terça-feira, 9 de abril de 2024

Álvaro Machado Dias - Sem legalização da maconha, K9 e outros sintéticos continuarão matando usuários, FSP

 O que mais me aflige no debate em curso sobre a descriminalização da maconha é que ele é míope em relação ao futuro. Esta não é a sua única deficiência grave.

Há o desprezo pelas evidências presentes e a instrumentalização de posições jurídicas de que falou Conrado Hübner, mas nem isso me parece mais problemático do que a falta absoluta de interesse em indagar: como será que as drogas baseadas na ativação de receptores canabinoides, como a maconha, estão evoluindo e o que isso indica sobre os impactos de longo prazo da proposta de emenda constitucional para criminalizar "a posse e o porte, independentemente da quantidade, de entorpecentes e drogas afins sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar".

Planta de cânabis carregada por participante da Marcha da Maconha de São Paulo - Bruno Santos - 11.jun.22/Folhapress

A minha tese é que basta pensar um pouquinho sobre esse cenário para compreender que há milhares de vidas em risco dobrando a esquina dos anos e que a única maneira de salvá-las é caminhando em sentido à legalização do uso recreativo da maconha, para o que a descriminalização é o primeiro passo.

Antes de considerá-la, vale perguntar: a maconha é inofensiva à saúde? Não, de forma alguma. Ela aumenta a chance de doenças cardiovasculares e alguns cânceres, além de ser perigosa para alguns perfis psiquiatricamente vulneráveis e para os cérebros em desenvolvimento.

A questão é que decisão alguma deve ser tomada com base nos riscos associados àquilo que está sob judice ou, ainda, com base nas consequências positivas de se decidir à revelia dos mesmos. Decisões tampouco devem ser tomadas olhando apenas o presente.

O que importa para maximizar as chances de sucesso é o ponto de parada da gangorra formada pelos prós e contras (balanço utilitário), nos cenários futuros em que essas escolhas passam a moldar a realidade. Ou seja, é fundamental se pautar pela comparação de modelos de futuro.

Os fatores que devem entrar nesses modelos possuem especificidade local, como, aliás, é o caso em matérias jurídicas e legislativas em geral. No Brasil de hoje, o problema do crime organizado é muito maior do que o produzido pelo aumento dos casos de doenças cardíacas ou tumores de língua, garganta ou pulmão em função do consumo de maconha. Os custos sociais e econômicos são diversas vezes superiores, e o número de mortes relacionadas habita outra escala de grandeza. Tratamentos médicos evoluem, a brutalidade do crime organizado não parece tratável da mesma maneira. É essencial incluir isso.

Do mais, é sempre importante incorporar os sinalizadores externos. Nos países em que houve legalização total ou parcial da maconha, a aprovação da população é maciça. Nos Estados Unidos, por exemplo, pesquisa do Pew Research de 2022 revelou que "a vasta maioria dos americanos (88%) diz que a maconha deve ser legal para uso médico e recreativo ou apenas para uso medicinal (30%). Apenas um em cada dez (10%) diz que a maconha não deve ser legal, de acordo com pesquisa de 10-16 de outubro de 2022. Essas visões permanecem as mesmas de abril de 2021".

Será que há indicativos de que a descriminalização e a legalização do uso recreativo da maconha no Brasil, lá na frente, produziriam percepção semelhante, em função da redução do encarceramento, disrupção de uma das linhas de produtos do tráfico de drogas e outros fatores? Cabe indagar.

O que podemos dizer com segurança é que o fato de só 10% dos americanos serem favoráveis à proibição, após anos de exposição à sua reversão em diferentes estados, diz muito mais sobre os impactos sociais da medida que qualquer argumento teórico.

Frente a esse tipo de situação, vale sempre checar as referências. Recentemente, saiu um artigo em que se lê: "O estado norte-americano de Oregon —um dos primeiros a descriminalizar a maconha, há cerca de quatro anos— recuou da decisão no dia 1º de março, quando o legislativo local votou pela volta da criminalização do porte de qualquer droga".

A afirmação é imprecisa. A página do governo de Oregon diz: "Adultos maiores de 21 anos podem portar e consumir maconha dentro de limites específicos". Ali, há um hiperlink para uma página intitulada "o que é legal no Oregon", a qual especifica: "Você pode portar, usar, comprar maconha para uso recreativo, se você for maior que 21 anos. Se você for menor, é ilegal". Bom, se o governo está dizendo, eu acredito.

O que ocorre é que a câmara estadual aprovou uma lei (BL 4002), que recriminaliza a posse, o consumo e a venda de drogas pesadas (fentanil, cocaína e heroína), após a sua descriminalização em 2020 (HB 110). Não dá para misturar as estações.

Superados esses pontos mais básicos, a questão é que as drogas recreativas vêm passando por fortes processos de transformação. Traficantes também pensam em P&D (pesquisa e desenvolvimento). Eles também investem na criação de novos produtos. Para poder formar uma posição racional sobre a maconha, é fundamental incorporar os desfechos desses processos nos modelos decisórios, coisa que eu ainda não vi acontecer. Eles são muito mais importantes que parecem.

DAS NEUROCIÊNCIAS AO PCC

O PCC se tornou a maior facção do Brasil por sua visão mais pragmática da atividade criminosa.

Agora, considere que o grupo criminoso, que tem no tráfico de drogas seu segmento mais relevante, emitiu um "salve", banindo, até segunda ordem, a comercialização de canabinoides sintéticos, gerando efeitos notáveis nas apreensões, conforme reportado pela BBC: "Antes, K2 e K9 eram encontradas em 30% das operações. Hoje, esse número caiu para 10%".

