terça-feira, 16 de novembro de 2010

A Amazônia pecuarista se industrializa

16/11/2010 - 04h11 do site Envolverde


Por Mario Osava, da IPS

Porto Velho, Brasil, 16/11/2010 – Após se transformar em exemplo de desmatamento da Amazônia brasileira, ao acumular um rebanho de 12 milhões de reses, o Estado de Rondônia aproveita a construção de duas grandes hidrelétricas e corredores interoceânicos para passar de fronteira agrícola para industrial. A Indústria Metalúrgica Mecânica da Amazônia, inaugurada em março pelo grupo francês Alstom, em sociedade com a empresa brasileira Bardella, marca esta transição. Em Porto Velho, capital de Rondônia, produzirá equipamentos para as centrais elétricas previstas em rios amazônicos do Estado e do resto do Brasil, da Bolívia e do Peru, apesar dos protestos de ambientalistas, indígenas e moradores ribeirinhos. 

O conglomerado industrial brasileiro Votorantim já havia inaugurado, em 2009, uma fábrica de cimento em Porto Velho para atender a demanda de Santo Antonio e Jirau, as hidrelétricas em construção no trecho do Rio Madeira, um dos maiores afluentes do Amazonas, que passa pelo Estado. Somente Santo Antônio exigirá uma quantidade de concreto correspondente a 36 Maracanãs, o estádio de futebol do Rio de Janeiro considerado o maior do mundo, e o aço corresponderá a 16 torres Eiffel, segundo Eduardo Bezerra, funcionário da Odebrecht, principal sócia e construtora da hidrelétrica.

Abundância de eletricidade e matérias-primas, além de facilidades logísticas por estar no centro do corredor entre portos peruanos do Pacífico e brasileiros do Atlântico atraíram investimentos produtivos para o Estado, afirma Gilberto Baptista, superintendente da Federação das Indústrias de Rondônia. As duas hidrelétricas aumentaram em 6% a capacidade de geração do país, contribuindo com 6.450 megawatts, que aumentarão se forem aprovadas ampliações dos projetos originais.

Mais importante, segundo Gilberto, será uma melhor ligação ao Sistema Integrado Nacional de eletricidade, o que garantirá o fornecimento estável à indústria. Santo Antonio e Jirau, combatidas por ambientalistas como elementos de um desenvolvimento tradicional depredador da Amazônia, exigirão investimentos equivalentes a US$ 15 bilhões, quase o dobro do atual produto interno de Rondônia. O emprego para 30 mil trabalhadores e a forte demanda por bens e serviços aumentaram a renda local, impulsionaram a construção e o comércio e atraíram imigrantes, com sua consequente explosão de preços da habitação e dos alugueis.

Entretanto, esse crescimento é anterior ao início da construção das centrais, em 2008. O PIB de Rondônia cresceu quatro vezes mais do que a média nacional entre 2003 e 2007, segundo o economista Valdemar Camata, gerente de Relações Institucionais da Odebrecht. Em 2009, gerou dois terços de todos os empregos da região Norte. A isenção ou redução de impostos, tanto para o mercado interno quanto para a exportação, bem como um crédito barato, favorecem esta industrialização, acrescentou.

Atualmente, Rondônia é produto da expansão agrícola para o interior da Amazônia, empurrada pelo regime militar que governou o Brasil entre 1964 e 1985. Terras doadas e uma migração principalmente do Sul, atraída por enganosas promessas de encontrar o “Eldorado”, multiplicaram por dez sua população entre 1970 e 1991. Três décadas depois do auge da “colonização”, apenas 53,8% de seus 1,52 milhão de habitantes são naturais do Estado, destacou o economista.

O cultivo de arroz, cacau, café, milho e outros produtos cedeu a primazia à pecuária, que, a partir da década de 1980, cresceu vertiginosamente, até chegar aos 12 milhões de cabeças de gado bovino atuais, o que dá a espantosa proporção de oito animais para cada habitante do Estado. A carne se converteu na principal produção do Estado. A indústria de lácteos e frigoríficos se seguiu à economia anterior, extrativa florestal e mineradora, golpeada pelo desmatamento e pelas crescentes exigências ambientais. De 2.500 empresas madeireiras, “hoje restam não mais de 200”, disse Valdemar.

