJE - O Estado de S.Paulo
RENATO LESSA
Há cerca de seis anos, em 2006, o então prefeito de São Paulo, José Serra, renunciou ao mandato, conquistado nas eleições de 2004, para ingressar na corrida eleitoral ao governo paulista. Salto bem-sucedido, posto que lograria derrotar Marta Suplicy, qualificando-se, assim, à condição que, como sabemos, propiciaria mais à frente a reedição do ato de renúncia. Com José Serra, pela compulsão à repetição, aprendemos que renunciar é humano.
Por unilaterais e caprichosas, renúncias são ocasiões ímpares para pensar a respeito do peso dos contrafactuais na história humana. Não tivesse José Serra renunciado, e se reeleito fosse à Prefeitura de São Paulo em 2008, estaríamos hoje a falar de Gilberto Kassab, com a magnitude que o desagradável princípio de realidade nos impõe?
É certo que as ações humanas, se procurarmos estabelecer suas causas, podem ser submetidas ao abismo das regressões ao infinito. Detectada o que julgamos ser a causa de algo, sempre é possível indagar sobre causas dessa causa, e assim por diante - ou melhor, para trás -, até retrocedermos a um momento inaugural, seja ele o da moldagem de Adão ou da eclosão do bóson de Higgs. De todo o modo, ainda que isso seja verdadeiro, é inegável que na genealogia do animal político Kassab o efeito de causalidade exercido pela primeira renúncia de José Serra tem forte relevância.
Vá lá que o ato procriador praticado pelos pais do atual prefeito de São Paulo tenha sido uma condição necessária para que viesse a ter existência biológica. Contudo, parece ser indisputável o fato de que o ato de renúncia de Serra produziu um efeito político preciso, qual seja o da entronização de Kassab ao, digamos, primeiro time da elite política nacional. Suponho que não seja exagero imaginar que o ocupante do posto de prefeito da cidade de São Paulo, a mais importante cidade do hemisfério sul, não possa ser descrito de maneira diferente.
Determinar a causa eficiente do fenômeno não traz consigo a suposição de que havia intencionalidade na coisa: os efeitos procedem das causas, mas só adquirem fisionomia própria pelo que a elas acrescentam. Se a entronização de Kassab no campo político nacional derivou de um ato inicial, movido por considerações de oportunidade política de curto prazo, é importante não desvalorizar, para fins de interpretação, o que o personagem acrescentou de si ao presente que recebeu.
O personagem eminentemente local transformou-se em pouco tempo em um operador relevante no cenário nacional. Já não conta mais como prefeito: o que faz e o que se diz do que faz em São Paulo está aquém de seu peso específico no plano nacional. Para avaliar tal peso, as medidas são outras: um partido com mais de meia centena de deputados federais - o que representa 10% da Câmara de Deputados - e dois senadores.
A importância do kassabismo extrapola, contudo, a contabilidade parlamentar. O empreendimento do prefeito de São Paulo exibe de modo aberto a lógica do presidencialismo de coalizão, por meio de um truque de rara destreza: transformar meia centena de deputados obscuros, condenados às agruras das legendas de oposição, às quais em sua maioria pertenciam, em um conjunto disponível para trocas generalizadas. A sigla partidária, marca fantasia da organização, afirma-se negativamente, no que diz respeito a ideologias: não é de esquerda, de direita ou de centro. Quer isso dizer que se sente à vontade em qualquer ambiente. Ao modelo, em si mesmo generoso, do presidencialismo de coalizão, o partido do dr. Kassab propicia o acréscimo de potenciais 50 novos clientes, manobra extensiva aos municipalismos e aos "estadualismos" de coalizão.
Curiosamente, o dr. Kassab é o que vai de mais genuíno e autoevidente pela vida política nacional. Com ele não há riscos de decepção: qualquer domicílio o receberá de portas abertas, sem possibilidade de dano a seus, digamos, valores e princípios. O partido kassabista é sobretudo um experimento aberto de hiper-realismo político, em um grau que talvez nenhum dos partidos "relevantes" brasileiros esteja disposto a assumir. Mesmo o PMDB, mãe de todos os realismos, não dispensa, una y otra vez, menções a seus heróis e mitos de origem. Com os kassabistas, nada disso: eles expõem com clareza ofuscante os fundamentos correntes da política brasileira. É, pois, um empreendimento que elimina toda suspeita a respeito da opacidade das palavras. Para o kassabismo, as palavras são o que elas são, não escondem, iludem, parafraseiam ou aludem. Pretendem dizer o que a coisa é. Enfim, temos a tão desejada instalação da verdade na política.
Kassab indica o vice na chapa de Serra, arqui-inimigo do petismo, e apoia Patrus Ananias, herói petista, em Belo Horizonte. A senadora Kátia Abreu (PSD-PA), livre dos ares moribundos do ex-PFL, manifesta simpatia pela reeleição de Dilma Rousseff. E por aí vamos: tudo é permitido, tudo é divino e maravilhoso. Pensando bem, Kassab é mesmo um herói do presidencialismo de coalizão. Na verdade, um pequeno prestidigitador, a exibir o fato grave de que a existência de partidos "relevantes" e "coesos", bem como sua criação, nada tem a ver com o que se passa no plano da vida social. Política sem princípios e sem lastro social: há quem diga que se trata de uma "democracia consolidada".