segunda-feira, 7 de maio de 2012

A transição para o novo modelo da caderneta de poupança



Coluna Econômica - 07/05/2012

No primeiro dia após o anúncio das mudanças na caderneta de poupança, a avaliação do Ministério da Fazenda é que a transição para o novo modelo será tranquila.
Para o Secretário Executivo da Fazenda, Nelson Barbosa, havia dois objetivos a serem alcançados:
Montar o novo modelo sem mexer nos depósitos atuais e sem tirar a competitividade da poupança para os novos depósitos.
Abrir espaço para a política monetária, para o Banco Central poder baixar ou aumentar os juros, de acordo com os cenários econômicos, sem os empecilhos anteriores do piso da poupança - em 6,17% ao ano mais TR. Não se podia baixar a Selic a menor de 8,5% sem provocar uma revoada de investimentos de outros ativos para a poupança
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Evitou-se também sofisticar demais a poupança, estipulando taxas maiores para depósitos que permaneçam mais tempo na poupança. O banco que quiser poderá criar um ativo novo qualquer, batizar de poupança especial ou algo do gênero, e lançar.
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Mesmo com as mudanças, a poupança continuará bastante competitiva. Pelos cálculos da Fazenda, quando a Selic cair abaixo de 8,5%, a remuneração da poupança será equivalente a de um fundo DI (remunerado pela remuneração dos certificados de depósito interbancário) com uma taxa de administração de apenas 0,5%. Banco que quiser conversar seus fundos, terá que reduzir substancialmente sua taxa de administração.
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As mudanças efetuadas darão mais trabalho aos bancos, para reduzir o trabalho dos poupadores. Haverá a distinção entre depósitos anteriores e posteriores a 3 de maio. Os primeiros continuarão recebendo a remuneração de 6,17% mais TR. Sempre que a Selic for de 8,5% ou menos, os novos depósitos receberão 70% da Selic mais TR.
Mas ambos os depósitos ficarão na mesma conta, para evitar que o poupador tenha que abrir novas contas. Caberá ao banco especificar nos extratos o saldo antigo e o novo, devidamente atualizados a cada mês.
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Todo esse movimento - redução da Selic, do spread bancário, da remuneração da poupança - será aprofundado, mas encerra-se aí.
O próximo desafio da Fazenda será reduzir o custo da energia. Numa ponta, haverá a renegociação de tarifas na renovação das concessões. Há inúmeras fórmulas sugeridas e que serão definidas até o final do ano.
Na outra ponta, estudam-se maneiras de desonerar a energia de tributos que incidem sobre ela - embora o mais pesado seja o ICMS estadual.
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Prosseguirão também os estudos para desoneração de setores mais atingidos pelas importações.
Nelson Barbosa admite que esse modo de atuação pode passar a sensação de medidas dispersas de política industrial. Mas não vê outro caminho, já que a estratégia mais adequada - colocada em prática pela Fazenda - é a da mudança gradativa do ambiente econômico sem traumas, sem gestos heróicos.
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Pelos cálculos da Fazenda, o nível de atividade industrial deverá começar a reverter a partir do segundo trimestre. Espera-se que a partir do segundo semestre, a economia já esteja rodando a 5% ao ano, na ponta, embora ainda haja incógnitas no mercado internacional: EUA melhorando, Europa estagnada e a Argentina enfrentando seus próprios problemas.

