sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Giambiagi: ‘Precisamos de um capitalismo que leve ao progresso sem abandonar o campo democrático’, OESP (definitivo)

 BRASÍLIA – Fábio Giambiagi é um economista liberal que possui, pelas suas próprias palavras, “um pacto inegociável com a democracia”. Em seu novo livro, “A Vingança de Tocqueville – A importância do bom debate”, que chega às livrarias nesta sexta-feira, ele revê a história econômica do Brasil nas últimas décadas e se questiona: onde foi que o Brasil se perdeu?

Uma das vozes mais influentes sobre contas públicas no País, ele critica a política econômica dos governos petistas e lamenta o fato de Lula ter se afastado da “frente ampla” que o elegeu na última eleição. Giambiagi, por outro lado, não deixa de lamentar o que chama de “escorregão” do liberalismo econômico brasileiro, que passou a apoiar Jair Bolsonaro – no que classifica como “uma página sombria” da direita brasileira.

“Se o cara não for democrata, estou fora. Democracia é, para mim, essencial como o ar que eu respiro. Acho que falta à nossa direita definir esse risco de giz no chão e dizer o seguinte: até aqui eu vou; daqui para frente, isso é inaceitável”, diz.

Filho de argentinos, ele lembra, em conversa com o Estadão, do sequestro do tio durante a ditadura no país vizinho, e diz não ter dúvidas de que houve tentativa de golpe de Estado no Brasil entre os meses de dezembro de 2022 e janeiro de 2023. A seguir, os principais trechos da entrevista.

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O livro tem um título enigmático: ‘A Vingança de Tocqueville - A importância do bom debate’, em referência ao pensador francês do século XIX. Por que esse nome?

É obviamente provocativo e está relacionado ao fato de que gosto muito de frases. Há uma frase de Alexis de Tocqueville, que talvez seja o maior teórico da democracia, que diz: “É preciso que os governantes se apliquem em dar aos homens esse gosto pelo futuro. E que, sem o dizer, ensinem a cada dia aos cidadãos que a riqueza, o renome, o poder são o preço do trabalho. Que os grandes triunfos se encontram situados ao cabo dos longos desejos, e que nada se obtém de durável senão aquilo que se adquire com dificuldade”. Então, a essência do livro é o seguinte: os países que deram certo, não foi porque alguém teve um lampejo, o governo inventou algum programa, uma empresa inventou alguma coisa. Foi por um conjunto de medidas que foram construídas ao longo de décadas.

E o mundo hoje é bastante imediatista.

A ideia da vingança de Tocqueville é: nesse mundo – vale tanto para as pessoas como para os países – de procura do sucesso imediato, do enriquecimento imediato, a mensagem é a seguinte: isso pode dar certo para uma ou outra pessoa, mas a maioria vai ter que trabalhar duro. Eu fico, como cidadão, entre abismado e deprimido. Há influencers que orientam adolescentes a largar a escola, porque assim iriam enriquecer mais rapidamente. Veja que crime contra o país, eu não recomendaria isso para um filho. O que faz sentido, ao contrário, é o que dá retorno no longo prazo. E, obviamente, numa democracia, isso é um desafio – particularmente numa democracia com essa polarização absurda e doentia que estamos vendo nos últimos dez anos, e que não nos leva a lugar nenhum.

Como o sr. avalia o Brasil nas últimas décadas?

O Brasil é uma situação daquelas típicas de copo meio cheio e meio vazio. Em um dos últimos capítulos, tem um quadro no qual eu listo as reformas feitas no País desde o governo Collor. E é um conjunto bastante respeitável de reformas que começam lá com as privatizações. Todo o esforço de estabilização, as reformas do FHC, mais recentemente, do Temer. Quando você vê isso, você vê um país que, mesmo que aos trancos e barrancos, institucionalmente, vai avançando e fazendo progresso.

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Qual seria o copo meio vazio?

Em 1984, eu tinha 22 anos e, como estudante, eu estava na famosa Passeata das Diretas, no Rio de Janeiro, na Candelária, pedindo eleição de governador e para presidente no final do governo militar. Então, quando eu comparo o Brasil de hoje com o que a gente achava que seria um país democrático em 2025, quando eu tivesse 60 anos – ou seja, no longuíssimo prazo –, não há como não haver um sentimento de decepção, de frustração.

Seus pais são argentinos. Como você compara os dois países?

Quando eu vejo a Argentina de hoje, não há como não haver um sentimento de fracasso, porque praticamente não há nada a ser resgatado. O Brasil, mal ou bem, teve três avanços importantes. O primeiro é o da redemocratização. Eu sou filho de argentinos, e dois dias antes de a gente se mudar para o Brasil o meu tio foi sequestrado por agentes da ditadura. Naquela época, as pessoas sumiam, mas felizmente ele é um dos poucos casos que em que reapareceu, em 1976. Então, eu tenho um pacto com a democracia que não pode ser negociado. Se o cara não for democrata, estou fora. Democracia é, para mim, essencial como o ar que eu respiro.