A razão para essa medida única na história do tráfico é que os usuários ficam escangalhados a ponto de prejudicarem a operação. As pessoas se tornam verdadeiros zumbis humanos, e ter uma reedição de "Thriller" em torno das bocas de fumo produz impactos de imagem severos a ponto de desidratar a atratividade da comercialização desse produto mais lucrativo que Carnê do Baú. Note que estamos falando dos principais operadores do tráfico de crack do país. Não é gente que se impressiona com pouco.

K2 e K9 são mais conhecidas como Spice. Trata-se de um líquido que é aspergido sobre ervas, inclusive maconha, para ser consumido como inalante, ou sobre balas e outros, para ingestão.

Sua história começou em 1979, quando um grupo de pesquisadores da indústria farmacêutica criou um canabinoide sintético chamado CP-47,497, que apareceu em um artigo científico de 1982 no qual os autores descreveram sua semelhança com o THC, a substância psicoativa da maconha, exceto pela potência, muito maior.

Nós possuímos dois receptores neuronais com afinidade para a substância —CBD-1 e CBD-2. O primeiro se concentra no sistema nervoso central, enquanto o outro se espalha pelo periférico, especialmente pelas células imunológicas. A maconha é um agonista parcial de ambos, o que na prática significa que tem impacto moderado.

Isso, em conjunção com o fato de que, na época, a maconha era proibida nos Estados Unidos todo e na Europa, estimulou o surgimento de uma linha de pesquisa em substitutos sintéticos para o uso em ensaios clínicos.

Movido por interesses científicos, mas também por uma ingenuidade de dar gosto, o químico John Huffman desenvolveu mais de 300 destas substâncias, cujas fórmulas publicou online para ajudar outros pesquisadores do campo. Huffman era meio egocêntrico e batizou as moléculas com as suas iniciais: JWH. Menos de 20 anos depois, análises revelavam que JWH-18 e outros estavam por trás da proliferação dos zumbis humanos nos presídios e nas ruas de metrópoles europeias e americanas.

A principal diferença entre maconha e Spice é que este último se liga muito mais firmemente aos receptores CBD. Porém, isso não significa que a droga sintética é simplesmente mais forte, mas que é capaz de produzir efeitos que maconha nenhuma gera: braquicardia severa, convulsões, psicose, overdose e morte, além da perda completa de contato com a realidade, que fez o PCC pensar que ela poderia ser ruim para os negócios. Subsequentemente, a facção liberou sua comercialização, o que é preciso considerar em nossos modelos decisórios.

As diferenças entre maconha e Spice estendem-se pelo domínio da dependência. Há relatos de viciados comendo fezes humanas em troca de uma dose, além de casos menos escatológicos, como o do sujeito que sofreu uma parada cardíaca fumando, foi socorrido por paramédicos e, assim que pulou da ambulância, acendeu o mesmo eletrônico com o canabinoide sintético que o levou a entrar no veículo da primeira vez.

CANABINOIDES SINTÉTICOS CRIAM RISCOS QUE SÓ A LEGALIZAÇÃO DA MACONHA PODE RESOLVER

Há milhares de mortos por uso de Spice nos Estados Unidos e Europa, muitos deles por terem fumado a droga, inadvertidamente, uma única vez. O sujeito pensa que é maconha, dá um trago e sofre uma parada cardiorrespiratória. Nas prisões do Reino Unido, 48% de todas as mortes por causas não naturais são por overdose da droga. É algo sem precedentes na história do sistema carcerário local. Lá, assim como aqui nos Estados Unidos, de onde escrevo a revisão da revisão deste artigo, há uma crescente preocupação das autoridades sanitárias e epidemiológicas com os riscos de vida que passaram a rondar o consumo de maconha sem procedência.

Aliás, um aviso aos pais: é essencial conscientizar os adolescentes e pós-adolescentes sobre essa nova realidade que está ganhando forma no Brasil. Fumar a maconha alheia na balada virou comportamento de risco. Pode ter Spice na mistura.

Outros pontos importantes a se considerar são que os canabinoides sintéticos custam muito pouco e são basicamente imunes à proibição. As principais fábricas estão na China, que tornou vários deles ilegais. Acontece que os químicos rapidamente criam outros compostos, para os quais a lei não se aplica.

Não se trata de problema local. No Brasil, o único canabinoide sintético proibido é o JWH-18. Com alguns cuidados e assessoramento, é possível abrir um website e vender Spice, comprada pela internet na China, para o Brasil todo, apenas usando os correios. Assim como já vem acontecendo em outros países, fatia relevante dos consumidores será representada por gente que quer consumir maconha, mas não quer se expor a ilegalidades.

A situação para a qual nos empurram os proibicionistas é uma em que drogas sintéticas devastadoras estarão amplamente disponíveis, inclusive, legalmente —afinal, é impossível acompanhar a sua proliferação, especialmente agora que a inteligência artificial consegue criar novos compostos a partir de instruções básicas—, enquanto a maconha, milhares de vezes menos danosa, será proibida.

É impossível modelar esse cenário de maneira honesta sem incluir o aumento das mortes por overdose e dos impactos no sistema de saúde e nas famílias. Apenas a descriminalização seguida da legalização do uso recreativo da maconha pode blindar os jovens do futuro dessa arapuca, que ameaça se consolidar no texto constitucional a partir da mais estúpida das decisões.

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