sábado, 5 de maio de 2012

Adeus, simplicidade


CELSO MING - O Estado de S.Paulo
Acabou a simplicidade das cadernetas de poupança. As que forem abertas a partir de agora terão rendimento de 70% da Selic.
- Selic? O que é essa Selic? - pergunta dona Maria.
- Ora, Selic é o Sistema Especial de Liquidação e de Custódia, que fica lá no Banco Central. É o esquema que controla a emissão, o resgate, o pagamento dos juros e a guarda dos títulos do Tesouro... Passou a ser também o valor dos juros que o Banco Central paga às instituições financeiras nas suas transações diárias de liquidez... E, enfim, Selic é também o tamanho dos juros básicos obtidos pela calibragem do volume de dinheiro na economia, determinada pelo Banco Central...
Vai ser complicado para dona Maria fazer os cálculos com 70% da Selic. Precisa saber em quanto está a Selic e, ainda, como fazer essa conta.
Uma comparação ajuda a entender a complexidade. O consumidor sabe que o poder energético do álcool é de só 70% do da gasolina. Portanto, sempre que o preço do álcool superar os 70% da gasolina, é melhor encher o tanque do carro flex com gasolina, não com álcool. Mesmo assim, no posto de gasolina ninguém consegue calcular de cabeça. Pois 70% da Selic é o que a caderneta vai pagar.
A complexidade não termina aí. O mercado terá agora três cálculos diferentes para determinar o rendimento da caderneta. Como nada muda para as cadernetas antigas, elas continuarão pagando 0,5% ao mês (ou 6,17% ao ano) de juros mais a Taxa Referencial de Juros (TR) - que quase não conta, de tão pequena que é. Com isso, a caderneta antiga segue remunerando por ano algo em torno dos 6,5%. E até aí as coisas ainda ficam relativamente simples para o povão.
O rendimento da nova caderneta, no entanto, terá dois cálculos. O primeiro deles será aplicado se os juros básicos (a tal Selic) ficarem acima de 8,5% ao ano. Nesse caso, prevalecerá o esquema antigo. E outra conta será feita se a Selic baixar a 8,5% ou menos, que é quando se aplicarão os 70% da Selic.
A simplicidade é uma qualidade inestimável que precisou ser sacrificada agora para permitir a derrubada dos juros para níveis internacionais.
Mas, se é assim, talvez fosse melhor, como na Europa e nos países avançados, deixar que os bancos definissem livremente a remuneração da caderneta, em vez de complicar tudo com fórmulas diferentes. Não é o que já acontece quando o investidor quer aplicar seus recursos em Certificados de Depósito Bancário (CDBs)?
Em todo o caso, a opção está feita. O caminho para a derrubada dos juros está aberto, sem risco de forte migração de aplicações em renda fixa para cadernetas. O único obstáculo para a queda dos juros seguirá sendo eventual cavalgada da inflação que, no momento, não dá sinais disso.
Nisso, a presidente Dilma teve mais coragem do que o presidente Lula, que evitou mexer na caderneta por medo de ser equiparado ao ex-presidente Collor, notabilizado pelos estragos a que submeteu a poupança popular.
Os tão temidos problemas políticos em decorrência do que foi feito parecem afastados. A própria presidente Dilma julgou necessário preparar o golpe. Primeiro, passou para a opinião pública a imagem de que está peitando os bancos. Depois, quando ganhou auras de dama de ferro com os cartolas do dinheiro, fez o que tinha de fazer com as cadernetas. As reações políticas são tímidas ou inexistentes.