Quais os outros dois avanços?

Depois tivemos um segundo avanço inequívoco, associado, obviamente, à gestão do presidente Fernando Henrique, que foi a estabilização e, na primeira metade da década, os avanços sociais, associados ao governo de Lula. Na década de 2010, por outro lado, foi quando o Brasil se desencontrou de si mesmo, e o que falhou miseravelmente foi a política.

Como o sr. vê a polarização política atual?

Este é um livro assumidamente de um órfão. No sentido de que você, como cidadão, procura ter uma representação política, alguém que diga: essas ideias me representam independentemente da possibilidade de conviver civilizadamente com o adversário que ganha as eleições legitimamente e que tem direito a esse poder durante quatro anos. O que ocorre é que há uma fração da sociedade que, creio, não se identifica com nenhuma dessas duas visões (do campo político atual). De alguma forma, o livro espelha um pouco esse sentimento de uma parte da sociedade.

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O sr. acha que o Lula abandonou esse eleitor de centro, da frente ampla?

Lula se elege no espírito da frente ampla, em defesa da democracia, e o que ele faz logo depois de assumir? Ele joga fora todo o esforço que tinha sido feito. Começou com a Petrobras, cujo elemento fundamental era a harmonização dos preços com o resto do mundo. Depois, xingou o presidente do Banco Central, se reuniu com Nicolás Maduro. Então, ele chuta o balde da frente ampla. É um espírito (de união) que foi jogado no lixo.

Giambiagi: Lula 'chutou o balde' da frente ampla depois de eleito

Para economista, distanciamento do presidente dos eleitores de centro é grande erro político do governo

O sr. acha que esse é o grande erro deste governo?

Sem dúvida nenhuma. E do jeito que ele está levando a economia, o PT dificilmente vai ter uma outra oportunidade, com esse tipo de políticas equivocadas.

O sr. enxerga alguma forma de superar a polarização?

Acho que essa possibilidade só vai surgir depois que a gente tiver superado a dicotomia entre duas pessoas, Lula e Bolsonaro. Então, eu sou bastante pessimista em relação ao curto prazo, porque são as duas figuras que continuam dominando a política brasileira.

Há um trecho no livro em que o senhor fala que a direita escorregou ao apoiar o bolsonarismo e que essa seria uma página sombria da direita do país, da direita liberal.

Nos últimos 15 anos, fui vendo pessoas com quem eu ficava em uma situação ambígua, porque eram pessoas que gostavam genuinamente de mim, das coisas que eu escrevia, mas que, em um determinado momento, eu vi que, politicamente, estavam em outro campo. No limite, estavam dispostas a abrir mão de princípios dos quais eu não abro mão. Então, se eu entendo que deve ter alguma aproximação entre pessoas que pensam diferente, nós temos que tentar conduzir o País na linha de um capitalismo que leve ao progresso, mas sem abandonar o campo democrático. E, realmente, lamento que expressões dessa direita tenham, como se diz popularmente, passado o pano para desvios absolutamente inaceitáveis, como a gente está voltando a ver nos últimos dias. Não é preciso desenhar mais que houve uma tentativa de golpe de Estado no Brasil entre dezembro de 2022 e janeiro de 2023. Acho que falta à nossa direita definir esse risco de giz no chão e dizer o seguinte: até aqui eu vou; daqui para frente, isso é inaceitável.

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Giambiagi: 'Não é preciso desenhar mais que houve tentativa de golpe de Estado no Brasil'

Para economista, Brasil precisa de capitalismo que leve ao progresso sem abandonar a democracia

Como o sr. avalia a condução da política econômica pelo ministro Fernando Haddad?

A impressão que dá para quem está de fora é que o presidente parece ilhado e, certamente, o ministro não consegue ter ascendência sobre ele. E, como todo mundo sabe que o presidente pensa uma coisa e o ministro gostaria de ir para outro lugar, ficamos numa situação que é muito ruim para o País politicamente, porque, se o ministro leva a melhor, parece, diante da opinião pública, que ele está derrotando o presidente. E, se o presidente leva a melhor, o ministro aparece como um ministro fraco.

O governo elevou bastante o gasto social, mas popularidade está em queda. Não existe uma contradição nesses números?