As vias de transporte, até agora escassas e precárias, serão outro fator a empurrar o desenvolvimento econômico em Rondônia. Estão em marcha a pavimentação de estradas que cruzam todo o Estado e o vizinho Acre, com ramificações até a fronteira com Bolívia e Peru, junto com a construção de pontes e hidrovias que farão de Rondônia um centro logístico das regiões amazônica e andina.

O setor empresarial de Rondônia, com escassa cultura exportadora, “apenas olhava São Paulo” e outros grandes mercados brasileiros, mas agora se volta também para o Pacífico, abrindo “uma nova fronteira de progresso”, resumiu Gilberto. Isso significa um mercado de 140 milhões de habitantes nos países andinos vizinhos que, por serem “pouco industrializados, se abastecem no oeste dos Estados Unidos e na Ásia”, acrescentou Valdemar.

Rondônia, mais próximo, pode disputar consumidores com essas nações que somam um PIB de US$ 1,3 trilhão. A potencialidade se reflete no comércio do Brasil com o Peru. Em 2003, o intercâmbio era de apenas US$ 727 milhões e em 2008 chegou a US$ 3,255 bilhões, com grande superávit para o Brasil, disse Valdemar, afirmando que após uma queda em 2009, devido à crise econômica mundial, as exportações se recuperaram este ano.

Os planos empresariais e governamentais, que fazem de Porto Velho um ponto de confluência de várias rotas, compreendem a estrada para Manaus, capital do Amazonas, uma ferrovia para a região Sudeste, a mais rica do país, e uma hidrovia para unir Rondônia com o Norte da Bolívia e o Sudeste do Peru. A rodovia BR 139, construída na década de 1970, atualmente intransitável na maior parte de seus 870 quilômetros, exige uma reconstrução entravada por exigências ambientais. Teme-se que aumente o desmatamento para o centro ainda preservado e muito biodiverso da Amazônia.

É uma alternativa mais rápida do que a paralela hidrovia do Rio Madeira, facilitando o transporte de produtos perecíveis, como verduras, para o grande mercado de Manaus, um polo industrial de 1,7 milhão de habitantes, com saída para o Caribe por uma estrada que cruza a Venezuela, e para o Norte do Atlântico pelo Rio Amazonas.

Além de gerarem eletricidade, Santo Antonio e Jirau têm o “objetivo estratégico” de promover a integração entre Brasil, Bolívia e Peru, “para a expansão do agronegócio” e a exportação de madeira, segundo Guilherme Carvalho, coordenador na Amazônia da organização não governamental Fase. Para isso estão previstas eclusas e no futuro a construção de uma extensão da hidrovia do Madeira para a parte alta e acidentada da bacia.

Porém, segundo Valdemar, será viável apenas se foram construídas outras duas hidrelétricas em rios formadores do Madeira: uma binacional em Mamoré, na fronteira com a Bolívia, e outra nesse país vizinho, no Rio Beni. Isso aumentaria a hidrovia em 4.225 quilômetros, para alcançar a área central boliviana e a região peruana de Madre de Dios.

Ambientalistas e ativistas sociais são contra esses projetos, por considerá-los parte de um modelo de desenvolvimento que destroi as florestas, a biodiversidade e as condições de vida dos povos tradicionais da Amazônia, o que agrava a mudança climática. Está em jogo a “última fronteira amazônica”, segundo Alfredo Wagner de Almeida, antropólogo que organizou o livro “Conflitos Sociais no Complexo Madeira”, com estudos de 21 pesquisadores, e coordena o projeto Nova Cartografia Social da Amazônia. Envolverde/IPS

FOTO
Crédito:
 Mario Osava /IPS
Legenda: O cimento domina trecho do Rio Madeira onde está em construção a Hidrelétrica Santo Antônio.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Aos nossos filhos

11/11/2010 - 11h11


Por Frei Betto*

Não tenho filhos. Mas, obviamente, sou filho, em companhia de mais sete irmãos. Se me faltam filhos biológicos, tenho-os espirituais ou por vínculos de parentesco. Sobrinhos são 16. Sobrinhos-netos, 14, dos quais nove com menos de cinco anos de idade!