Verdade desabafada


Flávia Piovesan
Em livro lançado essa semana, o ex-delegado de polícia Cláudio Guerra assume a autoria de crimes contra militantes políticos, revelando que corpos foram incinerados em uma usina de cana em Campos dos Goytacazes, nos anos 70 e 80. Em outros depoimentos identifica mandantes de crimes contra militantes políticos, tecendo um relato inédito da repressão.
No depoimento, Guerra afirma também que militares executaram o delegado do Dops Sérgio Fleury - Reprodução
Reprodução
No depoimento, Guerra afirma também que militares executaram o delegado do Dops Sérgio Fleury
As impactantes revelações do ex-delegado intensificam o debate público a respeito da criação da Comissão Nacional da Verdade, tendo a força catalisadora de fomentar outros depoimentos e informações sobre as graves violações perpetradas ao longo do regime militar. Ineditamente, em 18 de novembro de 2011, foi adotada a Lei n. 12.528, que institui a Comissão, com a finalidade de examinar e esclarecer crimes praticados durante o regime militar, efetivar o “direito à memória e à verdade e promover a reconciliação nacional”. O Programa Nacional de Direitos Humanos III, lançado em 21 de dezembro de 2009, já previa a Comissão de Verdade, com o objetivo de resgatar informações relativas ao período da repressão militar.
Contudo, tal proposta foi alvo de acirradas polêmicas, controvérsias e tensões políticas entre o Ministério da Defesa (que a acusava de “revanchista”) e a Secretaria Especial de Direitos Humanos e o Ministério da Justiça (que a defendiam em nome do direito à memória e à verdade), culminando, inclusive, com a exoneração do general chefe do departamento do Exército, por ter se referido à “comissão da calúnia”.
Qual é o sentido do direito à verdade? Qual é seu alcance e propósito? Em que medida pode contribuir para a consolidação democrática? Para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, “toda sociedade tem o direito irrenunciável de conhecer a verdade do ocorrido, assim como as razões e circunstâncias em que aberrantes delitos foram cometidos, a fim de evitar que esses atos voltem a ocorrer no futuro”. O direito à verdade apresenta uma dupla dimensão: individual e coletiva.
Individual ao conferir aos familiares de vítimas de graves violações o direito à informação sobre o ocorrido, permitindo-lhes o direito a honrar seus entes queridos, celebrando o direito ao luto. Coletivo ao assegurar à sociedade em geral o direito à construção da memória e identidade coletivas, cumprindo um papel preventivo, ao confiar às gerações futuras a responsabilidade de prevenir a ocorrência de tais práticas. Como sustenta um parlamentar chileno: “A consciência moral de uma nação demanda a verdade porque apenas com base na verdade é possível satisfazer demandas essenciais de justiça e criar condições necessárias para alcançar a efetiva reconciliação nacional”.
No mesmo dia 18 de novembro de 2011, foi também adotada a lei que garante o acesso à informação, sob o lema de que a publicidade é a regra, sendo o sigilo a exceção. Com efeito, no regime democrático a regra é assegurar a disponibilidade das informações. As limitações ao direito de acesso à informação devem se mostrar necessárias em uma sociedade democrática para satisfazer um interesse público imperativo. No atual contexto brasileiro, o interesse público imperativo não é o sigilo eterno de documentos públicos, mas, ao contrário, o amplo e livre acesso aos arquivos. Para Norberto Bobbio, a opacidade do poder é a negação da democracia, que é idealmente o governo do poder visível, ou o governo cujos atos se desenvolvem em público, sob o controle democrático da opinião pública.
Diversamente dos demais países da região, como conclui o pesquisador americano Anthony Pereira, “a justiça de transição no Brasil foi mínima. Nenhuma Comissão de Verdade foi (ainda) instalada, nenhum dirigente do regime militar foi levado a julgamento e não houve reformas significativas nas Forças Armadas ou no Poder Judiciário”. No Brasil tão somente foi contemplado o direito à reparação, com o pagamento de indenização aos familiares dos desaparecidos políticos, nos termos da Lei n.9140/95.
Direito à verdade e direito à informação simbolizam um avanço extraordinário ao fortalecimento do Estado de Direito, da democracia e dos direitos humanos no Brasil. São instrumentos capazes de transformar a dinâmica de poder dos atores sociais, revelando o sentido do presente e sua relação com o passado. A luta pelo dever de lembrar merece prevalecer em detrimento daqueles que insistem em esquecer. Afinal, como observa o filósofo Charles Taylor, “para termos um sentido de quem somos, temos que dispor de uma noção de como viemos a ser e para onde estamos indo. Isso requer uma compreensão narrativa da vida. O que sou tem que ser entendido como aquilo em que me tornei, pela história de como ali cheguei”.
FLÁVIA PIOVESAN É PROFESSORA DE DIREITOS HUMANOS DA PUC/SP E PUC/PR, PROCURADORA DO ESTADO DE SP E FELLOW DA HUMBOLDT FOUNDATION NO MAX-PLANCK-INSTITUTE (HEIDELBERG)