A popularidade no mundo de hoje, frenético, das mídias sociais, está associada não apenas a fatos concretos da economia, mas à forma com que determinadas interpretações se disseminam. Digamos que você tenha sido eleitor da Simone Tebet no primeiro turno de 2022 e do presidente Lula no segundo turno, dentro daquele espírito da frente ampla. Aí, você vê a presidente do PT elogiando o Nicolás Maduro. Se o entrevistador te perguntar o acha do governo, você vai dar nota ruim, mesmo que reconheça que a economia possa estar melhor ou razoável. Por outro lado, o gasto social aumentou muito nos últimos 20 anos. O Bolsa Família, no passado, pagava R$ 200 por mês a 13 milhões de famílias e hoje paga mais ou menos R$ 700 por mês a 22 milhões de famílias. Num país que faz progresso, isso não vai fazer mais sentido. Então, o sucesso do Bolsa Família, que no passado era associado à métrica do aumento do número de pessoas, no futuro vai ter que estar associado à redução do número de beneficiários. Se você tinha 13 milhões de beneficiários no passado e tem 21 milhões de beneficiários hoje, e a taxa de desemprego é menor do que no passado, tem alguma coisa que não está funcionando.

O governo enviou medidas de contenção de gastos no ano passado que foram desidratadas no Congresso. Como o sr. vê o ajuste fiscal?

Temos que envolver o Legislativo e o Judiciário nessa discussão. O que a gente tem que fazer é olhar os números, pensar qual é a política ideal, mas depois contrastá-la com a realidade orçamentária e ver quais são as prioridades. É preciso discutir com um pouco mais de racionalidade as nossas políticas públicas. Eu tenho procurado me esforçar nessa linha com meus livros, mas confesso que, até agora, acho que possa estar tendo pouco sucesso.

Hélio Schwartsman Trump já deu um golpe?, FSP

 


SÃO PAULO

Patrícia Campos Mello, como sempre, levanta ótima questão. Já dá para chamar de golpe o que Donald Trump está fazendo nos EUA?

A própria Patrícia, recolhendo comentários de historiadores, cientistas políticos e outros analistas, constata que é crescente o número de especialistas, da esquerda e da direita, de Timothy Snyder a Anne Applebaum, que classificam algumas das ações de Trump como ruptura institucional, que é uma das definições de golpe.

Um homem sentado à mesa em um escritório, com as mãos sobre um documento. Ele usa um terno escuro e uma gravata vermelha. Ao fundo, há bandeiras e outros objetos decorativos típicos do Escritório Oval.
O presidente dos EUA, Donald Trump, no Salão Oval da Casa Branca - Evelyn Hockstein/Reuters

Existem golpes insofismáveis, como quando militares destituem um presidente (Chile, 1973) ou quando um presidente fecha o Legislativo e o Judiciário (Peru, 1992), mas, especialmente nos dias de hoje, a maior parte das descontinuidades constitucionais se desenrola de modo mais ambíguo.

Caíram de pau em cima do Lula quando ele disse que a democracia é relativa, mas, conceitualmente, ele tem razão. A democracia não é um estado binário, que se materializa ou não se materializa, sem admitir nuances. A melhor prova disso é que existem vários rankings de democracia, que a analisam em várias dimensões e atribuem notas a cada país avaliado.

A democracia é um espectro —e Trump, sua assombração. Com o novo presidente, já está contratada uma boa dose de erosão institucional. Mas daí não decorre, pelo menos não necessariamente, que os EUA caminham para uma ditadura escancarada ou mesmo para um autoritarismo explícito. Assim como a democracia comporta graus, a regressão institucional vem em "quanta" de diferentes magnitudes.

Trump, embora tenha vencido de forma convincente, está longe de ter-se convertido em unanimidade nacional (no voto popular ele superou Harris por mero 1,5 ponto percentual). E, se há um país que coloca barreiras à chamada ditadura da maioria, são os EUA. Ali, é quase impossível aprovar uma emenda constitucional, para dar um único exemplo.

Daí não se segue que possamos dormir tranquilos. Os EUA são um transatlântico, que não dá freadas. Mesmo pequenos desvios de rota podem destruir tudo o que esteja em seu caminho.

SUELY ARAÚJO E MARCIO ASTRINI - Os perigos da retórica petroleira, FSP

 Suely Araújo

Coordenadora de Políticas Públicas do Observatório do Clima; ex-presidente do Ibama (2016-18)

Marcio Astrini

Secretário-executivo do Observatório do Clima

O licenciamento para perfuração de petróleo no chamado Bloco 59, na bacia sedimentar da Foz do Amazonas, vem deixando muita gente nervosa. O Ibama, que já deu 2.000 licenças para poços de petróleo no Brasil desde 2007 sem ouvir reclamações, vem sendo acusado de procrastinar com esta licença por inconfessáveis motivos ideológicos. Os ataques ao órgão ambiental lançam mão da retórica perigosa e desinformativa das empresas de petróleo, sobre a qual cabe alertar o público.