Quando se fala em legado aos filhos há quem, de cara, pense em dinheiro. Tudo bem que os pais queiram fazer um pé de meia de olho no futuro de seus rebentos. Mas... cuidado! Não é dinheiro o que um filho mais espera dos pais, ainda que não saiba expressá-lo. É amor, amizade, apoio e, sobretudo, exemplo de vida. Thomas Mann dizia que um bom exemplo é o melhor legado dos pais aos filhos.

Ainda que os pais, bafejados pela roda da fortuna, deixem a seus descendentes gordas heranças, estas não deveriam ser o principal legado. Nada mais perigoso a um jovem que centrar sua autoestima na conta bancária ou no patrimônio familiar. É meio caminho para se tornar arrogante, preconceituoso e vulnerável às drogas. Sobretudo à cocaína, cujo efeito anaboliza a prepotência. Ao primeiro revés, o herdeiro despencará no abismo, despreparado para enfrentar a realidade.

Quem não se sente subjetivamente valorizado corre o risco de querer nutrir sua autoestima através de valores financeiros e patrimoniais. O ter suplantando o ser. Como o desejo tem fome de infinito, o tamanho da ambição costuma ter a medida da profundidade da frustração. Na Roma antiga os filósofos aconselhavam a considerar o necessário o suficiente. Uma sábia dica para saber lidar com a avassaladora pulsão consumista que assola o mundo.

Educação e espiritualidade

O melhor legado aos filhos é, sem dúvida, uma boa educação. Não me refiro apenas à escolaridade, que é imprescindível. Pesquisas comprovam que, no mercado de trabalho, o nível de escolaridade corresponde ao salarial. Conhecimento é poder.

A educação ética deveria ser o principal legado aos filhos. E ela decorre do exemplo dos pais. Estes devem fazer a escolha: incutir nos filhos atitudes de competitividade ou de solidariedade? O professor Milton Santos, da USP, enfatizava a importância de se perseguir os bens infinitos, e não apenas os finitos. A advertência ganha especial importância neste mundo desimbolizado, desencantado, em que vivemos, onde se carece de abertura aos valores transcendentais.

Em sua Metafísica dos costumes Kant alerta: "Tudo tem ou bem preço ou bem dignidade. O que tem preço pode ser substituído por seu equivalente; ao contrário, o que não tem preço e, portanto, equivalente, é o que possui dignidade." Em outras palavras, o sadio orgulho de ser ético se contrapõe à miserável satisfação de ser esperto.

Uma criança não deve ser movida a consumo, e sim a aprendizado, brincadeiras e fantasias. Um jovem será tanto mais cidadão quanto mais se incutir nele esperanças altruístas, ideais, sentido de vida e utopias.

Toda criança é mimetista. Se os pais dizem que toda pessoa merece respeito e, ao mesmo tempo, tratam a faxineira como escrava virtual, com certeza o filho fará o mesmo quando adulto. Idem no que diz respeito à preservação ou degradação ambiental.

O legado moral consiste em evitar que o filho seja preconceituoso, mentiroso, invejoso, e saiba tratar cada ser humano com pleno respeito à sua dignidade e a seus direitos. Sobretudo, que tenha espírito crítico e disposição de tornar o mundo menos desigual e mais justo.

Todos acompanhamos o recente episódio, no Rio, do rapaz que, num racha, desrespeitou a sinalização de "trânsito impedido" num túnel em obras e matou Rafael, 18, filho da atriz Cissa Guimarães com o músico Raul Mascarenhas. Segundo o noticiário, o pai do jovem homicida teria subornado os policiais incumbidos de puni-lo. Tal pai, tal filho.

Isso vale para outros aspectos da vida. Como se queixar do filho obeso se os pais se empanturram à mesa e se entopem de açúcares e gorduras saturadas?

Com frequência, pais de adolescentes me consultam sobre como agir frente à indiferença religiosa dos filhos. Minha primeira reação é dizer que a pergunta veio com dez anos de atraso. Se os filhos tivessem 6 ou 8 anos, e não 16 e 18, eu saberia o que aconselhar: orem com eles, leiam e comentem a Bíblia, levem a sério o caráter religioso de datas como Páscoa, Natal ou, caso não sejam cristãos, as efemérides próprias de sua denominação religiosa.

E exercite-os na cada vez mais rara virtude da tolerância. Deus não tem religião. Ensinem a seus filhos não considerarem diferença divergência.

