Os Morlocks e os Elois
No final do filme “A Máquina do Tempo”, de 1960, baseado no romance de H. G. Wells — de mesmo nome — o personagem principal, chamado George (o livro omite o seu nome, chama-o apenas “o viajante”), faz uma última viagem a bordo da máquina que lhe permite o feito da viagem no tempo. Ela entretanto se descontrola, por acidente, e leva o protagonista a um futuro tão distante que é como se despencasse para fora de qualquer linha do tempo. É como se não fosse um futuro do nosso presente, mas um tempo fora do tempo, e também um lugar para além de qualquer relação com o nosso mundo.
Nesse mundo, George encontra uma raça que reconhece como humana a princípio, mas que parece viver um presente eterno. São os Elois. Não trabalham, e tudo de que precisam simplesmente aparece, a cada novo dia que nasce, ao seu redor, quando despertam. Sem a necessidade do esforço, especialmente o da invenção, são uma raça bela e delicada, mas incapaz. O viajante acaba desvendando o mistério da origem dos víveres e outros bens que os Elois tão somente usam. Ocorre que, em uma espécie de mundo subterrâneo, vive uma outra raça, de aspecto monstruoso, mas capaz de produzir aquilo que serve aos Elois (mas não a eles). Morlocks, ele os chama. Incapazes de tolerar a luz do sol, eles se alimentam, não da comida que produzem, mas dos próprios Elois. Estes aparentemente não tomam consciência da existência desses que de certa forma os criam como gado, nem parecem sentir a falta daqueles dentre os seus que são subtraídos periodicamente, para servir ao sustento dos Morlocks.
Já foi dito que H. G. Wells, e também o diretor George Pal, devem ter concebido por meio desse enredo uma alegoria das relações de classe, ou de casta, estamento. Outras leituras são possíveis, pelo viés da subjetividade particularmente. A história se candidata a ressoar assim para aqueles que vivem em sociedades em que a divisão em classes se encontra relativamente mitigada. Talvez, entretanto, se possa dizer que a narrativa descreve aquilo que nessas sociedades se encontra recalcado, a saber, a origem colonial da sua riqueza.
Já disse o psicanalista, escritor e produtor Contardo Calligaris (“Hello, Brasil!”) que o Brasil, como nação, se produz a partir de uma sustentação do projeto colonial para além da sua existência nominal. Só que, para nós, o recalque dessa sustentação, ora não existe, ora precisa recorrer a estratégias muito mais sofisticadas, ou instáveis, e custosas para a consciência. Isso porque reencenamos cotidianamente, entre nós mesmos, a relação entre o colonizado e o colonizador. Haveria, portanto, entre nós, já traduzindo para cá o que nos apresenta a história do viajante, uma simbiose semelhante à que existe entre os Elois e os Morlocks, mas sem que ela deixe de ser confessável, visível à luz do dia ao menos em parte. Indo mais além, é como se nós admitíssemos, com graus diferentes de espontaneidade, dependendo das circunstâncias, que a simbiose precede os seus participantes, que ela vem do modo como as coisas são, naturalmente. Ou seja, essa simbiose é para nós um processo vivido. E o que testemunhamos talvez, mais recentemente, é que esse processo se problematiza.
A partir daí talvez alguém possa dizer que se trata de um acontecimento planetário, que afeta a todos os países, na medida em que tenham sido colônias, ou colonizadores. Não deixa de ser, ainda assim, singular a posição do Brasil, na medida em que essa fronteira acaba por se situar, aqui, dentro do território nacional, e não coincide com ele, nem por força, nem por afeição. A força e a afeição presentes na relação entre o colonizador e o colonizado estão dentro, não só do país, mas do modo como se produzem as relações.
Pensando melhor, a alegoria parece ter pé quebrado. No mundo real os Morlocks colonizados parecem não retirar nenhum benefício da sua relação com os Elois. É possível defender, entretanto, que há algo dos Elois a ser devorado pelos Morlocks, entre os humanos do presente. Esse algo é a sua alma, exatamente o que parece lhes ter sido subtraído também no mundo ficcional. São atímicos os Elois do nosso mundo, são impotentes os herdeiros do poder, não têm vontade. São assexuados, de certa forma, ou mesmo literalmente. Agora que a expropriação das colônias, e dos colonizados, deixa de agregar valor, agora que ela ameaça poder se fazer sem atrito nenhum, ou deixa de existir, graças à superação do contato entre o trabalhador e a mercadoria, parece que todas as relações deixaram de ser simbolizadas. Quer dizer, todas as relações desapareceram como tais, ou se tornam carnais, seja relações de devoramento, ou de conexão intransitiva.
E não é exatamente ao imperativo de não pensar que atende o novo agente político do nosso tempo, enquanto profere blasfêmias anti-científicas, anti-estéticas, ou anti-éticas. Ele nos fala, na verdade, de uma disputa de poder entre os articulados — universitários, políticos, pensadores , diplomatas, professores— e os desarticulados, mas que se conectam em redes.
E eles estão na vanguarda, à diferença dos conservadores de outros tempos, porque não tomam a própria humanidade como dada, de graça, mas creem que ela precisa ser arrancada a força, de algum lugar. Continuamente, sem descanso, ou então nunca.
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