Uma tática comum é a do espantalho, que consiste em caricaturar as posições dos opositores da exploração, pintando-os como radicais irresponsáveis. Um jornal fez isso recentemente, dizendo que "os postos de combustível não fecharão de uma hora para a outra" —como se alguém tivesse feito tal proposta. No entanto, a Agência Internacional de Energia afirma que, se o mundo quiser ter alguma chance de devolver o aquecimento global ao patamar de 1,5ºC no fim do século, o consumo de petróleo deve cair 20% em 2030. Em 2050, esse declínio precisará ser de 75%.

Foz do rio Amazonas: costa do estado do Amapá, no extremo norte do Brasil, está na mira da indústria petrolífera - Victor Moriyama/Greenpeace

Outra peça do arsenal petroleiro é a alegação de que, sem a abertura de novas fronteiras fósseis como a Margem Equatorial, o Brasil terá de importar petróleo. Segundo a Empresa de Pesquisa Energética, o país já tem contratada para 2030 uma expansão que chega a 5,3 milhões de barris-dia, mais do que o dobro do nosso consumo, que é de 2,3 milhões de barris-dia. Se a preocupação é com a segurança energética do brasileiro, basta exportar menos petróleo.

Isso, claro, assumindo o cenário irreal de que a Petrobras assistirá bovinamente ao declínio da produtividade do pré-sal nos próximos anos sem fazer nada. Obviamente não é o caso: a empresa acabou de anunciar a descoberta de um novo reservatório no campo de Búzios e investe constantemente em novas descobertas e no aumento do fator de recuperação dos reservatórios já existentes. A investidores, a ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás e Biocombustíveis) fala em vários bilhões de barris na região.

Tão grande quanto a capacidade de encontrar novos reservatórios é a habilidade da Petrobras em criar narrativas que justifiquem seus planos de expansão ilimitada de exploração e produção. Tal prática, corriqueira entre as empresas do setor, é conhecida como "paltering", ou a divulgação seletiva de informações, omitindo verdades inconvenientes. A peça de "paltering" preferida da Petrobras é o "petróleo de baixo carbono".

Trata-se de uma historinha segundo a qual a produção de cada barril de petróleo por aqui emite 15 kg de CO2 contra mais de 17 kg da média mundial (em alguns países, mais de 50 kg). Infelizmente, o que importa para o clima não é o carbono emitido para extrair um barril, mas o que vai para o ar quando esse óleo é queimado. Cada barril de petróleo emite 420 kg de CO2 na queima; portanto, do ponto de vista da atmosfera, a menor emissão na produção faz muito pouca diferença. O tal óleo "verde" do Brasil não irá, só por força de seu suposto baixo carbono, substituir nenhum óleo "mais sujo" de outros países quando a demanda cair. O fator determinante para o "último homem de pé" a disputar um mercado futuro 75% menor será preço.

Por fim, é uma cilada geográfica dizer, como os defensores da exploração vêm dizendo, que o Bloco 59 fica a 500 km da foz do rio Amazonas e não traz risco em caso de derrame. Foz do Amazonas (em maiúscula) é o nome da bacia sedimentar. O risco direto não é para a foz do Amazonas (em minúscula) propriamente dita, mas para os manguezais do Amapá, a menos de 200 km do local, para o litoral da Guiana Francesa —que não tem exploração de petróleo, mas deverá receber a maior parte do óleo do vizinho em caso de vazamento— e para o grande sistema recifal amazônico, ainda pouco conhecido.

Isso não significa que esse óleo não ameace a floresta amazônica. Como vimos nos incêndios de 2023 e 2024, induzidos pelo aquecimento global mesmo com o desmatamento em queda, sem uma eliminação gradual, justa e equitativa dos combustíveis fósseis nós perderemos a Amazônia para o clima —mesmo que o desmatamento seja zerado.

O Brasil, à frente da COP30, tem uma oportunidade única de pautar essa discussão e negociar um calendário de transição no qual os países desenvolvidos tomem a dianteira, mas o horizonte do fim do petróleo fique claro para todos. Num momento em que os Estados Unidos deixam o esforço multilateral para passar ativamente a sabotá-lo, o mundo conta com a liderança de Luiz Inácio Lula da Silva nessa negociação —que, ademais, é de interesse do Brasil, como país em desenvolvimento e produtor de óleo que não vai querer ver os prazos da transição sendo decididos à sua revelia.

Alguns, porém, defendem literalmente apagar o fogo com gasolina, furando novos poços em áreas sensíveis como se não houvesse amanhã. Se eles prevalecerem, não haverá mesmo.