Pela ordem natural, pais morrem ou transvivenciam antes de seus descendentes. Se indaguem - que imagem vocês deixarão na memória de seus filhos? Lembrem-se de seus próprios pais e avós. Quais os legados positivos e negativos eles imprimiram em sua memória afetiva? Deixaram saudades?

A parábola


Um homem muito rico, acometido de grave doença e desenganado pelos médicos, convocou filhos e netos para comunicar-lhes a herança que lhes deixaria. Todos, ansiosos, compareceram ao hospital. Formaram uma grande roda em torno do leito.

Dada a ordem, o advogado do enfermo abriu a pasta e distribuiu aos herdeiros caixas de fósforos, uma para cada um. Decepcionados, entreolharam-se e, ao abrirem a caixinha, encontraram pequenas sementes. O homem, tomando em mãos uma das caixas, explicou:

"Esta semente é a do amor; esta, da solidariedade; esta aqui, da compaixão; esta, da amizade; aquela ali, do perdão. Se vocês souberem cultivá-las, haverão de ser felizes."

E acrescentou:

"A fortuna que acumulei será destinada a obras sociais."

*Escritor e assessor de movimentos sociais, autor de "A arte de semear estrelas" (Rocco), entre outros livros. http://www.freibetto.org/- twitter:@freibetto

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Dois males afinal evitados

LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA
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Folha de SP, 07-11-2010
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As eleições do último domingo foram livres e democráticas. Foram próprias de uma democracia consolidada, porque o Brasil conta com uma grande classe média de empresários e de profissionais e com uma classe trabalhadora que participa dos ganhos de produtividade.
Porque conta com um sistema constitucional-legal dotado de legitimidade e garantido por um Estado moderno, que é efetivo em garantir a lei e crescentemente eficiente em gerir os serviços sociais e científicos que permitem reduzir a sua desigualdade.
É verdade que os dois principais candidatos não conseguiram desenvolver um debate que oferecesse alternativas programáticas e ideológicas claras aos eleitores. Por isso, a grande maioria dos analistas os criticou. Creio que se equivocaram.
O debate não ocorreu porque a sociedade brasileira é hoje uma sociedade antes coesa do que dividida. Sem dúvida, a fratura entre os ricos e os pobres continua forte, como as pesquisas eleitorais demonstraram. Mas hoje a sociedade brasileira é suficientemente coesa para não permitir que candidatos com programas muito diferentes tenham possibilidades iguais de serem eleitos -o que é uma coisa boa.
Os dois males que de fato rondaram as eleições de 31 de outubro foram os males do udenismo moralista e potencialmente golpista e o da americanização do debate político.
Quando setores da sociedade e militantes partidários afirmaram que a candidata eleita representava uma ameaça para a democracia, para a Constituição e para a moralidade pública, estavam retomando uma prática política que caracterizou a UDN (União Democrática Nacional), o partido político moralista e golpista que derrubou Getulio Vargas em 1954.
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Não há nada mais antipolítico ou antidemocrático do que esse tipo de argumento e de prática. As três acusações são gravíssimas; se fossem verdadeiras --e seus proponentes sempre acham que são-- justificam o golpe de Estado preventivo.
Felizmente a sociedade brasileira teve maturidade e rejeitou esse tipo de argumento.
Quanto ao mal da americanização da política******, entendo por isso a mistura de religião com política em um país moderno.
Os Estados Unidos, que no final da Segunda Guerra Mundial eram o exemplo de democracia para todo mundo, experimentaram desde então decadência política e social que teve como uma de suas características a invasão da política por temas de base religiosa como a condenação do aborto.
De repente um candidato passa a ser amigo de Deus ou do diabo, dependendo de ser ele "a favor da vida" ou não. A separação entre a política e a religião --a secularização da política-- foi um grande avanço democrático do século 19. Voltarmos a uni-las, é um grande atraso, é a volta à intolerância.
A sociedade brasileira resistiu bem às duas ameaças. E a democracia saiu incólume e reforçada das eleições.
Em seu discurso após a eleição, Dilma Rousseff reafirmou seu compromisso com os pobres, ao mesmo tempo em que se dispôs a realizar uma política de conciliação, não fazendo distinção entre vitoriosos e vencidos.
Estou seguro que será fiel a esse compromisso, como o foram os últimos presidentes. Nossa democracia o exige e permite.